Esse livro coletivo, editado pela
editora Literatura Em Cena (2020,
organizado por Paulo Cecarelli, Victor Cruz e Eduardo Lucas Andrade), inicia-se
com um texto de Bartholomeu sobre a transferência, tema muito importante na
análise. O segundo texto é sobre o xamã David Kopenawa que, em associação com
Eduardo Viveiros de Castro, excelente antropólogo, faz uma antropologia do
homem branco.
A seguir, há o texto de Eduardo Lucas Andrade
tratando do pagamento para o analista e as situações que ele cria. O texto é
muito bem humorado e cita uma anedota contada por Ferenczi:
Mesmo o homem mais
abastado faz cara feia quando tem que dar dinheiro ao médico. Um exemplo
desconcertante ofertado por um paciente: doutor, se me ajudar lhe darei toda a
minha fortuna. O médico respondeu: Me contentarei com as trinta coroas por
sessão. Não é um preço muito salgado, doutor? Foi a resposta inesperada do
paciente (FERENCZI, 1928, apud: ANDRADE, 2020, P. 57).
Eduardo
trata das várias questões que o pagamento levanta. Mas finaliza dizendo
que nada na vida é tão cara quanto a
doença e a estupidez. O texto de Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Lacan,
também tem colocações e provocações muito interessantes: ela observa como a
psicanálise decaiu na França.
Os
autores clássicos como Dolto, Lacan e outros continuam sendo editados e vendem
bem, mas a produção contemporânea concentrou-se numa editora de Toulouse que
edita apenas quinhentos exemplares de cada livro. E boa parte dos lançamentos é
voltada para pedagogos e profissionais da saúde mental. Aliás, Roudinesco
mostra que a psicanálise perdeu a posição que tinha anteriormente, prestigiada
junto a marxistas e surrealistas. Hoje os psicanalistas são trabalhadores da
saúde mental. Os psicanalistas não contam com apoio da psiquiatria, dentre
outros problemas. Outro problema que ele aponta é a participação em programas
de gosto duvidoso, forçando uma análise ruim ao colocar personagens públicas no
divã, ao dizer coisas como “Macron não tem superego, casou-se com a mãe, é
narcísico”. Roudinesco alerta que os psicanalistas brasileiros precisam evitar
que aconteça com eles o que houve na França, onde a psicanálise passou a ter
interesse histórico, virou coisa de museu, apenas.
O
amor lésbico é assunto no texto muito arguto de Ivanildo e Monik. Um conto
muito bom e vigoroso de Natália Polessa, Primeiras
Vezes, é analisado. Há um texto de Lavarini sobre a transferência e a
agressividade, bem como um de Leandro Alves sobre o tema do perdão e sua importância
para o tratamento psicanalítico. Ligia Maria Durski fez um texto sobre um tema
muito pertinente: a ligação entre a macropolítica e a micropolítica (em tempos
de fascismo cotidiano). O atual contexto de pandemia e crise política e
econômica gera situações em que a presença física do analista não pode
acontecer como anteriormente e alguns pacientes não adaptam-se ao tratamento
online. O bizarro é quando um paciente simplesmente acha exagerado o cuidado do
analista, ou seja, alinha-se com a lógica dos fascismos cotidianos. Para trazer
luz a um contexto tão adverso, Lígia Durski recorre a Foucault e sua análise de
como poderia ser uma vida não-fascista.
Bem
conectado ao tema proposto pelo livro, Michael Lopes analisa o infamiliar em
uma série chamada A Maldição da
Residência Hill. Mirelli Barbosa fala do amor e dos poetas, cita Fernando
Pessoa e Platão. Lembra do nosso sofrimento e adoecimento em nome do amor.
Monik, Stephanie e Ivanildo enveredam-se pelo fascinante universo de Nelson
Rodrigues. Encontram um tema excelente: a rivalidade fraterna no conto Diabólica, de A Vida Como Ela É. Duas irmãs disputam o mesmo homem. Natália Paez
analisa a relação entre Direito e Psicanálise tendo em mira nosso sistema
prisional. Paulo Cecarelli levanta uma hipótese sobre a violência e o trabalho
de cultura, citando a amada de Nietzsche e pensadora da minha grande admiração,
Lou Salomé, que fala da hipocrisia da nossa civilização e nossa inadequação a
ela.
O
único artigo da coletânea a trazer ilustrações é de Roberto Barberene Grana
sobre Winicott e Francis Bacon, o pintor, mas ele cita satiricamente algumas
frases do filósofo também. E traz uma frase, a meu ver, marcante, seminal: “Do
ponto de vista deste capítulo este Francis Bacon contemporâneo está se vendo no
rosto de sua mãe, mas com certa distorção, nele ou nela, que o enlouquece ou
nos enlouquece” (ANDRADE, 2020, 233).
Igualmente,
o texto sobre a palavra e o significante
na toxicomania, de autoria de Rodrigo Pardini, tratou da dificuldade em tratar os toxicômanos, iluminando
problemas que, como professor, também encontro ao lidar com adolescentes que
usam drogas e estão em idade escolar. E hoje eles são legião, são maioria.
Observou que chegam muitas vezes drogados ao consultório, bem como eles vão ao
consultório obrigados por alguém da família ou do trabalho. Ao lidar com os
drogados, muitas vezes eles são rompidos com o instrumento de trabalho do
analista. Sua fala não faz troca simbólica. Os significantes surgem e assim não
é possível fazer aparecer o trabalho do inconsciente. O drogadito tem uma fala
que é vazia de conteúdo. Monik contribui com um texto sobre a criatividade e
por fim, Victor analisa o nosso difícil momento: o adoecer psíquico causado
pela conjugação entre isolamento social, pandemia e crise.
Esse é o tema de O Colapso
Brasileiro em 2020. É um drama atualíssimo e que ainda estamos
vivendo em 2021. O analista conta que pacientes com obesidade passaram a
trancar-se dentro de casa e obter significativo ganho de peso. Para muitos
pacientes, a pandemia agravou suas patologias e tornou ainda mais difíceis de
tratar. Uma frase citada é muito bela “o luto indizível instala no interior do
sujeito uma sepultura secreta”. Há quem até tenha pesadelo com uma situação em
que está sem máscara, num salto de consciência dentro do próprio sonho. O sonho
é invadido por restos angustiados do consciente Felizmente, diz ele, os sonhos
estão em plena atividade, reconciliando-nos com a nossa capacidade de imaginar
um futuro melhor.
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