* Por Luciene Guimarães *
Presente como mediadora e autora, tanto no FLIP- o Festival Literário de Parati, quanto no Festival Literário Internacional de Chiasso, na Suíça, Prisca Agustoni é poeta, tradutora, docente de Literatura Italiana na UFJF e pesquisadora, com pelo menos dez livros publicados em diversas editoras. O último, O mundo mutilado (2020), pela editora Quelônio, e o próximo é O gosto amargo dos metais, pelas 7Letras (no prelo, com lançamento previsto para junho). Mesmo que tenha escolhido sobretudo a poesia para expressar sua arte, ela estreará em breve em outro gênero, o romance, ainda em fase de elaboração mas sobre o qual ela adianta, com reservas: “a história gira em torno da relação entre uma mãe idosa e a filha migrando para outro país”. Aliás, a migração, o deslocamento entre culturas e povos é um tema central explorado em O mundo mutilado.
Nessa conversa sobre seu processo criativo, transitam a Europa de suas raízes e a terra brasilis. Não é sem motivo que a sua poesia dialoga desde com Drummond até autores ainda pouco conhecidos por aqui, como Adam Zagajewski, um autor polonês. Essa facilidade de trânsito se deve ao fato de ter tido uma formação híbrida – que abrange a literatura hispano-americana, a caribenha, a italiana e suíça, familiaridade com a cultura brasileira e a tradução do italiano, espanhol, francês e inglês. Alejandra Pizarnik, Seamus Heaney e Paul Celan inspiram sua poesia, mas o que parece melhor definir a poeta é sua voz movente, que se desloca dos Alpes suíços às montanhas de Minas, corroídas pela mineração. Suas inquietações, pessoais e políticas transitam além das fronteiras para encontrar uma unidade – o humano, o universal, o local, nos temas que incluem desde a paisagem mineira arruinada pela mineração, como às tragédias humanas que constituem a mais profunda camada do continente europeu.
Percebe-se em seu processo criativo, a predileção por vários poetas e escritores que parecem se incorporar à sua escrita através da citação. Desde Pasolini, Carlos Drummond, João Cabral, Robert Walser, mas também Dany Laferrière – escritor de origem haitiana radicado no Canadá. Essa espécie de homenagem ou procedimento faz parte de uma poética consciente, elaborada? Sim, com certeza, é consciente na medida em que a leitura de suas obras é presente no meu dia a dia, molda minha visão de mundo e atravessa meu processo criativo. Escrever é uma forma de diálogo, nesse sentido. E tem outros tantos que me habitam, numa espécie de coleção infinita de versos e combinações de palavras, que surgem quando escrevo.
Existe, para cada livro, um clima geral que procuro para ele. É algo bastante instintivo, não racional. Para criar esse “clima” ou “ambiente”, me cerco naturalmente de livros que estimulam essa ambiência. No caso deste livro, foi quase inevitável recorrer aos autores que, de alguma forma, sinalizaram em suas obras seu próprio mal-estar e sua dor diante da dor alheia, que é a nossa também. E nesse momento surgem as leituras que sedimentaram em mim, ao longo de uma vida de leitora e de professora cuja trajetória é extremamente híbrida (sou suíça de língua italiana, minha tradição poética de origem seria a italiana, mas falo francês desde criança, leio literatura alemã como um braço de minha cultura suíça, vivi 10 anos numa cidade francófona para estudar literatura hispano-americana e filosofia, e agora vivo no Brasil, onde fiz doutorado em literatura comparada, entre Brasil e África lusófona). Esses cruzamentos de vozes e olhares díspares (em termos de origens, mundos, línguas) são intrinsecamente ligados à minha forma de ver o mundo e de pensar que me formaram como um sujeito móvel, curioso, que faz do entrelugar e do plurilinguismo uma casa portátil e mutante.
A escrita para você estaria condicionada ao processo de reescrita, como afirmaria Compagnon em O trabalho da citação? Sem dúvida, para mim escrever é dialogar, talvez mais do que reescrever. Claro que estamos constantemente retomando temas e citações alheias (conscientemente ou menos), para escrever. Mas acredito que deva existir uma síncope entre a escrita e a reescrita, uma síncope autoral, justamente, aquele tropeço que é individual, indelével. Talvez seja este o maior desejo que move o trabalho da escrita: encontrar e reencontrar sempre, a partir de citações e diálogos, nossa voz e nossa peculiar forma de expressar uma visão de mundo que possa fazer sentido, criar um “senso”, isto é, indicar um caminho, um rumo, mas também um sentido para isso.
Seu livro O mundo mutilado, (Editora Quelônio), tem como cerne a crise migratória ocorrida em meados de 2016. Por que escolher a poesia e não a prosa para abordar o tema? Só a poesia poderia melhor acolher as inquietações da poeta? Penso que a poesia possibilita com maior naturalidade a existências de zonas de sombra (e de liberdade), elipses discursivas onde a sensibilidade do poeta (e do leitor) podem se conectar, sem necessariamente desejar “narrar” os fatos históricos numa determinada sequência verossímil, ou descrever a realidade, tão brutal, tão qual ela é ou nos parece ser. A poesia como espaço de reflexão se estabelece de maneira mais intermitente, mais sorrateira, por iluminações, por súbitas aparições e mergulhos no abismo da compreensão e da imaginação, contribuindo dessa maneira para estimular o exercício da sensibilidade, da intuição e da emoção estética, formas importantes de apreensão do mundo e de nós mesmos.
Muito mais do que um relato ou um ato de denúncia explícito, com meu livro queria tocar outros seres humanos, com um tipo de comoção existencial que não é específica nem exclusiva da poesia, ao contrário, é própria da linguagem artística, mas que, apesar de ser universal e comum ao território da literatura, possui canais mais diretos com a sensibilidade poética. Tem um ensaio belíssimo da professora italiana Giulia di Santo que analisou a poesia e a narrativa de autores europeus durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Ela usou uma metáfora muito apropriada, a meu ver, para se referir aos muitos poetas que escreveram a partir de e sobre a experiência da guerra (alguns deles, como Ungaretti, Cendrars, Apollinaire, Trakl, tendo sido eles mesmos soldados) : são “o farol sensível da humanidade”, em contraposição aos narradores que muitas vezes elaboram o trauma (individual e coletivo) a partir do ato de narrar, justamente, organizando cronologicamente os fatos para tal elaboração.
O título do seu livro é emprestado de um poema do polonês Adam Zagajewski. Qual a relação do livro com esse autor? Sou uma leitora encantada com a obra do poeta polonês (nascido em Lviv, hoje Ucrânia) Adam Zagajewski e, em geral, com a poesia daquela região cultural que é o leste europeu, hoje atravessado novamente por conflitos e traumas. Ele tem um poema belíssimo dedicado à cidade natal, Lviv, hoje sob as bombas da guerra. Na Itália se traduziu boa parte de sua obra poética e ensaística, por grandes editoras, é um nome muito amado e respeitado. E tem um poema cujo título é mais ou menos esse, “o mundo mutilado”, imagino que decorrente dos fatos trágicos que atravessaram sua terra; me pareceu muito certeiro para o espírito que atravessa meus versos e o mundo do qual eles falam.
Ser um apátrida, mais um
nesse hospício
inóspito
inexato
dessa máquina mortífera
que é o continente
com seu extenso perímetro
de alpes e mortos
um arquivo de túmulos
silenciados
Nesses versos, há uma aproximação da crise migratória com a memória do continente europeu, da violência e das Guerras. A referência a Treblinka e Chernobyl, que simbolizam duas tragédias, mesmo que não sejam contemporâneas (a primeira, campo de concentração polonês, a outra, a explosão da usina atômica na Ucrânia, também hoje cenário de uma injusta guerra), “A memória dói em qualquer lugar que a gente toque?” Sim, a memória histórica, coletiva, dói em qualquer lugar que a gente a toque. Acredito nisso. Existe um livro, belíssimo, que fala desse trauma do continente, e que cito nas notas finais do Mundo mutilado. Trata-se do livro de Martin Pollack, “Paesaggi contaminati, per una nuova mappa della memoria in Europa”, publicado em tradução italiana pela editora Keller, em 2017, onde o autor elabora um mapa da memória do trauma, a partir da contemplação das paisagens e dos mapas de roteiros turísticos europeus. O avesso da luz e do glamour europeu (visto com os olhos do turista) é esse arquivo de túmulos silenciados, como uma pele sensível que esconde, debaixo dela, a infecção.
Na seção “A fera” há uma referência direta à Walter Benjamin e que evoca a noite trágica do seu suicídio, quando da tentativa frustrada de escapar da França ocupada. Benjamin também seria vítima desse mundo mutilado, sendo ele também um “migrante” que tentava se deslocar da Europa à América do Norte? Sim, exatamente. À medida que os poemas abordavam esse tema atual, contemporâneo, relativo aos refugiados fugindo pelo Mediterrâneo, surgiram em mim imagens e lembranças de muitos outros migrantes, exilados, fugitivos, suicidas, ao longo das décadas, entre nomes comuns e nomes que ficaram conhecidos na história. A humanidade sempre foi atravessada por esses processos traumáticos e trágicos, e é impossível viver um desses momentos históricos tão duros como o nosso sem lembrar dos outros muitos migrantes, ou “migrados”. Lembrei então da Segunda Guerra, em particular, pela proximidade geográfica e histórica – a geração dos meus avôs é a geração que viveu a Segunda Guerra, a geração dos meus pais nasceu dentro da guerra -, e lembrei também da similitude que certas imagens dos barcos de refugiados no Mediterrâneo, publicadas insistentemente pela mídia, tinham com a imagem dos navios negreiros, com escravizados forçados a migrarem sob a violência colonial.
É uma longa travessia via água para chegar a outra terra, mutilados do país de origem e da liberdade, com a guerra ou a escravidão entalada na garganta.
Mas lembrei também dos muitos latinos tentando atravessar o muro dos Estados Unidos, e em geral, das violências históricas contidas nas relações geopolíticas mesquinhas e coloniais do passado e do presente entre os Impérios (que se gabam de serem muito democráticos e respeitarem os Direitos Humanos), e de como os Direitos Humanos são constantemente violados nos países-palco de guerras e invasões, pelas mãos impunes dos Impérios e/ou pela violência intestina local. Um tema que se tornou muito atual com o conflito na Ucrânia, mas que na verdade é de atualidade constante nos muitos conflitos – menos visíveis aos olhos da mídia – que mutilam pobres, negros, LGBTQIA+, minorias étnicas e religiosas, muitas vezes com a conivência dos países mais ricos.
*
do lado direito de mim
fala em italiano aquela
que desce da montanha
eterna, a filha que fostes,
imperdoável pela neve
expulsa dos olhos
il passo del San Gottardo
è il tuo oceano
teu oceano é de neve
e de rubros cardos
o meu é parcial,
uma vasta extensão
de restos
*
do lado esquerdo de mim
explode como bomba
essa manga
do tamanho do coração
ácida e doce
como a língua que masco
quando visto esse duplo
Nesses versos, a língua, nesse caso, visita territórios estrangeiros e se vê também arraigada à condição territorialista ou cultural, ou pelo contrário, desterritorializada no sentido de que somos todos “estrangeiros para nós mesmos”, como diria Kristeva? Retomando um pouco a reflexão da resposta anterior, acho que a experiência de quem migra e, escritora ou poeta, se reinventa em outro país e outro idioma, vivencia uma forma de desterritorialização que, no entanto, não é uma perda total. Ou melhor, se perdemos a pátria (linguística, pelo menos), encontramos outras possíveis mátrias, na medida em que aceitamos – primeiro em nós – que isso é não só possível, como desejável para uma integração que não seja somente verniz trabalhista e afetivo. A aderência à língua do outro, poder falar e ser lido na língua do outro (sem a mediação da tradução, se possível) que é o novo país de moradia é crucial para alguém que vive das e com as palavras. É um modo de estar de fato falando com esses outros que eu me tornei, acolhê-los em si, na medida em que sou acolhida-escutada por eles. Nem sempre isso se alcança, claro. Mas acho que utopicamente deveria ser a meta de todo escritor migrante; chegar a escrever TAMBÉM na língua do outro. Digo também porque não estou querendo sugerir que esse processo leve a um afastamento inclusive simbólico com o país-cultura de origem, deixando definitivamente de escrever na própria língua, como lamentava a Kristof, ao definir o francês uma língua inimiga, pois estava matando nela o lugar do húngaro. Não. Mas também não se resignar a ser definitivamente exilada linguisticamente no novo país de vida, sem poder interferir na cena literária, nem que seja com uma língua torta, digo, contaminada pelas interferências da(s) língua(s) que carregamos em nós. Sem poder partilhar, quase ao pé do ouvido, nossa visão de mundo que não é só a de uma “eterna estrangeira” dentro da língua e da cultura.
Aliás, penso que nada é definitivo, nem o uso de uma língua de escrita. Acho que podemos navegar entre as línguas, porque afinal, me parece, aquilo que precisamos dizer, escrever, não depende necessariamente de determinada língua, mas de algo anterior, uma espécie de linguagem da origem, que brota dentro do escritor, e que antecede a gramática formal. E isso pode assumir diferentes formas e idiomas. O fato de não dominar totalmente determinada língua também não me parece tão problemático: lidar com o risco, com a falha, com a indefinição, com a tentativa de se superar, com a realidade mutante, me parecem desafios necessários para alguém que decide entrar na seara da arte.
Penso ser esse esforço que vai em direção a um desdobrar-se fora de si fundamental para superar o ensimesmamento existencial do escritor que migra. Mas, claro, a visão mais ontológica da Kristeva faz todo sentido, embora penso que esteja falando desde outra perspectiva, justamente a de um exílio ontológico, que a experiência da migração só reforça.
Em O mundo mutilado, o cenário é o continente europeu, em O gosto amargo dos metais, que será lançado pela editora 7Letras, a motivação é a tragédia das mineradoras em Minas. Como você relaciona o universal e o local? Então, me interessa muito esse olhar da poesia – que tradicionalmente foi patrimônio quase exclusivo da autoria masculina – diante da história. Essa possibilidade de dizer, de forma enviesada, algo que a crônica ou a linguagem de cunho histórico não conseguem dizer, esse “sentimento do mundo” que o sujeito (poeta, artista) tem e luta consigo mesmo para tentar expressar de forma “outra”. Me interessa muito, como poeta mulher, ser “do mundo” na medida em que reconheço em mim as singularidades do meu gênero, do meu tempo histórico e de minhas circunstâncias pessoais, meu cotidiano. Mas me interessa menos, como poeta, falar apenas das circunstâncias e anedotas de um cotidiano pessoal, fortemente coladas ao meu corpo e a minha identidade. Inclusive porque penso que somos identidades mutantes, e muitas vezes, esse cotidiano “único”, essa identidade que me define como mãe, por exemplo, foi e ainda é o horizonte máximo permitido à voz feminina. Na medida em que falamos daquilo que biologicamente nos caracteriza, por exemplo, entramos no campo de expectativa daquilo que é tolerado, no campo da construção de uma identidade cristalizada e que nos engessa. É claro que somos e sou isso também, mas tenho certo receio em me deixar levar pela contaminação do campo do biográfico, do biológico, como forma de afirmação da identidade como escritora. Acho que sou, ou quero ser, muito mais do que meu corpo, minha biografia, meu cotidiano, às vezes muito insignificante.
Me interessa trasladar esse cotidiano específico e local, tanto meu como do meu tempo e circunstâncias, numa declinação mais universal, válida para homens e mulheres que vivem em outros lugares, em outras temporalidades, com outros olhos, mas que partilham comigo experiências que os transcendem, como é o caso da crise humanitária dos migrantes, desde um ponto de vista social e político, mas que tem reflexos nas formas como o sujeito (indivíduo) se pensa, quando pertencente a dois ou mais mundos e culturas e línguas, dividido. Esse tipo de reflexão é a que move minha escrita, a possibilidade de olhar para além do fato em si, leve ou grave que seja. Transcender de alguma maneira minhas circunstâncias. Dialogar com meus antepassados e meus tataranetos. Ser contemporânea deles. A possibilidade de sermos outros e não presos a um tempo e um lugar que nos digam o que devemos ser, o que deveríamos ser.
A poesia, a arte em geral, para mim não é apenas denúncia ou observação do real. Acho que é mais do que isso, é a possibilidade de criar outro mundo possível, o ainda não imaginado, o ainda não vivido. Essa abertura se dá pelo trabalho feito a partir da linguagem.
No caso de O gosto amargo dos metais, por exemplo, demorei muito para achar a medida certa da linguagem, que desse conta desse mundo em explosão (que foi a destruição causada pelo rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, em 2015 e 2019), mas através de uma linguagem que fosse cavada, por subtração – como são cavadas as montanhas de Minas.
Queria uma linguagem essencial, óssea, que tirasse matéria à matéria excessiva que foi a que intoxicou o rio e a vida na região. Virar o excesso pelo avesso. Queria meio que uma gênese às avessas. Nesse sentido, Mariana e Brumadinho são lugares-totens da destruição e do que é desbordante, excessivo, infeccioso.
Queria trabalhar com uma linguagem que pudesse soar dos primórdios. Tinha nos ouvidos os versos de um dos poetas que mais amo, o irlandês Seamus Heaney, e recorri a ele para encontrar essa linguagem “universal”. Mariana e Brumadinho eram também lugares onde, possivelmente, poderíamos encontrar os homens na turfa de Seamus, 500 ou mais anos atrás…. o processo de erosão material e simbólica me permite ligar a turfa do Heaney à lava tóxica de Brumadinho. O começo e o fim se parecem bastante, o nascer e o morrer, são dois braços do mesmo corpo vital.
Esse tipo de “tradução” é a que me interessa quando escrevo. Traduzir um tempo histórico em outro, o local para o global – e vice-versa. E fazer isso cruzando as perspectivas e as línguas.
Como tradutora de autores suíços ou italianos, quais escritoras/es você gostaria que merecesse uma atenção maior no Brasil? Em linhas gerais, vejo hoje uma atividade muito intensa e variada de tradução no Brasil, principalmente de uns anos para cá, principalmente de literatura das áreas menos traduzidas como a italiana (digo, menos traduzida no sentido de que, quando cheguei ao Brasil, em 2002, estranhei a pouca presença de poesia italiana do século XX traduzida, se pensarmos na grandeza que é o Novecento italiano em poesia e prosa. Mas isso está mudando, graças ao empenho e competência de tradutores e tradutoras que trabalham nas universidades públicas brasileiras, ou que transitam pelas duas culturas, como as queridas e queridos Patricia Peterle, Francesca Cricelli, Claudia Alves, Davi Pessoa, Valentina Cantori, Elena Santi, eu e muitas e muitos outros.
Acho que a questão relativa à literatura suíça é um discurso a parte, complexo, porque pela própria característica plurilíngue do país e pelo fato de cada região linguística se vincular com uma tradição literária diferente (a francesa, a italiana e a alemã), isso contribui para uma dispersão muito grande, uma indefinição conceitual e identitária do que seria “literatura suíça”, fora do país, mas dentro também. Como definir a literatura suíça´? Hoje isso está mudando na Suíça, escritores e agentes culturais estão fazendo um grande esforço para tornar mais visível internamente (uns aos outros) o que se escreve nas várias regiões linguísticas, e consequentemente, ao se tornar mais claro internamente, fica mais visível fora das fronteiras geográficas e linguísticas da Suíça. Sem contar que o governo vem trabalhando muito e bem, apoiando a tradução da literatura suíça contemporânea, que me parece de fato muito rica pela diversidade de perspectivas, de idiomas, mas também porque hoje se enriquece muito com a chamada “quinta literatura”, ou seja, com as obras escritas por autores não suíços e não falantes maternos de uma língua nacional e que passam a escrever num desses idiomas. É um fenômeno que sempre existiu na literatura global, mas hoje se intensificou muito e no meu país de origem, encontrou uma acolhida entusiasmada por parte da crítica. Muitos desses autores recebem hoje os maiores prêmios literários nacionais, provando ser a língua de adoção, uma mãe amorosa. Esse tema me é muito caro, porque vivo essa situação como escritora aqui no Brasil, com a língua portuguesa como segunda, terceira mãe adotiva. Nesse sentido, acho que o Brasil deveria prestar mais atenção nesse fenômeno histórico, traduzir mais esses autores, essas autoras, e passar a produzir uma reflexão e um pensamento crítico que dê conta dessa nova realidade, global, isto é, a das poetas que escrevem em várias línguas, que se reinventam uma casa dentro da casa do outro.
Uma língua nunca é algo que a gente possui…. Acho que a gente partilha a mesma língua dos outros, como uma galáxia coletiva, um pouco como quando a gente observa a revoada de pássaros: é algo singular, a revoada, uma unicidade orgânica, em movimento, composta por uma multiplicidade de individualidades. Vejo a língua um pouco assim, como uma revoada, e a gente pode escolher voar em outras revoadas.
Atualmente esse é meu campo de interesse, inclusive atuando como tradutora: traduzi duas obras da grande autora húngaro-suíça Agota Kristof, que devem sair em breve no Brasil pela editora Nós, estou sempre atenta aos autores que leio no meu país, propondo títulos e nomes para editoras com as quais dialogo.
Uma das mais consagradas escritoras brasileiras, Clarice Lispector chegou ao Brasil muito criança, numa situação migratória em que a família fugia das atrocidades do país de origem, hoje a Ucrânia. Como você vê a escrita das mulheres? Difícil resumir em poucas palavras as reflexões que sua pergunta convoca. Mas, tentando voltar um pouco ao que disse nas outras respostas, vejo que na literatura contemporânea, são particularmente as mulheres as que escrevem nessa condição de autoras migrantes ou na diáspora, se reinventando em outros mundos linguísticos e culturais. Cada vez mais, são – somos mulheres as que estamos com o fogo aceso da palavra antiga e da palavra contemporânea, que carregamos para outros lugares e para nossos filhos, nascidos longe do país de origem, nossa língua e nossos mundos imaginados. Mulheres-revoadas. Penso que a literatura escrita por mulheres, hoje, vem com muita força, não só no Brasil… No contexto ocidental, estamos com mais de dois mil anos de História e de histórias por serem contadas, reinventadas, e sem nenhuma vontade de deixar isso para amanhã. Acho que a força da escrita das mulheres decorre muito dessa urgência calma, isto é, esse gesto que parece que carregamos de outras que não tiveram essa chance de escrever. E que levamos adiante com a calma de quem sabe que a hora é agora e não precisa desesperar, porque não tem nada a perder – já, sempre, perdemos tudo, a voz, a vida, o corpo, o desejo, o sonho. Agora não queremos mais e isso é bonito, intenso e essa força leva à vida, é júbilo e expansão. É potência, vontade de um mundo novo, e se esse mundo novo não vier, tudo bem, enquanto ele não vem, queremos uma nova forma de falar sobre ele – proque aliás, acredito que o tal mundo novo nunca veio nem virá, mas é precisamente na maneira de falar dele, na narrativa, que ele surge e se impõe no imaginário. Por isso queremos contar, narrar, fazer poesia, e termos nossas mitologias, cosmogonias circulando pelos livros.
E tudo o que uma escritora deseja e precisa fazer é ter força de imaginação e de fabulação aliada a muita persistência e olhar atento para o coletivo para que outros mundos existam, outros big bangs livrescos aconteçam, aqui e agora.
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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.
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