Quarentena
Poética: Palavras Que Abraçam
O
livro coletivo Quarentena Poética (Editora
Literatura em Cena, 2020), organizado por Eduardo Lucas Andrade e ilustrado por
Indries Andrade Simões, surge sob o signo do pesadelo que o coronavírus
disseminou pelo mundo. Há, então, a necessidade de ser produtivo em meio a esse
contexto que nos impõe isolamento social, quarentena, etc. As palavras, então,
fazem o papel do abraço. Daí que todos são convidados a fazer poemas para
suportar e entender esse momento histórico que estamos vivendo, bastante similar
ao que passou-se no tempo da gripe espanhola.
Adriano
Felipe da Silva utiliza as imagens míticas da Arvore e Terra para tratar da
intensidade de um relacionamento amoroso. Ao final, quando o homem corta a
árvore, ele corta seu contato com o “Homem de Olhos Verdes”. A Terra é um
personagem que deixou que alguém criasse raízes em si e depois foi embora. O
conto é para sublimar e ficcionalizar essa dor intensa. Sem dúvida, Adriano é
um poeta intenso, mítico, caloroso.
Andressa Aguiar também lida com a dor. Primeiro, a dor de não conseguir escrever. Os poemas em prosa em prosa que produz chamam-se então, bem significativamente, Impasses: “Entre caos e frustração me vi olhando pela janela em um dia chuvoso, ouvindo uma canção francesa no fundo. Dias assim me são nostálgicos. Desperta-me para sentimentos que nem sei de onde vêm” (AGUIAR, 2020, p.27).
A seguir, temos os pensamentos intermitentes de
Claudete Maria Coutinho. Ela tratou de um tema dos mais delicados na pandemia:
o lar, no poema Confissão ao Meu Lar.
Ela conta que sentiu solidão, que falou sozinha, mas que superou rezando,
ficando junto dos filhos, tratou da casa, dos torrões das paredes, dos rabiscos
das crianças, fez sopa, plantou azaléias. Fez as pequenas coisas que podemos
fazer para nos sentir melhor. Outro tema que ela abordou: a solidão, uma
verdadeira doença da pandemia.
A
pandemia e o contexto histórico foi o tema de um poema de Daniela Arêde:
“Pandedia”: “Outro dia, mais um dia/Amanheceu o dia/O sol há de brilhar”. E ela
também sublinha a necessidade de lutar contra o neoliberalismo e o fascismo que
estão no poder no Brasil, dificultando ainda mais a vida social.
Elisabete Andrade Araújo trata de lembranças que, agora nos tempos da pandemia, precisamos resgatar. São os afetos da avó e da neta, contatos agora dificultados, mas que podem ser lembrados e transformados em poesia. São as recordações de infância em Patos de Minas: "Na minha infância, minha mãe fazia doces num lindo tacho de cobre". A pracinha onde brincávamos em nossa cidade do interior...Lembranças boas que, nesse momento de isolamento social, é muito aprazível retomar e transformar na saborosa prosa poética que ela produz, uma poesia doce como os pés de moleques, doces de ameixa, doces de leite e de queijo que aparecem maravilhosamente no poema Recordações de Infância (ARAUJO, 2020, P. 64).
Evandro Vaz Santos, em seu Quarentologia, também aborda esse drama
do esvaziamento das ruas, da falta do contato humano: “Acostumada
estava...Tantas pessoas a andar na rua...E eu, em minha casinha, esculpida por
mãos humanas, espreitava uma chance de contato...Sempre deixavam algo
degustável, naquela Praça...Agora, vejo poucos por aqui...E, a maioria passa em
disparada...” (SANTOS, 2020, p. 76).
Felipe Perin é um analista atentou
ao “Antes do Corona, Depois do Corona” e seus dilemas. Como viver numa casa
onde a convivência sempre foi rasa? Fazer o quê dentro de casa? Ele vai bem no
coração do drama que estamos vivendo: “Antes, não tínhamos tempo para fazer,
depois, não temos mais o que fazer”. Nossa vida, segundo ele, passou a estar no
passado. Antes estava no futuro. Ele alerta que é preciso viver o presente, é
uma barra, alerta. Os poetas são a antena da raça mesmo, penso ao ler Soneto da Quarentena e Que, tratando da difícil necessidade de
tocar, abraçar, transar, nesses tempos em que não se pode tocar, a não ser a si
mesmo. Outra obrigação é sentir o tempo de outra forma, repensar o tempo.
Fernando
Vincit tratou também da falta, sensação muito acirrada nos dias que correm, no
seu poema Peixes: “Eu sinto falta do
seu beijo morno, por que era assim que eu sentia quando seu cigarro estava ao
lado”. Para Vincit, os poetas escrevem a verdade, nem que seja por um minuto.
Guilherme
Camargo Meira fala, de um a dez, dos seres que andam com o coração no último
grau de decomposição, mas que caminham com a carcaça feliz. Hildacira Gritti
explica o nosso problema: “Corpo de Dor”: “Não sou furo, sou borda/ Infinitamente
cortada à lâmina/não sou a dor de um corpo,/sou só um corpo de dor/eu não busco
a morte/porque já flertamos/e ela também não me quis”. No poema Finitude, ela trata mais diretamente
desses estranhos tempos em que perdemos a autonomia: “Eu vi a pressa nos
funerais, o impedimento do adeus, a dor se acumulando num canto, para ser
tratada e esquecida depois”.
Jefferson
Guimarães Rodrigues fala de Minas. Em seus poemas, encontramos aço e flor
fundidos. Há uma tocante homenagem a Marx, sutilíssima, uma crítica à Vale do
Rio Doce que a vê como o demônio indígena Anhangá, assim como ele vê o futuro
da catástrofe ecológica em Restituição de
Posse. Muito me impressionou o poema Filha
de Animais e Homens. Nele, a poética de Jefferson torna-se barroca no bom
sentido, no sentido de Murilo Mendes: “Margarida selvagem, que brota do
cemitério de cachorros, cães germinados, respiram o ar composto pelo pó, do meu
avô, carbonizado” (RODRIGUES, 2020, p. 139).
Juliana
Santos fala de forma muito cativante sobre um psicólogo, homenageando-o: “Aquele
que te auxilia a suportar, e te mostra, que além da dor, existe a beleza de
amar-se e o poder de ser seu próprio curador.” (NASCIMENTO, 2020, p. 143). É uma
poema muito original e belo em homenagem a um psicólogo e a essa profissão.
Como ela muitas vezes lida com o que há de mais repugnante em nós, suponho que
poucas vezes origina poemas tão belos, ao menos na literatura brasileira.
Juliana
é voltada para outros assuntos além da quarentena e da pandemia, adota temas
líricos. É notável o contraste da poesia de Juliana com o tom mais amedrontado
e sombrio de Larissa Wes Jorge, que trata dos temas da pandemia: “Luta contra
um inimigo não conhecido assusta, ninguém sabe como tudo isso chegará ao fim.
Como vamos estar e se esse final será bom ou ruim” (JORGE, 2020, p. 154). Os
poemas de Larissa foram direto no essa quarentena nos faz sentir: “Acordei sem
vontade de viver/Não quis ligar a TV/Nem ler o jornal”. Ela sente angústia
diante das ruas que se fecharam, das pessoas que não mais olham.
Luana
Gomes também é uma professora e estudiosa da psicanálise. Ela escreve de forma
íntima, temos a impressão de que estamos invadindo sua privacidade, folheando
seu diário. É um “veraneio contigo” mesmo, ela chama, atrai, seduz. Ela conta
de uma cirurgia que teve de fazer e que implicava em altos riscos, conta de um
amor à primeira vista e de uma ida dramática ao psicólogo, que me tocou
profundamente: “Contou seus casos e no meio teve uma crise de choro que lhe
doía o estômago”. Ela conta que recebeu “espaço infinito” de sua analista.
Luciane
da Silva Queroga fala de um curioso teatro poético interno: “O Ato Sem o Amor”.
Ela fala da necessidade de não deixarmos que o medo tome o papel de estrela do
nosso palco interior. No teatro da alma, não pode valer o caos: temos de
invadir o palco e decretar que o protagonista do teatro de nossas almas é
sempre o amor, somos donos do espetáculo. O poema “Encaixe Perfeito” fala de um
Romeu e uma Julieta modernos: “ela voava, porque ele se tornou suas asas”.
Esse
encaixe ou desencaixe do amor e suas “variedades” é um dos grandes temas de
Mirelli Barbosa Martins e de um texto dos mais curiosos, onde ela reflete sobre
a fêmea ser o lugar de falta em “Buracos de Todos nós, Amém”, onde ela discorre
sobre macho e fêmea não com ajuda da teoria da castração de Freud, mas com a teoria
de um vendedor de lajotas: “Afinal, por que ter buraco era tão ruim para aquele
vendedor? Talvez ele tivesse medo do que ele poderia fazer com os próprios
buracos”. De fato, Derrida revê essa a teoria da bissexualidade de Freud e toma
a mulher e não o homem como o modelo da sexualidade humana (MARTINS, 2020, P.
200).
Natália
Abreu também trabalha na confluência de poesia e psicanálise e avisa que não é
só uma, é muitas: “criança, menina, mulher, esposa, amiga, filha, profissional,
espiritualista...são tantas que fica difícil listar. A compreensiva, educada e
gentil, que sabe escutar. ” (MACHADO, 2020, p. 202). Sua poesia espelha a
multiplicidade dessa mulher mágica, que trabalha na confluência do divino e da
loucura.
Rafael
de Sá Machado, numa outra chave, fala da modernidade líquida: “Nosso egoísmo e
mesquinhez, apontando uns contra os outros, nossa falta de empatia, nossos
tropeços, de uma breve existência”.(MACHADO, 2020, P. 244). Seus poemas
funcionam como incêndios, é toda uma antologia poética. Mas é importante que
ele pontua, em nossas vidas, a oposição entre artistas e fascistas: “Artistas,
escritores, poetas, romancistas, lutaram como podiam, sem endurecer, para calar
os fascistas” (MACHADO, 2020, p. 247).
Saulo Mazagão é outro autor que me
toca com seu bucolismo mineiro e suas pontuações bem colocadas, no sentido
tanto do analista que vai ao ponto quanto do poeta que vai direto no sentimento.
Ele me faz pensar numa das últimas, senão a última entrevista de Drummond,
evidentemente deprimido, a um interlocutor que creio que era o Luiz Fernando
Emediato. Em dado momento, Drummond comenta com ele que Emediato é mineiro, mas
que Minas já foi um lugar que produzia boa literatura, mas não é mais. Os
mineiros tendem a ser econômicos com as palavras, o que é essencial para
produzir boa literatura, bons poemas. Saulo Mazagão, sendo grande admirador de
Drummond, está aí para provar que Minas ainda produz bons poetas!
Raul
Rizzo é um engenheiro da poesia que, mais do que o engenheiro de alma João
Cabral de Melo Neto, espelha-se no momento atual para reescrever o Agora José de Drummond, texto muitíssimo
atual. E agora? Stop, a vida parou,
foi o dia em que a Terra parou do profeta Raul Seixas, atualíssimo também. Rizzo
também fala de vivências fundamentais e atuais, a atual solidão compartilhada,
algoritmada: “O celular é minha consciência, meu corpo, meu desejo e meu
aflito. Como posso ser um celular, se sou bicho de pele, pé, boca e beijo”. Sem
dúvida, nossas vidas estão agora nesses pequenos celulares, passamos a ser
ferramenta. O celular passou a ser quase uma extensão de nosso corpo, de
ferramenta, também nos tornou ferramenta, como explica Rizzo, diante dele e das
redes sociais, somos “minimamente existência”.
Wildicleia
Oliveira Lopes escreve poemas-cartas que dão asas aos desejos com bastante
fineza. É linda a sutileza com a qual ela conta do ato de ajudar uma amiga a
arrumar uma mala: “Pega as roupas velhas e surradas pela repetição do uso e põe
como base para esta nova montagem, elas servirão de suporte caso a mala sofra
um grande baque” (OLIVEIRA, 2020, p. 250).
Essas
palavras dessa antologia poética são muito alvissareiras. Os poemas de todos
esses poetas, alguns publicados pela primeira vez, literalmente nos emocionam e
aquecem o coração!
Um comentário:
Parabéns aos participantes da Antologia. Foram realmente muito poéticas, ricas, entrelaçadas as palavras que brotaram nesse tempo difícil. Bem comentado amigo, foi o meu desejo desadaptar-me do corre, corre e viver em casa apenas.
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