sábado, 30 de janeiro de 2021

Psicanálise e Vida Cotidiana 2


 

            Esse livro coletivo, editado pela editora Literatura Em Cena (2020, organizado por Paulo Cecarelli, Victor Cruz e Eduardo Lucas Andrade), inicia-se com um texto de Bartholomeu sobre a transferência, tema muito importante na análise. O segundo texto é sobre o xamã David Kopenawa que, em associação com Eduardo Viveiros de Castro, excelente antropólogo, faz uma antropologia do homem branco.

 A seguir, há o texto de Eduardo Lucas Andrade tratando do pagamento para o analista e as situações que ele cria. O texto é muito bem humorado e cita uma anedota contada por Ferenczi:

 

Mesmo o homem mais abastado faz cara feia quando tem que dar dinheiro ao médico. Um exemplo desconcertante ofertado por um paciente: doutor, se me ajudar lhe darei toda a minha fortuna. O médico respondeu: Me contentarei com as trinta coroas por sessão. Não é um preço muito salgado, doutor? Foi a resposta inesperada do paciente (FERENCZI, 1928, apud: ANDRADE, 2020, P. 57).

 

Eduardo trata das várias questões que o pagamento levanta. Mas finaliza dizendo que  nada na vida é tão cara quanto a doença e a estupidez. O texto de Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Lacan, também tem colocações e provocações muito interessantes: ela observa como a psicanálise decaiu na França.

Os autores clássicos como Dolto, Lacan e outros continuam sendo editados e vendem bem, mas a produção contemporânea concentrou-se numa editora de Toulouse que edita apenas quinhentos exemplares de cada livro. E boa parte dos lançamentos é voltada para pedagogos e profissionais da saúde mental. Aliás, Roudinesco mostra que a psicanálise perdeu a posição que tinha anteriormente, prestigiada junto a marxistas e surrealistas. Hoje os psicanalistas são trabalhadores da saúde mental. Os psicanalistas não contam com apoio da psiquiatria, dentre outros problemas. Outro problema que ele aponta é a participação em programas de gosto duvidoso, forçando uma análise ruim ao colocar personagens públicas no divã, ao dizer coisas como “Macron não tem superego, casou-se com a mãe, é narcísico”. Roudinesco alerta que os psicanalistas brasileiros precisam evitar que aconteça com eles o que houve na França, onde a psicanálise passou a ter interesse histórico, virou coisa de museu, apenas.

O amor lésbico é assunto no texto muito arguto de Ivanildo e Monik. Um conto muito bom e vigoroso de Natália Polessa, Primeiras Vezes, é analisado. Há um texto de Lavarini sobre a transferência e a agressividade, bem como um de Leandro Alves sobre o tema do perdão e sua importância para o tratamento psicanalítico. Ligia Maria Durski fez um texto sobre um tema muito pertinente: a ligação entre a macropolítica e a micropolítica (em tempos de fascismo cotidiano). O atual contexto de pandemia e crise política e econômica gera situações em que a presença física do analista não pode acontecer como anteriormente e alguns pacientes não adaptam-se ao tratamento online. O bizarro é quando um paciente simplesmente acha exagerado o cuidado do analista, ou seja, alinha-se com a lógica dos fascismos cotidianos. Para trazer luz a um contexto tão adverso, Lígia Durski recorre a Foucault e sua análise de como poderia ser uma vida não-fascista.

Bem conectado ao tema proposto pelo livro, Michael Lopes analisa o infamiliar em uma série chamada A Maldição da Residência Hill. Mirelli Barbosa fala do amor e dos poetas, cita Fernando Pessoa e Platão. Lembra do nosso sofrimento e adoecimento em nome do amor. Monik, Stephanie e Ivanildo enveredam-se pelo fascinante universo de Nelson Rodrigues. Encontram um tema excelente: a rivalidade fraterna no conto Diabólica, de A Vida Como Ela É. Duas irmãs disputam o mesmo homem. Natália Paez analisa a relação entre Direito e Psicanálise tendo em mira nosso sistema prisional. Paulo Cecarelli levanta uma hipótese sobre a violência e o trabalho de cultura, citando a amada de Nietzsche e pensadora da minha grande admiração, Lou Salomé, que fala da hipocrisia da nossa civilização e nossa inadequação a ela.

O único artigo da coletânea a trazer ilustrações é de Roberto Barberene Grana sobre Winicott e Francis Bacon, o pintor, mas ele cita satiricamente algumas frases do filósofo também. E traz uma frase, a meu ver, marcante, seminal: “Do ponto de vista deste capítulo este Francis Bacon contemporâneo está se vendo no rosto de sua mãe, mas com certa distorção, nele ou nela, que o enlouquece ou nos enlouquece” (ANDRADE, 2020, 233).

Igualmente, o texto sobre a palavra e o significante na toxicomania, de autoria de Rodrigo Pardini, tratou da dificuldade em tratar os toxicômanos, iluminando problemas que, como professor, também encontro ao lidar com adolescentes que usam drogas e estão em idade escolar. E hoje eles são legião, são maioria. Observou que chegam muitas vezes drogados ao consultório, bem como eles vão ao consultório obrigados por alguém da família ou do trabalho. Ao lidar com os drogados, muitas vezes eles são rompidos com o instrumento de trabalho do analista. Sua fala não faz troca simbólica. Os significantes surgem e assim não é possível fazer aparecer o trabalho do inconsciente. O drogadito tem uma fala que é vazia de conteúdo. Monik contribui com um texto sobre a criatividade e por fim, Victor analisa o nosso difícil momento: o adoecer psíquico causado pela conjugação entre isolamento social, pandemia e crise.

Esse é o tema de O Colapso Brasileiro em 2020. É um drama atualíssimo e que ainda estamos vivendo em 2021. O analista conta que pacientes com obesidade passaram a trancar-se dentro de casa e obter significativo ganho de peso. Para muitos pacientes, a pandemia agravou suas patologias e tornou ainda mais difíceis de tratar. Uma frase citada é muito bela “o luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta”. Há quem até tenha pesadelo com uma situação em que está sem máscara, num salto de consciência dentro do próprio sonho. O sonho é invadido por restos angustiados do consciente Felizmente, diz ele, os sonhos estão em plena atividade, reconciliando-nos com a nossa capacidade de imaginar um futuro melhor.

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