quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Essas palavras não são dólar/Liberdade é um Ato de Linguagem

 

            Esse livro de Saulo Mazagão e Eduardo Andrade, que também tem o nome de “Trem com Tanta Coisa Escrita” (Editora Literatura em Cena, 2020) contêm dois livros em um, dois poetas coabitando e colorindo o espaço literário.

Saulo Mazagão gera a poesia a partir de registros que lembram diários e apresenta nostalgia das cartas. Num deles, Dias Cinzas, admite sentir inadaptação diante do mundo volátil como ele é hoje: “Ainda assim, é mais difícil encontrar quem nos leia com respeito e atenção”. Como ele explicou: “Para alguns, caracteres, mas para o escritor, a palavra se sente”.

Achei tocante a forma como Mazagão aproveitou uma assonância execrada pelos professores de Português, “a boca dela” para poder criar uma poesia expressando sua dor a respeito de um amor por uma mulher bonita, mas que o chamou de chato, não gostou de sua voz, dentre outros signos de rejeição. É um achado falar do feio de uma forma bela.

O poeta fala das coisas que o fazem sofrer, mas destaca as que lhe fazem feliz no poema Entre Livros e Cafés: “Cheiro de livro, cheiro de pessoas, de inteligência, cerveja ou café”. Muito agradável pensar nessa ambiência evocada pelo poeta. Seus poemas também são como cartas falando de suas estranhezas, referências boas ou ruins, suas singularidades e particularidades e do amor. Ele mesmo avisa que poetas falam do amor, falam de amores e, por vezes, são malditos. Em Um Escritor Como Outro Qualquer, ele fala também do amor correspondido, algo que acontece mesmo nesses tempos de internet, uma garota comprou o livro e acertou o seu coração em cheio. Apesar da volatilidade, da falta de tempo, o amor pode desabrochar, pode acontecer.

Mazagão é jovem, mas admira a maturidade, como em Ode à Maturidade. Ele admira Carlos Drummond de Andrade e conta que, no Rio, sua namorada, uma “guria" catarinense, tirou uma foto dele junto ao poeta, momento maravilhoso de amor que ele guarda dentro de si.

            Eduardo Lucas Andrade, nesse livro, estabelece conexões e retorna a alguns temas abordados em livros anteriores. Como um Sísifo poeta, ele repete, mas repete de outra forma.

            Eduardo Lucas continua a ligar poesia e psicanálise, desta vez, no primeiro poema do livro, tomando um mito, o da serpente Ouroboros, para poder diferenciar entre gozo e desejo. O ato repetitivo da serpente de destruir-se é o gozo. O desejo, motor do movimento, é justamente o espaço entre a cauda e a boca da serpente.

            As considerações de Eduardo são muito divertidas, ele mistura crônica, poesia e observação do cotidiano. A leitura me faz rir, quando, em A Automutilação dos Vínculos, ele comenta o quanto o diálogo é algo raro nos dias atuais. Em geral, a pessoa fala e o outro diz, às vezes no meio da fala do outro: “olha aquela abelha ali voando”! Quantas vezes isso não acontece no nosso dia a dia. Na ausência do simbólico, os jovens atuam na carne. Os poemas de Eduardo ensinam que somos como o lagarto que por vezes perde a cauda para fugir do predador: nós precisamos, também, livrar-nos de nossos predadores internos.

            Eduardo escreve uma carta, em 2018, para si mesmo, uma carta onde ele descobre que na doença encontrou o cuidado de si, o conhecimento da ciência médica como um prazer a mais. Ele demonstra, também, gratidão aos lugares onde foi acolhido, como o BH Hostel em Belo Horizonte, lugar onde deixou um livro e fez amizades, lugar onde esqueceu uma insulina e via-a cuidada, guardada. Um lugar onde, mais do que hospedar, simplesmente, há acolhida dos hóspedes como sujeitos, como pessoas.

            Ele também posiciona-se sobre o momento histórico em que vivemos, em que “esfakeamos” uns aos outros, ou seja, as pessoas passam fake news. A política virou futebol, onde uns fazem bullying uns com os outros. No contexto em que vivemos, uma música de Natal torna-se tortura. Ele alerta, em Legitimação do Pior, que não devemos tolerar o insuportável, o preconceito, a violência, a aniquilação das minorias.

            Eduardo também desenvolve o conceito de “superhorroridade”, também muito irônico: é a vontade de mostrar superioridade desnecessariamente, sendo algo que não leva a nada.

 

 

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