sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O Animal de Deus

 

O Animal de Deus

Walmir Ayala (Editora O Sexo da Palavra, 2020)

 

            Esse romance de Walmir Ayala (1933-1992) deixa já desde o título uma pista sobre sua temática: o sagrado e o profano, a natureza animal e espiritual do ser humano. Essa reedição de 2020 é a primeira desde 1967. Walmir Ayala, autor prolífico e que fez até peças de teatro infantil em seu tempo, hoje está esquecido e é mais conhecido como poeta. Como tal, foi elogiado por Drummond e outros.

            O romance tem bom prefácio de Paulo Lima, autor que também pesquisou Ayala em sua dissertação em Uberlândia, tratando de dois eixos do romance: homoeroticismo e retórica católica. Aqui recomendamos Paulo Lima e buscaremos ir além.

            O romance abre-se sob o signo de um triângulo amoroso: Ana, Mário e Rafael. Podemos supor que pode ter algo a ver com o tempo em que Ayala vivia na casa de Lúcio Cardoso e sua irmã Maria Helena.

            Mário conheceu Rafael em um lançamento de livro. Rafael considera Mário um melhor amigo, mas Mário chama Rafael de Arcanjo e tem por ele uma adoração obsessiva. Eles têm em comum os diálogos místicos-religiosos e um gosto erudito. Ouvem Mozart juntos, a Concertante de Mozart simboliza o Arcanjo. Mário também freqüenta bares ao lado de Rafael, bem como o universo boêmio carioca. O confidente de Mário é Frei X, frei que, enclausurado, debate sobre o amor, o pecado e os desejos desesperados. Algumas passagens são claras como cristais, são a mais resplandecente prosa poética:

 

Estou muito impressionado com o suicídio do bailarino J. P. Lançou-se á morte, num passo de balé, do alto de um viaduto, sobre o asfalto. Parece que ia amanhecendo. Desmanchou-se em rosa vermelha. E os anjos de Deus o colheram porque ele era angústia, procura e beleza. E Deus é a resposta desvendada, o Segredo desvendado e a Beleza desvendada. É por esses tês caminhos que iremos a Ele (AYALA, 2020, P. 157).

 

Frei X entrou na história logo no começo, após ter encontrado com Mário na festa de um amigo em comum que, numa festa com fumaça e jazz, debochou da presença de Frei X ali naquele ambiente de esbórnia, Mário como o qual ele parece compartilhar os mesmos gostos. O que fez com que Mário, vindo ampará-lo, iniciasse uma amizade. A troca de cartas entre os dois, em prosa poética, auxilia em muito a estrutura do romance. Como por exemplo:

 

O amor não morre enquanto faz frutificar em nós uma consagração e um canto. E, acredito que, se nós nos dispusermos sempre para a glorificação do que pode vir, estaremos já vivendo uma espécie de eternidade no tempo (AYALA, 2020, p. 153).

 

            A relação fica tensa quando Mário conhece a esposa Lídia, de Rafael, com quem Rafael tem uma filha. Esse universo à parte já excluía Mário, atormentando-o. Mas quando Lídia confessa que está em sofrimento, pois descobriu que Rafael tem uma amante, Teresa, isso abala Mário. De certa forma, Teresa rivaliza com ele. Ele é que era o “reduto”. Mário psicanaliza Rafael: Rafael busca em Mário o pai. Mário não tolera Teresa, para ele símbolo, mancha que imaculou o Arcanjo de mentira e traição. No entanto, o Arcanjo alega que Teresa tinha decaída e estava perdida na vida, mas o que havia de podre, Rafael redimiu.

            A interferência de Mário no amor entre Rafael e Teresa abala a relação entre os dois, pois Rafael reage negativamente, Mário vinga-se deixando-o de lado em prol de um amigo chamado Ismael. E, ainda mais desagradável, conversa com a mãe de Rafael (Dona Dulce) e verifica que aquela senhora os deseja afastados. Na mãe, Mário reencontra a amarga rigidez de princípios.

            Rafael, que não tinha contatos com Ana, tem com ela um diálogo em que diz sentir ódio por Mário. Ana diz que é católica, não aceita o que existe entre ambos, mas diz a ele que afaste-se do amigo o quanto antes. A seguir, Ana conta a Mário a conversa com Rafael, fato definitivo para o rompimento entre ambos, que já se anunciava. Nisso, o final é relativamente feliz, uma vez que Frei X anuncia que está vivendo um drama de autenticidade e decidiu votlar ao mundo, bem como pretende ir ao encontro de Mário.

            O romance finaliza com um achado, uma passagem da Bíblia em que, após Jesus ser preso junto a Judas, um rapaz ainda mesmo assim o seguia, sem temer o martírio. Quando os que prenderam Jesus tentaram pegá-lo, o rapaz, que tinha apenas um lençol a cobrir o corpo, fugiu nu. Quem seria essa pessoa, indagou-se por fim, Mário, repetindo o gesto de tirar o lençol e ver-se nu, identificando-se com essa misteriosa figura. Esse episódio nos faz refletir, ou como diz Ayala, “ver luzir o nácar no interior da ostra do fato”.

 

 

 

 

 

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