sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Lições de Abismo Aqui e Agora

  O livro de Gustavo Corção, Lições de Abismo (Livraria Agir Editora, 13a edição, 1973), é a obra literária mais famosa deste esquecido pensador e artista católico. As inúmeras edições desde a primeira em 1953 fazem pensar que Corção tinha um público significativo. Ficaram famosas suas polêmicas com Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athaíde, partidário de um catolicismo mais liberal, enquanto o de Corção era duramente tradicionalista. Corção foi chamado até de “satã” pelo Pasquim, e antipatizado por uma geração que mergulhara, como o padre Nando de Quarup, no catolicismo de esquerda, fazendo a opção preferencial pelos pobres.


Antes de analisar o romance, será preciso contextualizar o catolicismo de Corção. Enquanto intelectuais católicos como Tristão de Athaíde passaram da direita nos anos 30/40 para a esquerda na década de 60, quando do surgimento da Teologia da Libertação, Corção era um ex-ateu, e, quando retornou ao catolicismo, reafirmou furiosamente os dogmas. Diante da polarização da Guerra Fria, acabou resvalando para a postura de apoio ao regime militar brasileiro. Tornou-se, junto com Nelson Rodrigues (embora sem a grosseria ostensiva deste) o reacionário, o direitista que toda a geração marcada por 1968 identificou e atacou. Mas vale a pena reexaminar uma obra literária do intelectual católico Gustavo Corção, que se inscreve numa linhagem de pensadores católicos que se afigura uma de nossas duas únicas tradições de pensamento enraizadas (a outra é a vertente marxista). Distante das metáforas sexuais e das frases de mau-gosto que atrapalham mesmo as melhores obras de Nelson, Corção é um escritor provido de sensibilidade estética: ao falar de morte, passa longe da morbidez e do cinismo. O cineasta (bem pouco afeito à religião) Glauber Rocha, em 1979, reviu Gustavo Corção em outra perspectiva:



Da ortodoxia católica dos dois lados: do catolicismo tradicional e do pseudo-catolicismo da libertação. Aqui, no Brasil, por exemplo, do ponto de vista religioso, o Gustavo Corção é muito mais santo que o Tristão de Athayde. O Tristão de Athayde é inteiramente reacionário, se diz de esquerda mas usa o princípio da fé. Como, na postura de um intelectual, não pode aceitar o absurdo do dogma católico, procura isso no marxismo teórico e, ao mesmo tempo, fornece os mais reacionários artigos anticomunistas em defesa do capitalismo democrático liberal kennedista dentro do Jornal do Brasil, onde ele escreve. O dr. Gustavo Corção, ao contrário, foi um fanático do catolicismo, mas um especialista na história do catolicismo, conhecedor profundo do dogma. Então, foi um militante do absurdo, sem colocar jamais isso em dúvida; portanto, muito mais competente que o dr. Tristão. (Rocha, Glauber. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 1979, p.33)



Glauber reconsiderou Gustavo Corção depois de ter apoiado a abertura de Geisel e decidido dialogar com os militares nacionalistas. Já no final da década de 70 apareceram opositores do projeto do nacionalismo e do modelo estatal para o Brasil, os tais “liberais kennedianos”, que Glauber ataca nessa entrevista. Anteriormente (em março de 1971), explicitou uma visão de Corção bem diferente no Pasquim:



Como é que uma pessoa pode viver sem viajar? D. Quixote, caricatura andante de Cervantes, viajou paca e ainda topou com moinhos de vento. O grilo era o Sancho Pança. O careta mais repressivo, uma espécie de Gustavo Corção dizendo as óbvias moralidades. Se alguém filmar D. Quixote, a primeira coisa é matar logo o Sancho na primeira cena. (Rocha, Glauber. Apud: MACIEL, Luiz Carlos. Rio de Janeiro, Codecri, 1981)



Em Lições de Abismo, um professor de filosofia chamado José Maria descobre que está acometido de um câncer no sangue. Amante de ópera, culto e ilustrado, José mergulha na obsessão da idéia de morte, pensando constantemente no fim. Em meio a devaneios e especulações metafísicas, José Maria se sente desagregar. Está curiosamente próximo do existencialismo cristão, embora faça a seguinte observação:



Chego a dizer, com Kierkegaard, que ‘quanto mais me demonstrarem a imortalidade da alma menos creio nela.’ Que quer isto dizer? Terei eu um ceticismo que me leva a descrer das operações da inteligência, e que prefira a penumbra à claridade, como parece que seja o gosto de um Heidegger, e mesmo de Kierkegaard? Não. Não é bem essa a dificuldade. Se realmente me repugna a iluminação crua do cartesianismo, não me atraem as obscuridades dos filósofos germânicos. (CORÇÃO, Gustavo. 1973, p.55)



A personagem operística Kundry simboliza, daí por diante, a morte anunciada. A partir de então José Maria vive experiências existenciais que lembram as de Antoine Roquentin em A Náusea. Faz então a famosa experiência do negativo, que perpassa a filosofia de Sartre e Heidegger e os textos de Camus. Caindo nos abismos da subjetividade, José Maria vivencia momentos de extrema delicadeza e de sensibilidade muito apurada:



‘A descoberta do eu –li hoje nas páginas de um filósofo – se completa nos abismos da subjetividade.’ Esse é o documento cifrado, escrito em caracteres rúnicos, que me caiu nas mãos por acaso, e que indica de modo tão conciso o caminho do centro da Terra. Eia, Axel, chegou a hora. Despede-te da bela Gräuben. Vamos descer aos abismos. (CORÇAO, 1973, p. 234)



O romance faz um movimento de mergulho e volta à tona, em busca da sala do trono no castelo encantado de si mesmo. José Maria contesta Freud, quer achar o eu cartesiano, onde o eu estava como um rei em seu castelo, mas só encontra silêncio, escuridão, sente-se estrangeiro de si mesmo, vê o próprio dedo como “um pau de cerca derrubado, que o triste dono deste solar arruinado calcula como e quando consertará” (CORÇAO, 1973, P. 237). Nada o consola, revolvendo a memória, sente-se um prisioneiro melancólico que folheia um álbum; não se encontra na própria imaginação, essa “câmara de projeções combinadas, que superpõe espetáculos, aproximando vulcões, estrelas e rosas.” (CORÇÃO, 1973, p.238) Cai, despenca no vazio, acorda gritando, agarrando-se ao título de professor. Imagina o dia em que partirá para o outro mundo, “vendo o mundo afastar-se devagar, como um cais com muita gente agradecida, com muitos lenços”. (CORÇÃO, 1973, p.239)

Em outros momentos, no entanto, José Maria demonstra um elitismo aristocrático, criticando posturas nacionalistas e socialistas por seu coletivismo, que ele julga abjeto, tendo assimilado ao seu cristianismo a crítica de Nietzsche à “moral dos escravos”. José Maria possui uma visão olímpica do mundo:



Vendo que eu voltava à realidade do mundo, e que portanto já podia contar com minha atenção, o bêbedo tirou o velho chapéu num largo gesto patriótico, e exclamou:

- O petróleo é nosso!

(...) Mal dei conta da tese nacionalista que o meu homem com tanto ardor sustentava. Já tenho observado que os bêbedos são quase sempre nacionalistas. Não sei por quê. No momento, aliás, o problema do petróleo pareceu-me insignificante. (CORÇÃO, 1973, p. 79)



No trecho supracitado, o personagem é um “esteta do absurdo” que encontra um nacionalista romântico e boêmio. Surge hostilidade entre os dois, pois José Maria está vivenciando profundamente o negativo. O que o eleva dos abismos da subjetividade é sempre a experiência do belo. Ostensivamente influenciado por Machado de Assis, Corção cita o conto A Missa do Galo e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Consta que publicou, inclusive, um ensaio sobre Machado. Num trecho em que José Maria comenta um adultério, uma situação machadiana vêm à tona:



Apareceu então no vão entreaberto um rosto comprido e assustado. E ficamos ambos em silêncio um diante do outro, na porta agora escancadara. Era André. O marido de Eunice. O primeiro marido. Nesse momento, apesar de toda a intensidade que trazia, o meu ciúme desmoronou-se como um castelo de cartas. Era André. (...) Na porta, André chegou-se mais perto de mim. Estava lívido, tremia, mas conseguiu falar:

--Tome conta de Eunice. Enquanto somos só nós dois, não tem muita importância. (CORÇÃO, Gustavo, 197: p.132)



A questão do adultério, tema que tortura Bentinho por todo o Dom Casmurro, e que até hoje suscita polêmicas, aparece como um problema moral superado, o que é curioso no livro de um romancista católico, e que era hostil às decisões do Concílio Vaticano II.

A devoção de José Maria às rosas, que identifica com mulheres, o faz observar, na festa em homenagem a um general e ministro em que comparece, que a relação de adoração e fruição estética que ele mantêm com as belas flores não está ao alcance do general-ministro:



O que ele vê nesse jogo de espelhos, rosas aqui, fornecedores acolá, é a sua própria importância, a sua própria face, a grande, a única realidade, em torno da qual o mundo inteiro é uma enorme moldura. (CORÇÃO, 1973: p. 97)



Mais adiante, o esteta teoriza sobre o coletivismo, mal que assola o mundo. Neste sentido, ele lembra Huysmans e Oscar Wilde, que, estetas e aristocratas, se entregavam ao hedonismo e acreditavam na máxima de Villiers de Isle-Adam: “Viver? Nossos criados farão isso por nós.” Mas, no livro Lições de Abismo, essa repulsa à vulgaridade é envolta em implicações místico-religiosas. É a doença que impulsiona a reflexão de José Maria. Como em Wilde e Huysmans, aqui há a repulsa pela ascensão das massas no século XX, equacionada pelo personagem José Maria com degradação moral e demagogia vulgar, deixando transparecer uma característica do pensamento conservador. Remete também a Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne:



Na Viagem ao Centro da Terra de Júlio Verne eu vejo um grande simbolismo: a cozinheira e a jovem Gräuben ficam para trás, são por assim dizer abandonadas – ao contrário do que acontece nas aventuras do correio do Tzar, em que Marfa e Nadja acompanham o herói – para que se acentue nitidamente o caráter masculino da curiosidade penetrante e vertical. (CORÇÃO, Gustavo. 1973: p.185)



O livro de Gustavo Corção resguarda uma vitalidade, pois o surgimento da AIDS tornou essa vivência da qual ele fala, a realidade de uma pessoa que vive com uma doença incurável, uma presença cotidiana em nosso mundo – e aliás, estamos tratando aqui da situação-chave, da pedra de toque do romance.

Lições de Abismo foi elogiado por Oswald de Andrade e dado de presente para o filho Rudá, o que mostra a tolerânca ideológica de Oswald, que, no entanto, fez ao autor da obra a seguinte ressalva:



E o caso Corção vem confirmar o que já disse – temos romances mas não temos romancistas. Homens que escrevem maravilhas são muitas vezes no convívio verdadeiros desarmados intelectuais. Geralmente inconscientes e mesmo incultos. A essa fatalidade que pesa sobre a nossa literatura não escapa o próprio Gustavo Corção que acaba de publicar um triste livro de polêmica ideológica, confirmando-se num pequeno catolicismo de Laranjeiras e Centro Dom Vidal. (ANDRADE, Oswald de. 1972: p.169)



Oswald faz uma clara distinção entre homens e obras, criticando não a obra literária, que reconhece transcender o catolicismo reacionário de Corção, mas o modernista contesta o texto onde Corção tece considerações ideológicas.

Em Lições de Abismo, são as situações existenciais vividas pelo personagem José Maria que garantem a perenidade da obra. O livro teve a sorte de ser portadora de um assunto que a rejuvenesceu. Estranhamente, a preocupação cotidiana e pungente com a mortalidade, que o protagonista recomenda, parece salvar do tempo suas palavras, se não podia salvar a si próprio.

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