O
Animal de Deus
Walmir Ayala (Editora O Sexo da Palavra, 2020)
Esse romance de Walmir Ayala (1933-1992)
deixa já desde o título uma pista sobre sua temática: o sagrado e o profano, a
natureza animal e espiritual do ser humano. Essa reedição de 2020 é a primeira
desde 1967. Walmir Ayala, autor prolífico e que fez até peças de teatro
infantil em seu tempo, hoje está esquecido e é mais conhecido como poeta. Como
tal, foi elogiado por Drummond e outros.
O romance tem bom prefácio de Paulo
Lima, autor que também pesquisou Ayala em sua dissertação em Uberlândia,
tratando de dois eixos do romance: homoeroticismo e retórica católica. Aqui
recomendamos Paulo Lima e buscaremos ir além.
O romance abre-se sob o signo de um
triângulo amoroso: Ana, Mário e Rafael. Podemos supor que pode ter algo a ver
com o tempo em que Ayala vivia na casa de Lúcio Cardoso e sua irmã Maria
Helena.
Mário conheceu Rafael em um lançamento
de livro. Rafael considera Mário um melhor amigo, mas Mário chama Rafael de
Arcanjo e tem por ele uma adoração obsessiva. Eles têm em comum os diálogos
místicos-religiosos e um gosto erudito. Ouvem Mozart juntos, a Concertante de Mozart simboliza o
Arcanjo. Mário também freqüenta bares ao lado de Rafael, bem como o universo
boêmio carioca. O confidente de Mário é Frei X, frei que, enclausurado, debate
sobre o amor, o pecado e os desejos desesperados. Algumas passagens são claras
como cristais, são a mais resplandecente prosa poética:
Estou
muito impressionado com o suicídio do bailarino J. P. Lançou-se á morte, num
passo de balé, do alto de um viaduto, sobre o asfalto. Parece que ia
amanhecendo. Desmanchou-se em rosa vermelha. E os anjos de Deus o colheram
porque ele era angústia, procura e beleza. E Deus é a resposta desvendada, o
Segredo desvendado e a Beleza desvendada. É por esses tês caminhos que iremos a
Ele
(AYALA, 2020, P. 157).
Frei
X entrou na história logo no começo, após ter encontrado com Mário na festa de
um amigo em comum que, numa festa com fumaça e jazz, debochou da presença de Frei X ali naquele ambiente de
esbórnia, Mário como o qual ele parece compartilhar os mesmos gostos. O que fez
com que Mário, vindo ampará-lo, iniciasse uma amizade. A troca de cartas entre
os dois, em prosa poética, auxilia em muito a estrutura do romance. Como por
exemplo:
O amor
não morre enquanto faz frutificar em nós uma consagração e um canto. E,
acredito que, se nós nos dispusermos sempre para a glorificação do que pode
vir, estaremos já vivendo uma espécie de eternidade no tempo (AYALA, 2020, p.
153).
A relação fica tensa quando Mário
conhece a esposa Lídia, de Rafael, com quem Rafael tem uma filha. Esse universo
à parte já excluía Mário, atormentando-o. Mas quando Lídia confessa que está em
sofrimento, pois descobriu que Rafael tem uma amante, Teresa, isso abala Mário.
De certa forma, Teresa rivaliza com ele. Ele é que era o “reduto”. Mário
psicanaliza Rafael: Rafael busca em Mário o pai. Mário não tolera Teresa, para
ele símbolo, mancha que imaculou o Arcanjo de mentira e traição. No entanto, o
Arcanjo alega que Teresa tinha decaída e estava perdida na vida, mas o que havia
de podre, Rafael redimiu.
A interferência de Mário no amor
entre Rafael e Teresa abala a relação entre os dois, pois Rafael reage
negativamente, Mário vinga-se deixando-o de lado em prol de um amigo chamado
Ismael. E, ainda mais desagradável, conversa com a mãe de Rafael (Dona Dulce) e
verifica que aquela senhora os deseja afastados. Na mãe, Mário reencontra a
amarga rigidez de princípios.
Rafael, que não tinha contatos com
Ana, tem com ela um diálogo em que diz sentir ódio por Mário. Ana diz que é
católica, não aceita o que existe entre ambos, mas diz a ele que afaste-se do
amigo o quanto antes. A seguir, Ana conta a Mário a conversa com Rafael, fato
definitivo para o rompimento entre ambos, que já se anunciava. Nisso, o final é
relativamente feliz, uma vez que Frei X anuncia que está vivendo um drama de
autenticidade e decidiu votlar ao mundo, bem como pretende ir ao encontro de
Mário.
O romance finaliza com um achado,
uma passagem da Bíblia em que, após Jesus ser preso junto a Judas, um rapaz
ainda mesmo assim o seguia, sem temer o martírio. Quando os que prenderam Jesus
tentaram pegá-lo, o rapaz, que tinha apenas um lençol a cobrir o corpo, fugiu
nu. Quem seria essa pessoa, indagou-se por fim, Mário, repetindo o gesto de
tirar o lençol e ver-se nu, identificando-se com essa misteriosa figura. Esse episódio
nos faz refletir, ou como diz Ayala, “ver luzir o nácar no interior da ostra do
fato”.
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