Um dos mais importantes vultos da filosofia francesa, Paul Ricoeur, nascido em Valence em 1913, faleceu em Chatenay Malabry, perto de Paris, numa sexta-feira, 20 de maio de 2005. Esse curto artigo surgiu inspirado pelo curso e pelos artigos a respeito de Ricoeur, de autoria da professora Jeanne Marie Gagnebin no IEL-UNICAMP e por obra da pouca ou nula repercussão que sua morte obteve em nossas universidades e suplementos literários: diante desse silêncio, torna-se importante apresentar a trajetória desse pensador.
Nascido próximo de Paris, Ricoeur perdeu seus pais muito cedo, tendo vivenciado de forma concreta a experiência da orfandade. Interessou-se por Filosofia ainda no liceu, inspirado pelo carisma de um professor dessa disciplina chamado Dalbiet. Na juventude aproximou-se dos cristãos de esquerda franceses, escrevendo artigos para revistas dessa orientação religiosa e coloração política, iniciando uma carreira de filósofo. Durante a Segunda Guerra Mundial, Ricoeur ficou recluso na Alemanha, onde aproveitou para ler e traduzir autores alemães como Karl Jaspers. Ao retornar para a França, ficou absolutamente chocado por não ter ouvido falar em Auschwitz durante seu encarceramento.
Espantado com a radicalidade do mal que veio à tona no final da Segunda Guerra, escreveu seus primeiros livros tratando daquilo que coloca radicalmente em questão a onipotência da vontade humana: a finitude, a culpabilidade, o mal: figuras dolorosas do involuntário. Notemos também que o problema do mal foi abordado desde então pelo viés simbólico, ou seja, de seus símbolos primários e seus mitos. Seu primeiro livro, Filosofia da Vontade, desdobrado em outro chamado Finitude e Culpabilidade, colocou alguns temas-chave da obra de Ricoeur: a não-soberania do sujeito consciente e sua relação simbólica e cultural com esse outro que lhe escapa.
Ricoeur, nesse período, procurou destronar não só a filosofia clássica do sujeito autônomo (Descartes e Kant), mas também seus sucedâneos contemporâneos, o existencialismo e o personalismo, com sua ênfase nos conceitos de responsabilidade e decisão. Buscou apoio em três vertentes distintas, mas que se reforçavam mutuamente na denúncia do humanismo metafísico. Primeiro, um pensamento poetizante que se reclama justamente do segundo Heidegger, seguidor de Nietzsche; depois o estruturalismo tanto lingüístico como, sobretudo, antropológico (Lévi-Strauss); enfim, a renovação da psicanálise com a doutrina lacaniana. Os três movimentos têm em comum a convicção de que não há sujeito algum que seja mestre de sua fala. Mesmo que não neguem as variações pessoais e estilísticas, essas tendências teóricas tendem a transferir a dinâmica de liberdade e de invenção, tradicionalmente atribuída à pessoa do sujeito individual, para uma entidade sistêmica tão eficaz como impessoal.
Atento, porém, aos excessos do estruturalismo e da psicanálise, Ricoeur resolveu confrontar-se com Freud, Marx e Nietzsche, controvérsias expressas nos livros Da Interpretação, Ensaio sobre Freud, de 1965, e O Conflito das Interpretações, Ensaios de Hermenêutica, de 1969. Notemos como eram recorrentes no pensamento de Ricoeur os conceitos de sujeito e de interpretação. O livro sobre Freud despertou a ira dos lacanianos, que por muito tempo ora o acusavam de plágio, ora o desqualificaram implacavelmente, tachando-o de filósofo cristão de menor importância, que ousara desafiar o mestre Lacan. A perseguição dos lacanianos fez com que Ricoeur, que nunca gostou de polêmicas públicas, ficasse até os anos 80 sem falar em psicanálise; a essa tumultuada recepção de seus textos seguiu-se a atitude hostil que tiveram os estudantes rebeldes de 1968 contra ele, ao invadirem seu gabinete na Sorbonne e lhe atirarem uma lata de papéis sobre a cabeça. Tais experiências desagradáveis fizeram com que Ricoeur ficasse muitos anos fora de seu país natal, partindo para lecionar e produzir no exterior, passando longos períodos nas universidades de Louvain (Bélgica) e Yale (EUA).
Paul Ricoeur foi um filósofo que muitas vezes em sua trajetória tomou uma posição mediana. Isso o fez excêntrico na França, em especial em Paris. Ao mesmo tempo, sua trajetória deu exemplo de diálogo com os textos alheios e tomada de posturas independentes. Ponderando sobre a filosofia analítica e a metáfora em uma de suas obras dos anos 70, Metaphore Vive (A Metáfora Viva), Ricoeur conseguiu ao mesmo tempo atrair o ódio dos desconstrutivistas fanáticos e o desdém complacente dos analíticos xiitas. Podemos dizer que a vertente fenomenológica do pensamento de Ricoeur o defendeu dos encantos entrecruzados do estruturalismo, da desconstrução e também da filosofia analítica.
Enquanto sua obra voltou-se contra os pensamentos com ambições totalizantes (Marx e Althusser, por exemplo), como em seu livro Ideologia e Interpretação, em sua vida Ricoeur se opôs especialmente à guerra da Argélia e à guerra da Bósnia. Simpático à esquerda, de família de velha tradição protestante, cruzou a obra de Marx dialogando especialmente com o althusserianismo e protestando contra a utilização no marxismo no Leste Europeu e na URSS. Segundo Ricoeur, essa utilização transformava o pensamento de Marx, pensamento que se batia pela conscientização, também em mantenedor de uma falsa consciência, completando um estranho ciclo. Para Ricoeur, a idéia de uma compreensão do mundo passa necessariamente pela análise dos signos e das obras que encontramos no mundo e que precedem nossa existência individual.
Pensador preocupado com o tempo, a narrativa e a leitura, capaz de dedicar uma densa obra de três volumes a tais temas (Tempo e Narrativa), Ricoeur fazia suas, citando-as, as palavras de Marcel Proust no texto Em Busca do Tempo Perdido: “Mas, para voltar a mim, pensava mais modestamente em meu livro, e seria mesmo inexato dizer, pensando naqueles que o leriam, em meus leitores. Pois não seriam, segundo eu, meus leitores, mas os próprios leitores de si mesmos, meu livro não passando de uma espécie de lente de aumento como aquelas que oferecia a um freguês o dono da ótica de Combray: meu livro graças ao qual eu lhes forneceria o meio de lerem a si mesmos.”
Lúcio Emílio do E. S. Júnior, Mestre em Estudos Literários (UFMG) e Doutorando em Teoria e História Literária (UNICAMP)
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