quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Padre Tiãozinho: Céus e Terra Passarão, Mas Sua Palavra Não Passará

 

 

            Padre Tiãozinho: Céus e Terra Passarão, Mas Sua Palavra Não Passará

 

            As pandemias nunca foram novidade na história da humanidade. A peste negra da Idade Média era uma referência distante, em livros didáticos, até que vimos de perto esse drama com a pandemia de Aids que levou tantos artistas tais como a atriz Sandra Bréa, o escritor Caio Fernando Abreu, dentre outros.

            A obra de padre Sebastião ainda está para ser estudada em livro, preferencialmente. Ela é extensa. Inclui desde sua infância em Japaraíba ao trabalho de São Vicente na Vila Militar. Fica aí a dica de um estudo biográfico mais amplo. Essa coluna será somente uma humilde e limitada crônica.

            O pesadelo voltou com a Covid 19 e agora parece que, como na canção de David Bowie, “todos os pesadelos chegaram ontem e estão aqui para ficar”: crise econômica desde 2008, ataques de atiradores neonazistas em escolas, bem como a possibilidade, como disse o biólogo Atila Ilamarino, de ficarmos nesse abre e fecha eternamente, de agora em diante, com a chegada de uma pandemia a cada dois anos.

            Diante desse horizonte sombrio, vale lembrar do sorriso e da pessoa radiante, alegre, abençoada de Padre Tiãozinho. Eu conheci quando meu pai levou ao encontro do nosso querido padre a ex-mulher de um amigo de meu pai. Não sei se os desgostos da separação influenciaram. Na época, impressionou-me o sofrimento daquela mulher. Parecia algo irreal. E foi padre Tiãzinho quem a acolheu num momento difícil daqueles. De longe, imaginei como era difícil acolher uma alma que precisava tanto ser ouvida como aquela, pois era alguém cuja fala abundante não seria qualquer um que poderia atender. E pareceu-me que Tiãozinho era um bálsamo para ela. Nesse episódio eu já soube tratar-se de um homem extraordinário.

            Muitos anos depois quando eu vim morar em Bom Despacho, dar aulas na então UNIPAC, uma pessoa próxima a mim narrou que Tiãzinho também tinha feito esse mesmo papel semelhante junto a ela, em um momento de sofrimento, tendo sido abandonada pelo companheiro e ficado desamparada com um filho para criar, contou-me que estava desiludida com a igreja, tinha conversado com vários padres e eles não tinham sido compreensivos com seu drama, bem como sua família, tendo até sido dispensada por um deles de ir à igreja. Foi somente padre Sebastião quem a acolheu e ouviu seu grito mudo, seu sofrimento.

            Tiãozinho era incrivelmente ocupado, passou a atender outras cidades da região centro-oeste a partir de um determinado período, não só a vila militar. Suas obrigações tinham se multiplicado, mas lembro-me de tê-lo visitado para conversar algumas vezes, em ocasiões mais felizes. Eu levava peixe de presente, ele gostava muito de pratos à base desse alimento. Eu cheguei a ver que ele lia a Revista Caros Amigos, agora extinta, revista de esquerda, embora ele vivesse praticamente dentro de um quartel. Igualmente causou-me muita impressão quando eu o ouvi comentar, em um curso que lecionou para mm e para um grupo, que não há como negar que a força que nos move é a sexualidade e que ele concordava com a Psicologia.

            Achei-o ousado quando ele falou que fez uma pesquisa de campo em uma cadeia nos tempos de estudante. Procurou criminosos e perguntou-lhes se tinham sido batizados, quem eram os padrinhos, se acreditavam em Deus, etc. E chegou à conclusão de que não cometiam crimes “por falta de Deus no coração”. O fato de terem tido contato com a religiosidade não funcionou de forma eficiente como salvaguarda para que não cometessem crimes, concluiu ele em sua pesquisa. Imagino que essa pesquisa possa ter causado perplexidade em quem a avaliou.

            Ao conversar com Tiãozinho, que lecionava Ética na Academia de Polícia Militar, fiquei muito feliz ao encontrar um dos livros de meu pai na lista das leituras recomendadas aos seus alunos. Curiosamente, eu também lecionava Ética na UNIPAC naquela mesma época. Eu e Tiãzinho rimos muito das coincidências, ficamos amigos. Ele sempre gostava de contar que teve dificuldades com latim no seminário e meu pai ajudou-o muitíssimo. Era eternamente grato.

            Ao comentar o fato com Cássia, esposa do coronel Adair, que foram as últimas pessoas a acompanharem padre Tiãozinho antes dele ser entubado, Cássia revelou-me que já tinha escutado inúmeros outros relatos assim. Minha amiga professora e advogada Janaína Lucas disse-me sentir muita saudade de Tiãozinho ao passar pela vila militar.

            E também devemos dar graças aos discípulos deixados por padre Sebastião: a obra deixada por ele na vila militar foi levada adiante e terminada graças à atuação do coronel Adair e de sua esposa Cássia, bem como do empenho de toda a comunidade.

            Ao pensar em Tiãozinho, a memória me traz outros de meus mortos: Alessandro Jordão, da Jordão Financeira, meu ex-aluno, que morreu também de covid e deixou cinco filhos órfãos. Anastácia, minha aluna de serviço social, também cronista, também morta na pandemia. É tão triste pensar na morte desse homem santo que é preciso recorrer ao romancista Lúcio Cardoso: devemos pensar que Deus é infinito, incompreensível, intenso como um canteiro de violetas que nunca para de florescer, como disse esse escritor. É triste como pensar, por exemplo, na crônica de Dilermando que conta que, a senhora Dora Kohnert, ao ser presa injustamente por lutar por creches para as crianças da cidade, manteve, no caminhão que a levou por Bom Despacho, a cabeça erguida o tempo todo.

            Padre Tiãozinho, presente! Dora Kohnert, presente! Jordão, Anastácia, não morreram de todo, presentes! Cabeça erguida, sempre!

 

sábado, 17 de dezembro de 2022

Meu nome é machado: Dostoiévski e as Metafísicas de São Petersburgo

 

Meu nome é machado: Dostoiévski e as Metafísicas de São Petersburgo

 

Meu nome é machado: Dostoiévski e as Metafísicas de São Petersburgo

O autor que escreveu a Rússia 

O principal escritor da Rússia é o romancista Fyodor Mikhaylovich Dostoiévski. A cultura russa e a mentalidade russa reúnem-se nele, em uma espécie de síntese mágica. Toda a produção literária anterior antecipa Dostoiévski, tudo que vem depois resulta dele. Não há dúvida de que ele é o maior gênio nacional da Rússia.

A herança de Dostoiévski é imensa e quase todos os estudiosos estão de acordo com a importância central de seu romance Crime e Castigo. Se Dostoiévski é o principal escritor da Rússia, Crime e Castigo é a principal obra da literatura russa e o texto fundamental da história russa.

Conseqüentemente, não há nada acidental ou arbitrário sobre ele, e não pode haver. Certamente este livro deve conter algum misterioso hieróglifo, no qual todo o destino russo está concentrado. Decifrar este hieróglifo é o mesmo que obter o conhecimento do impenetrável Mistério Russo.

A Terceira Capital - A Terceira Rússia

O romance se passa em São Petersburgo. Este fato, em si mesmo, tem um significado simbólico. Qual é a função sagrada de Petersburgo na história russa? Pela compreensão disso chegaremos perto da posição de Dostoiévski.

São Petersburgo adquire uma significação sagrada somente em comparação com Moscou. Ambas as capitais estão em estreita ligação uma com a outra por uma lógica cíclica, por uma linha simbólica. Rússia teve três capitais. A primeira - Kiev - foi a capital de um estado nacional etnicamente uniforme, situado na periferia do Império Bizantino. Aquela região nordeste fronteiriça não desempenhou um importante papel civilizatório nem sagrado. Um lugar habitual para bárbaros arianos. Kiev é a capital da Rússia étnica.

A segunda capital - Moscou - é algo muito mais importante. Ela adquiriu uma significação especial no momento da queda de Constantinopla, quando a Rússia tornou-se o último Reino Cristão Ortodoxo, o último Império Cristão Ortodoxo restante.

Conseqüentemente alguns acreditaram: “Moscou é a Terceira Roma”. A idéia de um reino na tradição católica ortodoxa tem um especial papel escatalógico: o Estado, pelo reconhecimento da perfeição da verdade da Igreja é, em conformidade com a Tradição, o obstáculo no caminho do “Filho da Ruína”, o impedimento ao advento do Anticristo.

O Estado Cristão Ortodoxo, constitucionalmente reconhecendo a verdade da Cristandade Ortodoxa e a influência espiritual do Patriarca, é o “cathecon” ou “impedimento” (conceito presente na segunda carta de São Paulo Apóstolo aos Tessalonissenses). A introdução do Patriarcado na Rússia tornou-se possível apenas no momento em que caiu o Império Bizantino e, conseqüentemente, o Patriarcado de Constantinopla perdeu sua sigificação escataológica. Pois essa significação é concentrada não apenas na hieraquia da Igreja Cristã Ortodoxa, mas no Império que reconhece a autoridade desta hierarquia. Assim se segue a significação teológica e escatológica de Moscou.. A queda do Império Bizantino significou, na visão apocalíptica da cristandade ortodoxa, a aproximação do período de “apostasia”, de falsidade generalizada. Apenas por um escasso tempo pode Moscou tornar-se a Terceira Roma a ponto de retardar o advento do Anticristo, postergar o momento em que sua chegada se tornará um fenômeno universal. Moscou assim é, essencialmente, a capital de um Estado novo. Não um Estado nacional, mas de um soteriológico, escatológico, apocalíptico. A Rússia de Moscou, com seu Patriarca e rei cristão ortodoxo (ou czar), é uma Rússia que é absolutamente diferente daquela Rússia de Kiev. Não está mais na periferia do Império, mas é o último baluarte da salvação, a Arca, a terra limpa na qual a Nova Jerusalém irá descender.

São Peterbusrgo é a capital da Rússia que vem após a Terceira Roma. De certa maneira não é uma capital, não pode ser – “não haverá uma Quarta Roma”, está escrito. São Petersburgo estalebece a Terceira Rússia. Terceira pela condição, estrutura e sentido. Ela não é nem um Estado nacional, nem uma arca soteriológica. É uma estranha e titânica quimera, o “pós-morte” do país, a nação que vive e se desenvolve em um espaço que está além da história. Petersburgo é uma cidade de “Nav” (“encarnação da Morte”, em russo antigo), uma cidade do lado oposto. Assim se compreende a assonância de rio Neva (onde Petersburgo está situada) e “Nav”. A cidade do luar, da água, das construções estranhas, alheia ao ritmo da história, ao nacional e à estética religiosa. O período petersburguense da história da Rússia era o terceiro sentido de seu destino. Era um tempo de russos extraordinários, de russos que estavam além da arca. Os antigos crentes foram os últimos a embarcar na arca da Terceira Roma pelo batismo de fogo.

Dostoiévski é o escritor de Petersburgo. Ele não é compreensível sem Petersburgo. Mas Petersburgo em si permaneceria em um virtual e fantasioso estado sem Dostoiévski. Ele a revitaliza, e revela o sentido dessa enigmática cidade. Graças a Petersburgo, a literatura russa pode apresentar-se ao mundo

Se o período kieviano é o período das lendas épicas e o de Moscou o tempo da soteriologia e da teologia nacional, o de Petersburgo traz para a literatura da Rússia uma base profana que costuma ter um valioso sentido nacional, um rastro louvável de substâncias que tinham morrido. Literatura é uma proteção, uma mancha na superfície das ondas siderais, um vácuo que é lamentado com desespero. Dostoiévski prestou tanta atenção a esse chamado que perdeu tudo para ressuscitar com um heróico comportamento espiritual. Dostoiévski é mais do que literatura: é teologia, lenda épica. Por isso sua Petersburgo busca uma idéia, um sentido. Ela constantemente transforma-se na Terceira Roma. Ela agoniza e se debate na busca pelas fontes mais íntimas da nação russa.

O principal personagem de Crime e Castigo é chamado Raskolnikov, uma referência direta ao Cisma (ou “Raskol”). Raskolnikov é um homem da Terceira Roma, geworfen (ou “atirado”) dentro da navi Petersburgo. A alma sofredora que, por uma estranha lógica, repentinamente encontra a si mesma, após sua auto-imolação no úmido labirinto das ruas de Petersburgo e seus muros amarelos, em suas avenidas encharcadas e seus sombrios céus cinzas.

A Capital

A trama de Crime e Castigo é uma estrutura análoga a de O Capital, de Marx: a profecia da futura Revolução Russa. Simultaneamente, é um esboço de uma nova teologia, uma teologia de um ser desamparado por Deus, que se tornaria o principal problema filosófico do século XX. Esta teologia poderia ser chamada de “teologia de Petersburgo”.

A história é extremamente simples e pode ser resumida assim: o estudante Raskolnikov percebe nitidamente a realidade social como uma revelação do Mal, sensação que é extremamente característica de certos ensinamentos gnósticos e escatológicos.

O cianeto de potássio da civilização; a degeneração e o vício florescem onde as conexões orgânicas, os significados espirituais e as anagógicas espirais das hierarquias que ascendem sem obstáculos ao céu estão perdidas; a percepção da realidade profana; a insuportável perda da Terceira Roma; o horror perante o encontro com a substância universal do Anticristo, com Petersburgo: Raskolnikov acredita ser absolutamente correto que o pólo simbólico do mal seja um caráter feminino pervertido (Kali), que é amaldiçoado pela religião. A decadência e degradação do mundo: isso tudo é a velha usurária, a Baba-Yaga do mundo moderno, a Mulher do Inverno, a Morte, a assassina. Fora de sua suja morada ela trefila os fios da teia de Petersburgo, enviando através de suas ruas escuras Luzhins, Svidrigaylovs, Dvorniks e Marmeladovs, os “irmãos negros”, agentes secretos do pecado capitalista.

As armadilhas do submundo envolvem tavernas e bordéis, antros de miséria e ignorância, escadarias e portões envoltos em semi-escuridão. O centro da roda do mal de Petersburgo é encontrado. Rodion Raskolnikov completa o reconhecimento ontológico. Certamente, ele é um comunista, embora esteja muito mais próximo dos socialistas revolucionários, dos narodniks. Certamente, ele está familiarizado com os ensinamentos sociais contemporâneos. Conhece línguas estrangeiras e poderia ter se familiarizado com o Manifesto de Marx ou mesmo com o Capital. O que é importante está no começo do Manifesto: “... um fantasma ronda a Europa...”. Isto não é uma metáfora, mas uma definição precisa do modo especial de ser que se cristaliza depois que uma sociedade se torna profana, depois da “morte de Deus”: é a partir desse momento que nós estamos no mundo dos fantasmas, no mundo das visões, das quimeras, das alucinações, das tramas da morte. Pois para a Rússiafoi justamente isso que significou a “jornada de Moscou para Petersburgo”, a encarnação do Nieva dentro da cidade, dentro do fantasma-cidade. Esta encarnação nunca poderia ser tão completa como em Crime e Castigo.

O espectro comunista tornou tudo realisticamente fantasmagórico. Tendo se estabelecido na consciência do estudante, que procurava pelo perdido Logos, ele mergulha-o em uma corrente de visões distorcidas: um velho libertino arrastando uma adolescente bêbada em algum lugar; Marmeladov chorando de um modo arrependido, depois de ter vendido o último xale de sua amada para conseguir dinheiro para o álcool; o endemoniado Svidrigaylov, o enviado da eterna teia, que está sob a tutela da velha usurária, aproxima-se silenciosamente na direção da casta irmã de Rodion. Mas o que é esta ilusão? O fantasma, tendo possuído a consciência, de fato liberta o inconsciente: a realidade revelada é assustadora, intolerável, mas verdadeira. Porém seria o Mal compreensível pelo Mal? Uma ilusão revelari o caráter ilusório do mundo? Pela insanidade pode-se compreender que a humanidade vive de acordo com as leis de uma lógica doente? O fantasma do marxismo, o narcótico da revelação, o chamado gnóstico para o levante contra o maligno Demiurgo... A sangrenta dor destas feridas é mais aguda do que a imagem de uma brilhante e iluminada sala, cheia de casais elegantes rodopiando enquanto dançam. 

Raskolnikov, matando a velha decrépita, comete um ato paradigmático, realiza um Feito que, de um modo arquetípico, é reduzido a práxis, tal como o marxismo a concebe: o Feito de Rodion Raskolnikov é o ato da Revolução Russa, o sumário de toda a literatura social democrata, narodnika e bolchevique. É um gesto fundamental da história russa que ocorreu logo após Dostoiévski, tendo sido preparado muito antes dele em enigmáticos pontos fundamentais do destino nacional. Toda a nossa história é dividida em duas partes: antes do assassinato da velha usurária por Raskolnikov e depois desse assassinato. Mas sendo um fantasmagórico e atemporal momento, ele lança flashes para frente e para trás dentro do tempo. Mostra a si mesmo nas revoltas camponesas, nas heresias, nas rebeliões de Pugachov e Razin, na divisão da Igreja Cristão Ortodoxa (Cisma, Raskol em russo), no advento de uma era de trevas (eventos que começam na Rússia já no século XVII), em todas as complicadas, multifacetadas e insaciáveis metafísicas do Assassinato Russo, o qual difunde-se da profundidade do nascimento eslávico até o Terror Vermelho e o Gulag. A mão levantada sobre o crânio da vítima foi impelida por uma apaixonada e profunda irrupção de raiva.

Nós, russos, somos uma nação abençoada. Por isso todas as nossas manifestações – altas e ordinárias, graciosas e terríveis – são santificadas por um sentido sobrenatural, pelos raios luminosos da cidade celeste, são ungidos por uma substância transcendente. Na abundância da Graça nacional o Bem e o Mal são misturados, lançados um contra o outro, e repentinamente as trevas se iluminam, enquanto que algo branco e cristalino transforma-se em um simples inferno. Somos tão incognoscíveis quanto o Absoluto. Somos uma nação divina. Mesmo nosso crime é incomparavelmente superior às virtudes dos outros.

Não “Não matar”

Entre os meados do século 19 e o início do 20, a consciência russa foi possuída por uma estranha compreensão de um dos dez mandamentos - "Não matar". Discutiu-se esse mandamento como se fosse a essência do cristianismo. Teólogos, revolucionários e terroristas constantemente o repetiram (Savinkov foi um obcecado por esse mandamento), assim como humanitários, progressistas e conservadores. Tanto o tema como a argumentação em torno dele eram tão importantes que afetou, em grande medida, toda a consciência moderna russa. Embora o significado desse debate tenha desaparecido com o advento da bolcheviques, ele ressurgiu no final do período soviético e começou a assombrar os cérebros intelectuais com uma força renovada.

"Não matar" não é exatamente um mandamento cristão e do Novo Testamento, mas sim judaico e do Velho Testamento. Esta é uma parte da Lei, a Torá, que regula, como um todo, o exotérico, normas exterior, social e ética da vida popular israelense. Esse mandamento não tem nenhum significado especial. Você pode encontrar algo análogo na maioria das tradições, nos seus códigos sociais. No hinduísmo o equivalente chama-se "ahimsa", "não-violência". Este "não matar", assim como o resto dos parágrafos da lei, regulamenta a liberdade humana, dirigindo-a para o fluxo que, de acordo com o espírito da Tradição, pertence à melhor parte, ao Caminho da Mão Direita. Além disso, é significativo que "não matar" não tem qualquer sentido absoluto metafísico. Bem como todas as estátuas exotéricas, este mandamento só serve para que seja mantida a existência coletiva em ordem e para preservar a comunidade de cair no caos ("A Lei nada faz", segundo São Paulo Apóstolo). Em princípio, se compararmos a realidade do Velho Testamento com o Novo, a fórmula para "não matar" corresponde a aproximadamente a inscrição "é proibido fumar", apresentada em uma parede de um teatro. Fumar em um teatro não é permitido, não é bom. Quando alguns espectadores tensos começam a fumar, os funcionários do local ficam em uma situação problemática. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e sujeita à repressão pelos servos da justiça.

É muito significativo que o Antigo Testamento esteja cheio de desafio não-observância desse mandamento: assassinatos estão em todas as suas páginas. É cometido não apenas por pecadores, mas também por homens justos, reis, soberanos ungido, até mesmo profetas. Aluno favorito de Elias, o profeta Eliseu foi especialmente severo: não tinha misericórdia nem mesmo de crianças. Eles mataram durante as guerras, mataram nativos e estrangeiros, mataram criminosos e também mataram mulheres. Eles não tinham misericórdia com crianças, idosos, goyim, profetas, idólatras, feiticeiros, nem mesmo parentes. 

No Livro de Jó, Jeová - sem qualquer razão especial, exceto uma controvérsia bastante superficial com Lúcifer - trata de uma forma sádica seu próprio homem escolhido e virtuoso. Quando Jó, coberto com lepra, fica indignado com isso, Jeová o intimida com dois monstros: a terra chamada Behemoth e o mar chamado Leviathan. Jeová o mortifica no sentido moral também. A investigação bíblica moderna prova de modo convincente que o texto original do Livro de Jó chega a seu fim no auge da tragédia, e que o final ingenuamente moralista foi adicionado muito tempo depois pelos levitas, que ficaram aterrorizados com a natureza rígida dos fragmentos mais arcaicos do Antigo Testamento.

Em outras palavras: o mandamento de "não matar", originado no contexto judaico, não tem qualquer caráter absoluto nem qualquer significado especial.

Não houve controvérsia sobre esse tema e, aparentemente, nenhuma reflexão foi dada com qualquer propósito expresso. Isso não quer dizer que o mandamento nunca foi tido em conta. Tentaram que não fosse derramado sangue sem nenhum propósito. Eles também tinham o tribunal rabínico. Se alguém fosse assassinado em vão, uma punição seguramente acontecia: a lei do costume, o mandamento comum. Nada de especial, tão somente o padrão geral de conduta humana.

No cristianismo tudo é diferente. Cristo é o cumprimento da lei. A Lei é ele. A missão do Direito é realizada. Em certo sentido, ela é removida da agenda - mas não revogada. Os problemas espirituais passam para um plano radicalmente diferente. A partir de agora a Pós-Lei, a era da Graça, começa. Estritamente falando, o advento dessa nova era significa uma era onde os Mandamentos perdem a importância.

Mesmo o primeiro mandamento de adorar o único Senhor é superado pelo Novo Testamento, pelo preceito do amor para Ele. Através da Encarnação, o Logos-Deus traz para as relações entre o Criador e toda a criação algo absolutamente novo. A partir de então tudo acontece sob o signo de Emmanuel, pela fórmula benéfica, "Deus está conosco". Deus não está em algum lugar longe, Ele realiza não apenas o papel de Juiz e Legislador, mas também o papel do Bem-Amado e Único Amor. O Novo Mandamento não rejeita os dez anteriores, mas os torna desnecessários.

A humanidade do Novo Testamento é diferente daquela do Antigo, que é judaica (ou pagã). Ela ostenta o sinal do Amor transcendente. É por isso que a dicotomia da Lei – adorar/não adorar, roubar/não roubar, seduzir/não seduzir e, finalmente, matar/não matar – não faz mais sentido.

O novo homem não precisa de regras, ele vive por uma única coisa - o sereno, eterno e indivisível Amor, permanecendo em oração e contemplação. Aqui, não há apenas "não matar". Os santos cristãos ririam dessa cautela porque neles a dualidade já está abolida, a barreira entre o eu e o não-eu é esmagada. Além disso, eles querem ser mortos, eles aspiram a sofrer, eles almejam o martírio. Uma vida cristã valiosa não tem qualquer relação com os velhos Dez Mandamentos. Eles foram de uma vez e para sempre superados com o batismo sagrado. Além disso, há apenas a realização na Graça. 

Mas vamos considerar um cristão não em santidade, não em uma vida monástica, não em ascetismo e na vida eremítica. Será que a idéia definida pela ordem do Antigo Testamento é válida para ele? Não. Ele é batizado, o que significa ter renascido e, conseqüentemente, Deus está com ele também. Dentro dele, não fora. Portanto, mesmo sendo um pecador, um indigno da vida segundo o Velho Testamento, esse novo homem está abendoçoado pelo fluxo de luz da Graça. Observar ou não observar a legislação do Antigo Testamento não tem nada a ver com a essência íntima da existência cristã.

Claro, é mais conveniente para uma sociedade ter indivíduos que são obedientes e observam regras. Para uma sociedade cristã também. Mas tudo isso não tem qualquer medida comum com o sacramento da Igreja, com a vida mística de um crente. Aqui, o elemento mais interessante começa: um cristão, quando desobedece algum dos Mandamentos do Antigo Testamento, na verdade demonstra que nele não foi concluída a natureza misteriosa do Novo Homem, a personalidade potencial dada pelo Espírito Santo na fonte do batismo.

Mas quem pode gabar-se de ter atingido a completa deificação? Quanto mais se é santo, mais parece pecador e terrível para si mesmo quando colocado face à Trindade Luminosa. Conseqüentemente, como no caso do yurodivy ("loucos de Deus") que depreciavam o caráter humano, a Queda pode ser, de um modo paradoxalmente cristão, um sacramento.

Observar os Dez Mandamentos não é um fator decisivo para um cristão ortodoxo. Só uma coisa é importante para ele: Amor, o Novo – absolutamente novo – Testamento, o Testamento do Amor. Os Dez Mandamentos sem amor é o caminho para o inferno. E se o amor existe, então esses mandamentos não têm nenhum significado mais: isso tudo foi claro para os intelectuais radicais russos. No livro de Boris Savinkov, "The Pale Horse ", um terrorista chamado Vanya (um personagem literário, inspirado em Ivan Kalyayev ) diz que antes de cometer um assassinato: 

- Olha, se você ama muito, se realmente ama, então você pode matar, não pode?.

E mais:

"... é necessário passar por um tormento na cruz, é necessário se empenhar a fazer tudo isso por amor e para o amor. Mas absolutamente por amor e para o amor... Se estou vivo, é para quê? Talvez eu viva para a hora da minha morte. Peço então: Senhor, dai-me a morte em nome do amor. Você não pode orar por assassinato, pode?"

Savinkov viveu, pensou, escreveu e matou depois de Dostoiévski. Mas nada é relacionado a Raskolnikov. Raskolnikov mata não apenas por causa da humanidade (embora para isso também), ele mata por causa do Amor. A fim de passar por sofrimento, ele tem que morrer, para matar a morte em si mesmo e nos outros. Ivan Kalyayev, bem como o próprio Savinkov, são profundamente russos, profundamente cristãos ortodoxos, profundamente “pessoas dostoiveskianas”: assim como toda a nação, têm um evidente caráter divino, e estão repletos de uma visão de mundo cristã ortodoxa elevada e paradoxal, algo que faz o mais refinado e profundo sistema filosófico ocidental parecer uma bobagem. Os russos não formularam uma teologia: eles a sofrem e a vivem por toda a sua vida. Esta é a teologia, que vem através dos poros, através da respiração, através de lágrimas, através do sono e que faz uma horrenda expressão de ira através do tormento e da tortura – através do úmido e sangrento elemento carnal e espiritualizado da Nova Vida. 

Com amor e por amor ao Amor pode-se fazer tudo. Isso não significa que se deva fazer tudo e que todos os mandamentos devem ser revogados, rejeitados. Em nenhuma circunstância. Deve-se apenas demonstrar com a vida e com gestos que existe - e isso é o principal - outra medida de ser, uma nova luz, a luz do Amor.

O local do assassinato da velha agiota é São Petersburgo. Esse é o lugar do amor na Rússia, locus amoris.

Rodion levanta as duas mãos, dois sinais angulares, dois tendões do plexo, duas runas sobre o gelado e apodrecido crânio do Capital. Em sua mão há um grosseiro e bruto artefato. Com esse artefato, o ritual central da história russa e do mistério russo está comprometido. O fantasma se materializa, o momento se projeta para fora do tempo terrestre (Goethe teria ficado imediatamente louco se tivesse visto esse momento em que o tempo parou...). Duas teologias, dois testamentos, duas revelações se encontram em um ponto mágico. Esse ponto é absoluto – e “machado” é o seu nome.

Labris - uma breve genealogia do machado 

As hipóteses mais brilhantes relativas a este artefato - sua origem e seu simbolismo - foram realizada por Herman Wirth, um gênio científico alemão e um especialista na área de recursos humanos pré-históricos e letras antigas. Wirth mostrou que o machado duplo era o símbolo primordial do Ano, do círculo, de suas duas metades: uma segue o solstício de inverno, e o outro o seu oposto. O machado padrão (com apenas um lado) simboliza a metade do ano, como regra a primavera, a metade ascendente.

Além disso, o uso utilitarista de um machado para cortar as árvores, também de acordo com Wirth, tem uma relação com o simbolismo anual, pois a Árvore, de acordo com a Tradição, simboliza o ano. Suas raízes são os meses de inverno, e sua coroa os de verão. Portanto, cortar árvores se relaciona, no contexto primordial simbólico das sociedades antigas, com o advento do Ano Novo e o final do velho.

O Machado é, simultaneamente, o Ano Novo e o instrumento com o qual o velho é destruído. Ao mesmo tempo é um instrumento cortante, dividindo o Tempo, cortando o seu cordão umbilical no ponto mágico do Solstício de Inverno, quando o grande mistério da morte e ressurreição do Sol acontece.

No antigo calendário rúnico, a runa que retratava o machado era chamada de "thurs" e foi dedicada ao deus Thor. Ele caiu sobre os primeiros meses do Ano Novo. Thor era o Deus do Machado ou o seu equivalente simbólico, o Deus do Martelo ou Mjollnir. Com este Machado-Martelo, Thor esmagou o crânio da Serpente do Mundo, Irmunganthr, que flutuava nas águas inferiores das trevas. Mais uma vez o mito do solstício, ligado ao ponto do Ano Novo: a Serpente é o Inverno, o frio, as águas mais baixas do ano Sagrado, aonde o sol polar desce. Thor, que é ao mesmo tempo o Sol e o espírito do Sol, vence o frio e torna a Luz livre. Em fases posteriores do mito, a imagem do Sol-Luz é dividida em duas - o salvador e os salvos - e depois em três, com a adição de instrumento da salvação, o machado. Na forma primordial, todos aqueles personagens eram algo unidos: Deus-Sol-Machado (ou Martelo).

A mais antiga inscrição do sinal de machado nas antigas cavernas do Paleolítico e gravuras rupestres foram analisadas por Herman Wirth à luz de todo o ritual e estrutura do calendário. Ele traçou a constância incrível desse proto-machado através das mais diferentes culturas, línguas, localidades e épocas. Ele mostrou a relação etimológica e semântica das palavras que significam “machado” com outras noções simbólicas e temas mitológicos, que também estão associados com o mistério de Ano Novo, com o meio do Inverno e também com o Solstício de Inverno.

Especialmente interessantes são os indícios de que o significado simbólico de "machado" é estritamente idêntico com outros dois antigos hieróglifos-palavras: "labirinto" e "barba".

O "labirinto" é um desenvolvimento da idéia de uma espiral do ano, que se vira para o Ano Novo e, em seguida, imediatamente começam a distorcer. "Barba" é a luz do Sol masculino durante o outono/inverno do círculo do ano (o cabelo como um todo são os raios do Sol). No círculo rúnico outra runa - "peorp" – se parece com um machado, porém significa “barba”. No meio do labirinto vive Minotauro, o monstro, o homem-touro, o equivalente a Irmunganthr, a Serpente do Mundo, e também equivalente a outro personagem: a velha agiota. Dostoiévski descreveu um antigo tema mitológico, o paradigma de uma sucessão simbólica, um ritual primordial que os nossos ancestrais praticaram por muitos milênios. Mas esse episódio de Crime e Castigo não é apenas um anacronismo ou fragmento desordenado do inconsciente coletivo. Na verdade o assunto é sobre uma imagem muito mais importante, escatológica, sobre o sentido e o gesto do Fim dos Tempos, sobre o momento sagrado apocalíptico, quando colide tempo e eternidade, quando o fogo arde no Dia do Juízo Final.

Os russos são a nação abençoada, e a história da Rússia é o resumo da história mundial. Para nós, semelhante a um ímã temporal, espacial e étnico, o destino dos séculos gravita com uma progressão crescente. A Primeira e a Segunda Roma existiram apenas para a Terceira aparecer. O Império Bizantino era a profecia de uma Rússia Santa. Uma Rússia Santa em sua forma apocalíptica surgiu como uma cidade-fantasma chamada São Petersburgo, cidade onde o maior profeta da Rússia apareceu: Fyodor Dostoiévski. A história de seu principal romance, "Crime e Castigo", situa-se no labirinto de ruas de Petersburgo e os personagens principais de seu romance são personagens principais da Rússia. Entre eles, os mais importantes são Raskolnikov, a velha agiota e o machado. É o machado o raio que conecta Raskolnikov com a velha.

A história do mundo - através da história de Roma, através da história do Império Bizantino, através da história da Rússia, através da história de Moscou, através da história de São Petersburgo, através da história da Dostoiévski, através da história de "Crime e Castigo", através da história dos personagens principais do romance - é reduzida a um único artefato: o Machado.

Raskolnikov divide a cabeça da velha capitalista. O nome "Raskolnikov" ("Raskol" significa, literalmente, uma "divisão") indica o machado e a ação que ele comete. Raskolnikov realiza o ritual de Ano Novo, o mistério do Juízo Final, a celebração da ressurreição do Sol.

O Capitalismo, arrastando-se para a Rússia a partir do Ocidente, do lado do Sol, carnalmente representa a Serpente do Mundo. Seu agente é a velha e decrépita agiota, tecendo uma teia de escravidão usurária. Ela também é parte dela.

Raskolnikov traz o machado do Oriente.

O machado do Sol Nascente, o machado da Liberdade e da Nova Aurora.

A novela deveria ter acabado de uma forma triunfal, com a plena justificação de Rodion. O crime de Raskólnikov é a punição para a usurária. A era da revolução proletária e do Machado é proclamada. Mas forças adicionais entraram no caso: o investigador Porfiriy acaba por ser especialmente insidioso. O representante de jurisprudência kafkiana e do humanitarismo pseudo-farisaico começa uma intriga complicada para difamar o personagem principal e suas ações diante até mesmo dos próprios olhos de Raskólnikov. Porfiriy manipula os fatos, e leva Raskolnikov a um labirinto cego de dúvida, nervosismo e perturbação mental. Ele não apenas tentar colocar Rodion na cadeia, como também procura destruí-lo de uma forma espiritual. O personagem principal deveria ser tratado da mesma forma que tratou a anciã: "Esmague o crânio da serpente". Mas o nosso herói acaba por ser incapaz de resistir... Então o resto do tecido do mito também acaba por ser desvendado. Raskolnikov, de acordo com o cenário primordial, deveria ter levado a Sabedoria-Sophia para fora do bordel, como o gnóstico Simon fez com Helena. Mesmo a cena de recitar a narração do evangelho sobre a ressurreição de Lázaro permaneceu a partir da versão original: Sophia, resgatada por Amor e ao ser libertada da escravidão usurária, propaga a ressurreição universal. Mas aqui, por algum motivo, ela se junta em uma conspiração com o "o adorador da serpente humanitária", Porfiriy. Ela começa a sugerir a Raskolnikov uma idéia: que a velha deveria ter sido poupada, que ela não era "apenas um piolho": a sociedade do amor entre os animais, incluindo entre eles a serpente do mundo que vive na escuridão do caos. Uma ternura perante as lágrimas de dor da capitalista assassinada.

Como isso pode ser explicado?

Dostoiévski era um profeta e tinha o dom da clarividência. Ele previu não só a revolução (o golpe no crânio com o machado), mas também a sua degeneração, a sua traição, seu ser destruído pelo mercado. A Sophia do socialismo gradualmente degradada pelo humanitarismo farisaico. Porfiriy penetrou o Partido e minou os fundamentos do reinado escatológico do país soviético.

Primeiro, eles desistiram da revolução permanente; em seguida, os expurgos; e depois Sonya, sob a direção de intelectuais soviéticos tardios, mais uma vez começou a lamentar-se sobre as coisas mais ridículas – como o mandamento de "não matar"- e então o sangue jorrou como um rio. E não foi o sangue de velhas agiotas, mas o sangue inocente de crianças.

Existe uma versão virtual do "Crime e Castigo" que tem um final totalmente diferente. Tem a ver com o novo e vindouro período da história russa. Até agora vivemos a primeira versão. Mas agora tudo acabou. O novo mito está encarnando, a espada escarlate de Boris Savinkov é escaldante nas mãos de uma jovem nova Rússia, a Rússia do fim dos tempos – a Rússia cujo nome é Machado.

Tradução por Leonardo Márcio Ramos do blog Dissolve Coagula

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Artigo de Dugin sobre Dostoyevskiy

 Um antigo artigo de Alexander Dugin;


Alexander Dugin
AXE É O NOME DO MEU
(Dostoyevskiy e a metafísica de São Petersburgo)

O AUTOR QUE ESCREVEU A RÚSSIA

O principal escritor da Rússia é o romancista Fyodor Mikhaylovich Dostoyevskiy. A cultura russa e a mentalidade russa se acumulam para ele, como se em algum ponto mágico. Todo o anterior antecipa Dostoyevskiy, todos os seguintes resultados dele. Sem dúvida, ele é o maior gênio nacional da Rússia.

A herança de Dostoiévski é imensa e quase todos os investigadores concordam com a importância central de seu romance "Crime e Castigo". Se Dostoiévski é o principal autor da Rússia, "Crime e Castigo" é a principal obra da literatura russa e o texto fundamental da história russa.*

Consequentemente, não há nada de acidental ou arbitrário nisso, e não pode haver. Certamente este livro deve conter algum hieróglifo misterioso, no qual todo o destino russo está concentrado. Decifrar esse hieróglifo equivale a conhecer o insondável mistério russo.


A TERCEIRA CAPITAL - A TERCEIRA RUSS

O romance se passa em São Petersburgo. Este fato, em si, tem um significado simbólico. Qual é a função sagrada de Petersburgo na história da Rússia? Compreendendo isso, nos aproximamos da posição de Dostoiévski.

São Petersburgo assume um significado sagrado apenas em comparação com Moscou. Ambos os capitais estão ligados entre si por uma lógica cíclica, por um fio simbólico. A Rússia teve três capitais. A primeira - Kiev - era a capital de um estado nacional, etnicamente uniforme, situado na periferia do Império Bizantino. Essa formação da fronteira norte não desempenhou um papel civilizacional ou sagrado muito importante. Um estado comum para os bárbaros arianos. Kiev é a capital da etnia russa.

A segunda capital - Moscou - é algo muito mais importante. Ele assumiu um significado especial no momento da queda de Constantinopla, quando Russ se tornou o último reino cristão ortodoxo, o último império cristão ortodoxo restante.

Daí segue: "Moscou é a Terceira Roma". A ideia do Reino na tradição cristã ortodoxa tem um papel escatológico especial: o Estado, ao reconhecer a plenitude da verdade da Igreja, é, segundo a Tradição, o obstáculo no caminho do "filho da ruína", o obstáculo ao advento da o "Anticristo".

O Estado Cristão Ortodoxo, reconhecendo constitucionalmente a verdade do Cristianismo Ortodoxo e a influência espiritual do Patriarca, é o "catechon", ou "dissuasão" (da segunda Carta do Apóstolo São Paulo aos Tessalonicenses). A introdução do Patriarcado na Rússia tornou-se possível apenas no momento em que o Império Bizantino caiu como um reino e, conseqüentemente, o Patriarca Constantinopolitano perdeu seu significado escatológico. Pois este significado está concentrado não apenas na hierarquia da Igreja Cristã Ortodoxa, mas no Império que reconhece a autoridade dessa hierarquia. Daí segue o significado teológico e escatológico de Moscou, de Moscou Russ. A queda do Império Bizantino significou, na visão apocalíptica do cristianismo ortodoxo, a aproximação do " adiar o momento em que sua chegada se torna um fenômeno geral, universal. Moscou desde então é a capital de um Estado essencialmente novo. Não um Estado nacional, mas soteriológico, escatológico, apocalíptico. A Russ de Moscou, com seu Patriarca e Rei Cristão Ortodoxo (ou Czar), é uma Russ absolutamente diferente da de Kiev. Não está mais na periferia do Império, mas é a última fortaleza da salvação, a Arca, o terreno aberto para a descida da Nova Jerusalém. "Não haverá o quarto". adiar o momento em que sua chegada se torna um fenômeno geral, universal. Moscou desde então é a capital de um Estado essencialmente novo. Não um Estado nacional, mas soteriológico, escatológico, apocalíptico. A Russ de Moscou, com seu Patriarca e Rei Cristão Ortodoxo (ou Czar), é uma Russ absolutamente diferente da de Kiev. Não está mais na periferia do Império, mas é a última fortaleza da salvação, a Arca, o terreno aberto para a descida da Nova Jerusalém. "Não haverá o quarto". é um russo absolutamente diferente do kievano. Não está mais na periferia do Império, mas é a última fortaleza da salvação, a Arca, o terreno aberto para a descida da Nova Jerusalém. "Não haverá o quarto". é um russo absolutamente diferente do kievano. Não está mais na periferia do Império, mas é a última fortaleza da salvação, a Arca, o terreno aberto para a descida da Nova Jerusalém. "Não haverá o quarto".

São Petersburgo é a capital da Rússia que vem depois da Terceira Roma. Em certo sentido, esse capital não existe, não pode existir. "Não haverá uma Quarta Roma". São Petersburgo estabelece a Terceira Rússia. Terceiro pela qualidade, estrutura e sentido. Não é um estado nacional, nem uma arca soteriológica. É uma estranha quimera titânica, o país 'post mortem', a nação que vive e se desenvolve em um espaço que está além da história. Petersburgo é uma cidade de "Nav" ("a encarnação da morte", russo antigo), uma cidade do outro lado. Daí segue a assonância do rio Neva (no qual está situada Petersburgo) e do Nav. A cidade do luar, da água, das construções estranhas, alheias ao ritmo da história, à estética nacional ou religiosa. O período de Petersburgo da história russa foi o terceiro sentido de seu destino. Aquele era um tempo de russos especiais, de outros além da arca. Os velhos crentes foram os últimos a embarcar na arca da Terceira Roma pelo fogo batizado que entregou suas cabanas junto com eles às chamas.

Dostoiévski é o escritor de Petersburgo. Ele não é inteligível sem Petersburgo. Mas a própria Petersburgo permaneceria no estado virtual e ilusório sem Dostoiévski. Dostoiévski o reviveu, tornou atual essa cidade enigmática, tendo revelado seu sentido (só então existe alguma coisa, quando seu sentido se mostra por si mesmo).

Somente em Petersburgo aparece a literatura russa. O período de Kiev é o período das lendas épicas. O período de Moscou é o tempo da soteriologia e da teologia nacional.

Petersburgo traz a literatura para a Rússia, o rudimento profano do que costumava ser um pensamento nacional valioso, o traço exaltado do que se foi. A literatura é um invólucro, um pontinho superficial de ondas siderais, um vácuo que geme de desespero. Dostoiévski atendeu tanto a esse apelo ao vazio que tudo o que se foi, apagou, esqueceu foi, por assim dizer, ressuscitado em seu heroico fazer espiritual.

Dostoiévski é mais do que literatura. Ele é teologia, lenda épica. Portanto, sua Petersburgo busca a ideia, o sentido. Volta-se constantemente para a Terceira Roma. Ele examina agonizantemente as fontes da nação.

O personagem principal de "Crime e Castigo" chama-se Raskolnikov, sendo uma referência direta ao Cisma (ou "Raskol"). Raskolnikov é um homem da Terceira Roma, "geworfen" (ou "jogado") em navi Petersburgo. A alma sofredora, que por uma estranha lógica de repente se encontrou após a autoimolação no labirinto úmido das ruas de Petersburgo, paredes amarelas, estradas molhadas e céus cinzentos sombrios.


A CAPITAL

O enredo de "Crime e Castigo" é um análogo estrutural de "O Capital" de Marx: a profecia da próxima Revolução Russa. Foi simultaneamente um rascunho para uma nova teologia, uma teologia do abandono de Deus, que se tornaria o principal problema filosófico do século XX. Essa teologia poderia ser chamada de "

A história é extremamente simples. O estudante Raskolnikov percebe nitidamente a realidade social como uma revelação do mal, uma sensação especial que é tão característica em alguns ensinamentos escatológicos gnósticos.

O cianeto de potássio da civilização. A degeneração e o vício florescem onde se perdem as conexões orgânicas, os significados espirituais e as espirais anagógicas das hierarquias que ascendem desimpedidas ao céu. A percepção da realidade profana. A perda insuportável da "Terceira Roma". O horror antes do encontro com o elemento universal do Anticristo, com Petersburgo. Raskolnikov adivinha absolutamente corretamente que o pólo simbólico do mal é uma feminilidade pervertida (Kali). Esse é o maldito capital de empréstimo da religião, que iguala os vivos aos mortos e cria monstros. Essa é a decadência, a degradação do mundo. Tudo isso é a velha usurária, a Baba-Yaga do mundo moderno, a Mulher-Inverno, a Morte, a assassina. Fora de seu lugar sujo ela tece a teia de Petersburgo, enviando por suas ruas negras Luzhins,

As labutas do submundo envolvem tabernas e bordéis, antros de miséria e ignorância e escadarias e portais mergulhados na semi-escuridão. Por causa de sua feitiçaria senil, Sophia, a sabedoria de Deus, se volta para a lamentável Sonechka com o bilhete amarelo. O centro da roda do mal de Petersburgo é encontrado. Rodion Raskolnikov completa o reconhecimento ontológico. Certamente, Raskolnikov é um comunista. Embora esteja mais próximo dos socialistas-revolucionários, dos narodniks. Certamente, ele está familiarizado com os ensinamentos sociais contemporâneos. Ele conhece línguas estrangeiras e poderia ter se familiarizado com o "Manifesto" de Marx ou mesmo com "O Capital". O importante está no início do "Manifesto": "...um espectro vagueia pela Europa...". Isso não é uma metáfora, é uma definição precisa daquele modo especial de ser que surge depois que uma sociedade se torna profana, depois da "morte de Deus". A partir desse momento, estamos no mundo dos fantasmas, no mundo das visões, quimeras, alucinações, das tramas navi.** Para a Rússia, isso significa "viajar de Moscou a Petersburgo", a encarnação na cidade às margens do Neva, na a cidade-fantasma. Esta encarnação nunca poderia ser completa.

O espectro comunista torna toda a realidade fantasmagórica. Instalado na consciência do aluno, que busca o Logos perdido, ele o mergulha em uma corrente de visões distorcidas: ali um velho libertino arrasta uma adolescente bêbada para algum lugar; ali Marmeladov chora de partir o coração, depois de ter vendido o último xale de sua amada para conseguir dinheiro para o álcool; lá o demoníaco Svidrigaylov, o enviado da eternidade da teia, que está sob a proteção do velho usurário, se aproxima da irmã pura de Rodion. Mas isso é uma ilusão? O fantasma, tendo possuído a consciência, de fato livra a inconsciência. A realidade revelada é assustadora, intolerável, mas verdadeira. É mau entender o mal? É uma ilusão revelar o caráter ilusório do mundo? É loucura perceber que a humanidade vive de acordo com as leis da má lógica? O fantasma do marxismo, o narcótico da revelação, o chamado gnóstico à revolta contra o maligno Demiurgo... A dor sangrenta dessas feridas é mais aguda do que a imagem de um salão bem iluminado, cheio de casais bem vestidos, girando no dança.

Raskólnikov, matando a velha velha, comete um gesto paradigmático, realiza um Ato ao qual, de forma arquetípica, se reduz a Práxis tal como o marxismo a percebe. O Ato de Rodion Raskolnikov é o ato da Revolução Russa, o resumo de toda a literatura social-democrata, narodnik e bolchevique. Trata-se de um gesto fundamental da história russa que só surgiu depois de Dostoiévski, tendo sido preparado muito antes dele em enigmáticos pontos iniciais do destino nacional. Toda a nossa história é dividida em duas partes - antes do assassinato do velho usurário por Raskolnikov e depois do assassinato. Mas sendo um momento fantasmagórico e supertemporal, ele lança flashes para frente e para trás no tempo. Manifesta-se nas revoltas camponesas, nas heresias, nas rebeliões de Pugachov e Razin, na cisão da Igreja Cristã Ortodoxa (Cisma, Raskol), no advento do tempo sombrio (os eventos no início da Rússia do século XVII), em toda a metafísica complicada, multi-estágio e insaciável do Assassinato Russo, que se espalhou desde a profundidade do nascimento eslavo inicial até o Terror e Gulag. Qualquer mão levantada sobre o crânio de uma vítima era impelida por uma explosão apaixonada, vaga e profunda. Foi a participação na Escritura Comum e sua filosofia. Killing and Death aproxima a Ressurreição dos Mortos. Foi a participação na Escritura Comum e sua filosofia. Killing and Death aproxima a Ressurreição dos Mortos. Foi a participação na Escritura Comum e sua filosofia. Killing and Death aproxima a Ressurreição dos Mortos.

Nós, russos, somos uma nação abençoada. Portanto, todas as nossas manifestações - sublimes e surradas, graciosas e aterrorizantes - são santificadas por sentidos sobrenaturais, pelos raios da cidade sobrenatural, são lavadas pela umidade transcendente. Na abundância da Graça nacional, o bem e o mal se misturam, fluem de um para o outro e, de repente, a escuridão se ilumina, enquanto algo branco se torna um mero inferno. Somos tão incognoscíveis quanto o Absoluto. Somos uma nação divina. Mesmo nosso Crime é incomparavelmente superior à virtude de algum outro.


NÃO "MATA NÃO"

Entre meados do século 19 e o início do século 20, a consciência russa estava estranhamente possuída pela compreensão de um dos dez mandamentos - "não mate". Eles discutiram como se fosse a essência do cristianismo. Teólogos, revolucionários e terroristas o repetiam constantemente (Savinkov era louco por esse mandamento), assim como humanitários, progressistas e conservadores. Tanto o tema quanto a argumentação em torno dele foram tão importantes que afetaram, de forma considerável, toda a consciência russa moderna. Embora o significado dessa fórmula tenha desaparecido com o advento dos bolcheviques, ela ressurgiu no final do período soviético e começou a assombrar os cérebros dos intelectuais com força renovada. "Não matar" não é exatamente um mandamento cristão e do Novo Testamento, mas é o judaico e do Antigo Testamento. Esta é uma parte da Lei, a Torá, que regula, como um todo, as normas exotéricas, externas, sociais e éticas da vida popular israelense. Esse mandamento não tem nenhum significado especial. Você pode encontrar algo análogo na maioria das tradições, em seus códigos sociais. No hinduísmo, o equivalente é chamado de "ahimsa", "não-violência". Este “não matar”, assim como os demais parágrafos da Lei, regulam a liberdade humana, direcionando-a para o riacho que, segundo o espírito da Tradição, pertence à melhor parte, ao seu “lado direito” . Além disso, é significativo que "não matar" não tenha nenhum sentido metafísico absoluto. Assim como todas as estátuas exotéricas, este mandamento serve apenas com os outros para manter a existência coletiva em ordem e para evitar que a comunidade caia no caos ("A Lei nada cometeu", segundo São Paulo Apóstolo). Em princípio, se compararmos a realidade veterotestamentária com a moderna, a fórmula "não matar" corresponde aproximadamente à inscrição "é proibido fumar", afixada no foyer do teatro. Fumar no teatro não é permitido, não é bom. Quando alguns espectadores tensos começam a fumar, é um estado de emergência para os lanterninhas. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e submetidas à repressão dos servidores da justiça. segundo São Paulo Apóstolo). Em princípio, se compararmos a realidade veterotestamentária com a moderna, a fórmula "não matar" corresponde aproximadamente à inscrição "é proibido fumar", afixada no foyer do teatro. Fumar no teatro não é permitido, não é bom. Quando alguns espectadores tensos começam a fumar, é um estado de emergência para os lanterninhas. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e submetidas à repressão dos servidores da justiça. segundo São Paulo Apóstolo). Em princípio, se compararmos a realidade veterotestamentária com a moderna, a fórmula "não matar" corresponde aproximadamente à inscrição "é proibido fumar", afixada no foyer do teatro. Fumar no teatro não é permitido, não é bom. Quando alguns espectadores tensos começam a fumar, é um estado de emergência para os lanterninhas. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e submetidas à repressão dos servidores da justiça. é um estado de emergência para os lanterninhas. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e submetidas à repressão dos servidores da justiça. é um estado de emergência para os lanterninhas. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e submetidas à repressão dos servidores da justiça.

É muito significativo que o Antigo Testamento esteja cheio de desafiadora não observância desse mandamento. O assassinato está por toda parte. É cometido não apenas por pecadores, mas também por homens justos, reis, soberanos ungidos e até mesmo profetas. O aluno favorito de Elias, o profeta Eliseu, era especialmente severo: ele não tinha misericórdia nem mesmo dos pequenos inocentes. Eles mataram durante as guerras, mataram nativos e estrangeiros, mataram criminosos e aqueles que mataram, mataram mulheres. Eles não tiveram piedade de crianças, idosos, goyim, profetas, idólatras, feiticeiros, sectários, parentes. Muitas coisas foram destruídas. No Livro de Jó, Yahweh - sem nenhuma razão especial, exceto uma controvérsia bastante superficial com Lúcifer - trata de forma sádica seu próprio homem escolhido e virtuoso.

Quando este último, coberto de lepra, fica indignado com isso, Jahwe o intimida com dois monstros geopolíticos***: a terra chamada Behemoth e o mar chamado Leviatã, ou seja, Jahweh o mortifica também no sentido moral. A investigação bíblica moderna prova de forma convincente que o texto original do Livro de Jó chega ao seu fim no auge da tragédia, e o fim ingênuo e moralista foi acrescentado pelos levitas muito tempo depois, que ficaram aterrorizados com a natureza rígida e primordial daquele mais arcaico de fragmentos do "Antigo Testamento".

Em outras palavras, no contexto judaico de onde foi tirado diretamente o mandamento de "não matar", ele não tem nenhum caráter absoluto nem nenhum significado especial.

Não houve controvérsia sobre esse tema e, aparentemente, nenhuma reflexão foi feita com qualquer propósito expresso. Isso não quer dizer que o mandamento nunca foi levado em consideração. Foi: eles tentaram não derramar sangue sem propósito. Eles também tomaram cuidado com o tribunal rabínico. Se alguém foi morto em vão, uma punição se seguiu. A lei habitual. O mandamento ordinário. Nada especial. O padrão de conduta humana. No cristianismo tudo é diferente. Cristo é o cumprimento da Lei. A Lei termina com ele. A missão da Lei é cumprida. Em certo sentido, é removido da agenda. Exatamente "removido", mas não revogado. Os problemas espirituais passam para um plano radicalmente diferente. A partir de agora começa o Pós-Lei, a era da Graça. "A proteção da Lei é superada". A rigor,

Até mesmo o primeiro mandamento de adorar o Único Senhor é superado pelo Novo Testamento, pelo Preceito do Amor a Ele. Através da Encarnação, o Logos-Deus traz relações absolutamente novas entre o Criador e toda a criação, e entre as próprias criaturas. A partir de então tudo se passa sob o signo do Emanuel, pela fórmula benéfica, “Deus está conosco”. Deus não está em algum lugar distante, Ele desempenha não apenas o papel de Juiz e Legislador, mas também o papel de Amado e Amado. O Novo Mandamento não rejeita os dez anteriores, mas os torna desnecessários.

A humanidade do Novo Testamento é fundamentalmente diferente da antiga, judaica (ou pagã). Ele carrega o sinal do Amor transcendente. É por isso que a dicotomia da Lei - "adorar - não adorar", "singular - plural", "roubar - não roubar", "seduzir - não seduzir" e, finalmente, "matar - não matar" - não faz sentido não mais.

Na santidade cristã, todos os meios são expressos positivamente. O novo homem não precisa de regras aqui, ele vive para uma coisa - o Amor sóbrio, eterno e não diluído, permanecendo em oração e contemplação. Aqui, não existe apenas "matar não". Os santos cristãos ririam de tal cautela, pois neles a dualidade já foi abolida, a barreira entre o eu e o não-eu foi esmagada. Além disso, eles querem ser mortos, aspiram a sofrer, anseiam pelo martírio. No entanto, a valiosa vida cristã não tem nenhuma relação com os antigos Dez Mandamentos. Eles são superados de uma vez por todas no sagrado batizado. Além disso, há apenas a realização da Graça.

Mas vamos considerar um cristão não na santidade, não na vida monástica, não no ascetismo e na vida eremita. A ideia estabelecida pela ordem do Antigo Testamento será válida para ele? Não. Ele é batizado, o que significa nascido do alto, e consequentemente Deus também está com ele. Dentro, mas não fora. Portanto, mesmo sendo pecador, também o indigno vive além do velho, no novo ser, na corrente da luz imerecida da Graça. Observar ou não a legislação do Antigo Testamento nada tem a ver com a essência íntima da existência cristã.

Claro, é mais conveniente para uma sociedade lidar com aqueles que são obedientes e observam as regras. Para uma sociedade cristã também. Mas tudo isso não tem nenhuma medida comum com o sacramento da Igreja, com a vida mística do crente. Aqui começa o elemento mais interessante. Um cristão, ao transgredir algum mandamento do Antigo Testamento, de fato demonstra que não completou em si mesmo a natureza misteriosa do Homem Novo, a personalidade potencial lançada pelo Espírito Santo na fonte batismal.

Mas quem pode se gabar de ter alcançado a deificação total? Quanto mais alguém é santo, mais mesquinho, pecaminoso, terrível ele parece a si mesmo diante da face da Trindade Brilhante. Consequentemente, como no caso dos yurodivy ("os tolos de Deus") que menosprezavam o aspecto humano, a queda pode ser, paradoxalmente cristã, um sacramento.

Observar os Dez Mandamentos não é fator decisivo para um cristão ortodoxo. Só uma coisa é importante para ele: o Amor, o Novo - absolutamente Novo - Testamento, o Testamento de Amor. Os Dez Mandamentos sem Amor é o caminho para o inferno. E se o amor é, então eles não têm mais significado. Tudo isso estava claro para os intelectuais russos radicais. No livro de Boris Savinkov, "The Pale Horse", um terrorista chamado "Vanya" (um personagem literário, inspirado por Ivan Kalyayev) diz antes de cometer um assassinato: "E o outro caminho - o caminho de Cristo para Cristo... Ouça, se você ame muito, ame de verdade, então você pode matar, não pode?"

E ainda -

"... é preciso passar por um tormento de cruz, é preciso decidir fazer tudo isso por amor e por amor. Mas absolutamente por amor e por amor... Então eu vivo, e para quê? Talvez eu viva para minha morte -hora. Eu oro: Senhor, me dê a morte em nome do amor. Você não pode orar por assassinato, pode?".

Savinkov viveu, pensou, escreveu e assassinou depois de Dostoiévski. Mas nada é adicionado a Raskolnikov. Raskólnikov mata não apenas pelo bem da humanidade (embora também por ela), ele mata pelo amor. Para passar pelo sofrimento, ele tem que morrer, matar a morte em si e nos outros. Ivan Kalyayev, assim como o próprio Savinkov, são pessoas profundamente russas, profundamente cristãs ortodoxas, profundamente "dostoievskianas": tendo um caráter evidentemente divino, junto com toda a nação, e repletas de um pensamento cristão ortodoxo, paradoxal e elevado, um comparação que torna insípidos os mais refinados e profundos esquemas filosóficos ocidentais. Os russos não formulam uma teologia, eles a suportam, a vivem por toda a vida. Esta é a teologia, vindo pelos poros, pela respiração, pelas lágrimas, através do sono e caretas de cólera. Através do tormento e da tortura. Através do elemento úmido e sangrento, carnal e espiritualizado da Nova Vida.

Com amor e pelo amor de amor, pode-se fazer tudo. Isso não significa que se deva fazer tudo e que todos os mandamentos devam ser revogados, rejeitados. Em hipótese alguma. Deve-se apenas demonstrar com a própria vida e gestos que existe - e isso é o principal - outra medida de ser, a nova luz, a luz do Amor.

O local do assassinato do velho usurário é São Petersburgo. Portanto, este é o lugar do Amor na Rússia, locus amoris.

Rodion levanta duas mãos, dois signos angulares, dois plexos tendinosos, duas runas sobre o crânio murcho de inverno da Capital. Em sua mão há um item grosseiro, grosseiro e grosseiro. Com este item, o ritual central da história russa e do mistério russo é cometido. O fantasma se materializa, o momento sai do sistema do tempo terreno (Goethe teria enlouquecido imediatamente, ao ver qual momento de fato parou...). Duas teologias, dois testamentos, duas revelações se encontram no ponto mágico. Este ponto é absoluto.

Machado é o seu nome.


LABRIS

A curta genealogia do machado.

As hipóteses mais brilhantes sobre este item - sua origem e seu simbolismo - foram avançadas por Herman Wirth, um gênio científico alemão e especialista na esfera da pré-história humana e das letras antigas. Wirth mostrou que o machado duplo era o símbolo primordial do ano, do círculo, de suas duas metades, uma após o solstício de inverno, a outra antes dele. O machado padrão (não duplo) simboliza correspondentemente uma metade do ano, como regra a primavera, a metade ascendente.

Além disso, o uso utilitário de um machado para cortar árvores, também de acordo com Wirth, guarda uma relação com o simbolismo anual, pois a Árvore na Tradição significa Ano. Suas raízes são os meses de inverno, sua coroa são os de verão. Portanto, o corte de árvores está correlacionado, no contexto simbólico primordial das sociedades sagradas, com o advento do Ano Novo e o fim do antigo.

O Machado é simultaneamente o Ano Novo e o instrumento com o qual o velho é destruído. Simultaneamente é um instrumento cortante, dividindo o Tempo, cortando o cordão umbilical de sua extensão no ponto mágico do Solstício de Inverno, quando se dá o maior Mistério de morte e ressurreição do Sol.

A runa no antigo calendário rúnico representando o machado era chamada de "thurs" e era dedicada ao deus Thor. Caiu nos primeiros meses do ano novo. Thor era o Deus do Machado ou seu equivalente simbólico, o Deus do Martelo ou Miollnir. Com este Machado-Martelo, Thor esmagou o crânio da Serpente do Mundo, Irmunganthr, que flutuava nas águas inferiores da escuridão. Novamente o óbvio mito do solstício, conectado com o ponto do Ano Novo. A Serpente é o Inverno, o frio, as águas baixas do ano Sagrado, para onde desce o sol polar. Thor, aqui ele é tanto o Sol quanto o espírito do Sol, supera as garras do frio e liberta a Luz. Nos estágios posteriores do mito, a figura da Luz do Sol é dividida em duas - o salvador e o salvo - e depois em três com a adição do instrumento de salvação, o machado.

A inscrição mais antiga do sinal do machado nas antigas cavernas paleolíticas e esculturas rupestres foram analisadas por Herman Wirth à luz de todo o ritual e estrutura do calendário. Ele traçou a incrível constância do proto-sentido do machado através das mais diferentes culturas e idiomas, tanto por idade quanto por localização geográfica. Mostrou a relação etimológica e semântica das palavras que significam 'machado' com outras noções simbólicas e assuntos mitológicos, que também estão associados ao mistério do Ano Novo, a meio do Inverno, o Solstício de Inverno.

Especialmente interessantes são as indicações de que o significado simbólico de "machado" é estritamente idêntico a dois outros itens de palavras-hieróglifos antigos: "labirinto" e "barba".

O "Labirinto" é um desenvolvimento da ideia de uma espiral anual, girando para o Ano Novo e logo começando a se desenrolar. "Barba" é apenas a luz do sol masculino na metade outono-inverno do círculo do ano (o cabelo como um todo são os raios do sol). Portanto, no círculo rúnico, outra runa - "peorp" - parece um machado, mas significa barba. No meio do Labirinto vive Minotauro, o monstro, o touro-humano, o equivalente a Irmunganthr, a Serpente do Mundo e... a velha usurária. Dostoiévski descreveu o antigo sujeito mitológico, o paradigma secreto de uma sucessão simbólica, o ritual primordial, que nossos ancestrais praticaram por muitos milênios. Mas isso não é apenas um anacronismo ou fragmentos descoordenados do inconsciente coletivo.

Os russos são a nação abençoada e a história russa é o resumo da história mundial. Para nós, como um imã temporal, espacial e étnico, o sentido do destino dos séculos gravita com progressão crescente. A Primeira e a Segunda Roma foram apenas para a Terceira aparecer. O Império Bizantino foi a profecia da Santa Russ. A Santa Russ, de maneira apocalíptica, atraiu-se para a cidade fantasma chamada São Petersburgo, onde o maior profeta da Rússia, Fyodor Dostoyevskiy, apareceu. A cena de seu romance principal, "Crime e Castigo", se passa no labirinto das ruas de Petersburgo e os personagens principais do romance são os personagens principais da Rússia. Entre eles, os mais importantes são Raskolnikov, o usurário-velho e o machado. Além disso, o machado é a viga que conecta Raskolnikov com o usurário-velho. Consequentemente,

Raskolnikov divide a cabeça da velha capitalista. O próprio nome "Raskolnikov" ("Raskol" significa literalmente "dividir") indica o machado e a operação que ele faz. Raskolnikov realiza o ritual do Ano Novo, o mistério do Juízo Final, a celebração da ressurreição do Sol.

O capitalismo, rastejando para a Rússia do oeste, do lado do pôr do sol, representa carnalmente a serpente mundial. Seu agente é a velha aranha, tecendo uma teia de escravidão usurária. Ela também faz parte.

Raskolnikov traz o machado do Oriente.

O machado do sol nascente, o machado da Liberdade e do Novo Amanhecer.

O romance deveria ter terminado de forma triunfal com a plena justificação de Rodion. O crime de Raskolnikov é a punição do usurário. É proclamada a era do machado e da revolução proletária. Mas... forças adicionais entraram no caso. O investigador Porfiriy acaba sendo especialmente insidioso. Aquele representante da jurisprudência kafkiana e do pseudo-humanitarismo farisaico inicia uma complicada intriga para difamar o personagem principal e suas ações aos olhos do próprio Raskolnikov. Porfiriy, da maneira mesquinha com que manipula os fatos, conduz Raskólnikov por um labirinto cego de dúvida, nervosismo e perturbação mental. Ele não apenas tenta colocar Rodion na prisão, mas procura suprimi-lo de uma forma espiritual. O personagem principal deveria ter tratado aquela escória da mesma forma que tratou a velha: "Esmague o crânio da serpente". Mas nosso personagem se mostra incapaz de se recompor... Então, o resto do tecido do mito também se revela desvendado. Raskolnikov, de acordo com o cenário primordial, deveria ter tirado a Sabedoria-Sophia do bordel, como o gnóstico-Simon fez com Helena. Até a cena da recitação da narração evangélica sobre a ressurreição de Lázaro permaneceu da versão original: Sophia, resgatada pelo Amor e ao ser libertada da escravidão usurária propaga a ressurreição universal. Mas aqui, por algum motivo, ela se junta a uma conspiração com o "adorador humanitário da serpente", Porfiriy. Ela começa a sugerir uma ideia a Raskolnikov: que a velha, ela disse, deveria ter sido poupada, que ela "não era um piolho trêmulo". A sociedade do amor aos animais, incluindo a serpente mundial da escuridão total.

Como tudo isso pode ser explicado?

Dostoyevskiy era um profeta e tinha o dom da clarividência. Ele previu não apenas a revolução (o golpe de machado na cabeça), mas também sua degeneração, sua traição, sua colocação no mercado. A Sophia do socialismo gradualmente se degradou em hesitações farisaicas humanitárias. Porfiriys penetrou no partido e minou os fundamentos do reinado escatológico do país soviético.

Primeiro eles desistiram da revolução permanente, depois dos expurgos, e então Sonya, sob o disfarce dos últimos intelectuais soviéticos, novamente começou a reclamar do mais tolo - "não matar"... E o sangue jorrou como um rio. Este não era o sangue de velhas usurárias, mas de crianças realmente inocentes.

Existe uma versão virtual de "Crime e Castigo", que tem um final absolutamente diferente. Tem a ver com o novo e próximo período da história russa. Até agora vivemos a primeira versão. Mas agora isso acabou. O novo mito está encarnando, a espada escarlate de Boris Savinkov está queimando as mãos de uma nova Rússia jovem, a Rússia do Fim dos Tempos.

Axe é o nome dessa Rússia.



NOTAS

* Notemos desde já que muitos dos conceitos deste artigo são sugeridos pela leitura da interessante obra de V. Kushev, "730 steps", na qual o autor analisa o paradigma de "Crime e Castigo ".

** Stirner escreveu em "Ideologia Alemã": "Mensch, es spukt in deinem Kopfe!", o que poderia ser traduzido aproximadamente como: "Cara, é a sua cabeça que é assombrada por fantasmas". Em relação à tradução exata do verbo alemão "spuken", é derivado de "der Spuk" (um fantasma) e é análogo ao francês "hanter" e ao inglês "to hall". O padre Seraphim indicou-nos uma analogia interessante, lembrando que em russo antigo existia o verbo "stuzhati", que significa o mesmo que o alemão "spuken" - ser vencido pelos maus, ser possuído pelos seres invisíveis. Jacques Derrida em seu texto "Hamlet e Hécuba" (1956) apontou a semelhança entre o drama de Shakespeare e o "Manifesto" de Marx. Em ambos os casos tudo começa com o fantasma, desde a espera de sua aparição. Derrida aponta justamente que "o momento dos fantasmas não pertence ao tempo habitual". Em outras palavras, o tempo no mundo dos fantasmas não tem nenhuma medida comum com o tempo do mundo humano. Está intimamente ligado à própria essência de Petersburgo, a cidade fantasma, vivendo além do tempo sagrado da história russa em algum sono sutil, tontura sideral. Esta é a eternidade fantasmagórica de Svidrigaylov. Esta cidade "holandesa voadora", suas luzes, seus candelabros, suas velas e lâmpadas e seu Iluminismo nada mais são do que as luzes de St. Elm, a luminescência fictícia de uma quase existência pantanosa. Stuzhalyy gorod, a cidade assombrada, la ville hantee... O lugar da insanidade, doença, febre, perversões, vício e..

*** Na geopolítica moderna, Leviatã e Behemoth significam poder marítimo e poder terrestre correspondentemente. O Leviatã é o Atlantismo, o Ocidente, a América, o mundo anglo-saxão e a ideologia do mercado. O Behemoth é a estrutura continental da Eurásia e está associado à Rússia, hierarquia e tradição.


Traduzido por Vladislav Ivanov
Editado por DAN
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Obrigado por me lembrar o quão louco Alexander Dugin é, annatar1914.
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Potemkin escreveu:Obrigado por me lembrar o quão louco Alexander Dugin é, annatar1914.


O ponto principal não é se Dugin é "louco", mas se ele está certo sobre Dostoiévski, parece-me.

Lembro que Dostoiévski escreveu aquele st. Petersburgo é a cidade mais irreal do mundo, totalmente artificial e pseudo-russa, e até um relógio quebrado como Dugin pode acertar duas vezes por dia.
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O ponto principal não é se Dugin é "louco", mas se ele está certo sobre Dostoiévski, parece-me.

Dugin está completamente errado sobre Dostoiévski. E sua afirmação de que Dostoiévski foi o maior gênio literário da história da Rússia é simplesmente insana - Alexander Pushkin geralmente é creditado com esse papel. Dugin claramente não tem gosto literário.

Lembro que Dostoiévski escreveu aquele st. Petersburgo é a cidade mais irreal do mundo, totalmente artificial e pseudo-russa, e até um relógio quebrado como Dugin pode acertar duas vezes por dia.

Na verdade, foram Pushkin (em seu poema narrativo O Cavaleiro de Bronze ) e Gogol (em seus contos) que primeiro descreveram São Petersburgo como uma cidade 'irreal' ou 'fantasmática'. Nem Dostoiévski nem Dugin dizem nada de original a esse respeito. Na verdade, descrever Dugin como um "relógio quebrado" é totalmente apropriado.