Roberto Leher, Marcelo Badaró e Cristina Miranda,
Em conjunto com outros setores, estivemos desde o primeiro momento de convocação do seminário que se realiza em 11 de outubro no Rio de Janeiro apostando na possibilidade de criação de um espaço de discussões que pudesse reunir, a partir de uma construção unitária, todos os setores que hoje elaboram politicamente sobre a constituição de um novo partido de esquerda, incluindo na discussão não apenas as correntes organizadas, mas também os militantes dos movimentos sociais que não se identificam necessariamente com nenhuma delas, como é o nosso caso. Defendemos neste processo, uma metodologia de discussão que incorporasse o máximo de militantes nos debates, e por isso o seminário foi estruturado com grupos de trabalho e plenárias.
Até aqui atuamos com o firme propósito de garantir as condições para um debate includente, nos limites do contexto, tarefa que estamos dispostos a continuar executando, na expectativa de que o seminário se desdobre em muitas outras iniciativas de mesmo sentido e direção. No momento em que o debate se abre, não nos furtamos a apresentar uma contribuição na expectativa de somar para o debate franco e respeitoso que esperamos possa cimentar caminho para a construção da organização política que a conjuntura exige.
Para tanto enfrentamos neste texto o debate sobre a conjuntura, porque é nela que situamos a necessidade e a possibilidade de construção de uma alternativa partidária de esquerda. Enfrentamos também o debate sobre a trajetória do PT, pois nosso objetivo é construir um novo partido, em um movimento que se inicia sob o duplo signo da ruptura e da unidade. Ruptura porque, ainda que com temporalidades distintas, tanto os setores organizados quanto os militantes independentes que estão interessados na discussão sobre o novo partido acumulam uma experiência, mais antiga ou mais recente (ou já prevista para o futuro próximo), de ruptura com o Partido dos Trabalhadores. Unidade porque o desafio que se coloca é garantir que nesse processo de discussão consigamos aglutinar todos os setores – das correntes organizadas aos militantes dos movimentos sociais que não as integram – que compartilham do objetivo de fundar um partido classista (que lê a sociedade pela ótica da luta de classes e toma partido da classe trabalhadora) e socialista (que luta pela transformação social, entendida como fim da sociedade de classes, e age consciente de que a transformação não se fará sem rupturas). Portanto, nos marcos da ruptura com o PT, é importante tomar a experiência recente do partido como ponto de partida para avaliarmos como surgem hoje mais e mais militantes dispostos a discutir uma nova alternativa. Também é fundamental que avaliemos a trajetória do PT para que possamos dela tirar os ensinamentos necessários a um salto de qualidade no instrumento político que queremos construir.
No que diz respeito à unidade que desejamos construir no movimento pela criação do novo partido, é necessário enfrentar o desafio de por em discussão os temas mais controversos que marcaram a experiência negativa com o PT e também as diversas expectativas que organizações e militantes possam ter sobre qual a natureza do instrumento político que desejam construir. Isto significa que temos a necessidade de discutir e construir propostas sobre pontos como: o projeto estratégico (o socialismo) e o caráter da organização partidária adequada a tal projeto; as relações do partido com os movimentos sociais; a concepção internacionalista e as relações com organizações internacionais; as definições programáticas que possam vincular as concepções estratégicas às propostas concretas para enfrentarmos os desafios da conjuntura atual. Este foi o esforço que fizemos a seguir.
A conjuntura atual no quadro das respostas do capital à sua crise estrutural
Desde a década de 1970, a economia dos países industrializados cresce a passos tão lentos que se poderia caracterizar toda essa fase como um período de estagnação econômica. As crises que o noticiário normalmente associa ao mercado financeiro, ou a determinadas regiões (crise mexicana, crise asiática, crise russa, crise argentina), são na verdade manifestações de uma crise mundial, expressão de contradições econômicas e políticas profundas. (Ver sobre este aspecto os vários trabalhos de François Chesnais, como o artigo publicado na Revista Outubro, no. 1). Podemos dimensioná-la através de indicadores que demonstram uma queda do crescimento dos países industrializados, que oscilava em torno da taxa de 5,5% ao ano (1965) nos anos 1960 e regrediu a taxas de 2% (1995) ao ano na década de 1990. Neste quadro, ainda seguindo Chesnais "O sistema capitalista imperialista mundial considerado como um todo investe a uma taxa muito fraca; ele não coloca, portanto, bastante capital criador de valor e de mais valia em movimento. Ele não produz mais bastante valor e mais valia para enfrentar as exigências às quais está confrontado. Quanto mais o sistema superexplora e pressiona, mais ele conhece a superprodução tendencial e mais ele sofre repetidamente os choques financeiros."
Na mesma linha, as políticas neoliberais (aí incluídas a retirada das políticas keynesianas de controle da demanda e a retirada dos direitos dos trabalhadores, desregulamentando o mercado de trabalho), bem como a ascensão do capital financeiro, devem ser entendidas como conseqüências e não como causas da estagnação econômica de longo prazo. Mas, os choques neoliberais acabaram por agravar, nos anos 1990, a situação de vulnerabilidade a crises da economia capitalista, em escala internacional. Robert Brenner esclareceu que "a crise (...)tem raízes profundas numa crise secular de lucratividade que resultou do excesso constante de capacidade e de produção do setor manufatureiro internacional”. O crescimento do setor financeiro deu-se, então, como conseqüência da incapacidade da economia real, especialmente das indústrias de transformação, de proporcionar uma taxa de lucro adequada. (Outubro, no. 3.)
Essa análise pode ganhar maior concretude quando aplicada ao carro-chefe da economia mundial, os Estados Unidos. Segundo os cálculos de Robert Brenner, a taxa de lucro líquido do setor manufatureiro nos EUA caiu de 24,35% , no período 1950-1970, para 14,5% , nos anos 1970-1993. No G7, as mesmas taxas eram de 26,2% e 15,7%, respectivamente. Uma crise que atinge o epicentro do sistema, os EUA, tem dimensões catastróficas para a lógica do capital, pois este hoje busca refúgio seguro financiando a economia norte-americana, cujo déficit público atinge proporções incontroláveis.(O boom e a bolha. Os estados Unidos na economia mundial) Hoje, a dívida pública federal norte-americana equivale a 36,1% do PIB do país. Para 2003, estima-se que o déficit público atingirá 304 bilhões de dólares e o acumulado é de uma dívida federal total de quase quatro trilhões de dólares ou mais de seis trilhões se calculado o conjunto da dívida e não apenas a parte do governo federal. (Cintra, Marcelo. "Rombo histórico". Reportagem, São Paulo, março de 2003)
Após a tentativa desastrosa de Clinton de aplicar internamente o receituário ortodoxo neoliberal e conter o déficit, o que acabou por acelerar a crise com a recessão interna, o governo de Bush filho retoma a fórmula de Reagan e do pai, de acelerar o financiamento público ao setor manufatureiro, através das encomendas à indústria armamentista. Mas, fazer a guerra é também a face mais visível de uma forma predatória de expansão do capitalismo numa etapa em que a crise de demanda e a superprodução de manufaturados acabam por exigir a transformação de tudo em mercadoria, para tentar conter a tendência secular de queda da taxa de lucro. Por isso, não apenas petróleo, mas água, biodiversidade, genes, saúde, educação, tudo deve ser submetido à lógica do capital. Não haveria exagero em dizer que o desejo do capital é patentear o sol e o ar, para deles obter lucro. O grau de destrutividade do estágio atual deste sistema é com certeza inédito. A fase atual da expansão imperialista estaria sendo marcada, seguindo Iztván Mézáros, por um "Imperialismo global hegemônico, em que os Estados Unidos são a força dominante (...) que se tornou bem prenunciada com a eclosão da crise estrutural do sistema do capital - apesar de ter se consolidado pouco depois do final da Segunda Guerra Mundial - que trouxe o imperativo de construir uma estrutura de comando abrangente do capital sob um governo global presidido pelo país globalmente dominante." (O século XXI: socialismo ou barbárie?) Por isso também devemos atentar para a precariedade da ilusão de estabilidade sob a bandeira de um "governo global" norte-americano, num contexto em que a cada dia surgem novos “inimigos” (o Afeganistão, o Iraque, a Coréia do Norte, a China...). Esta é a razão de Mézáros acrescentar ao brado de Rosa Luxemburgo de "socialismo ou barbárie", a frase "barbárie se tivermos sorte", "no sentido de que o extermínio da humanidade é um elemento inerente ao curso do desenvolvimento destrutivo do capital. E o mundo dessa terceira possibilidade, além das alternativas de socialismo ou barbárie , só abrigaria baratas, que suportam níveis letais de radiação nuclear." Por isso, o mesmo Mézáros afirma que tal projeto depende de uma saída dos movimentos de massa da classe trabalhadora de sua fase defensiva atual, pois "somente uma alternativa radical ao modo estabelecido de controle da reprodução do metabolismo social pode oferecer uma saída da crise estrutural do capital".
Vivemos uma conjuntura em que alguns sinais de saída da defensiva dos movimentos de massa parecem estar se dando, mas com limites muito evidentes para que possamos apostar numa etapa eminente de ascensão das lutas sociais puxadas pelos trabalhadores em direção à ruptura socialista. É o caso dos movimentos de resistência à guerra imperialista, em seu caráter de libertação nacional, nos países ocupados, ou no conteúdo de solidariedade internacional, como nas manifestações contra a guerra na Europa. Mais próximas a nós, na América Latina, apresentam-se lutas que possuem forte dimensão anti-neoliberal e mesmo anti-capitalista, mas que não afirmam necessariamente a alternativa socialista e não se articulam no plano internacional, vide o caso Argentino no passado recente, ou mesmo no momento atual o que ocorre na Bolívia. Por outro lado, vivemos uma fase de aglutinações internacionais em torno de movimentos anti-globalização que, embora tendam progressivamente a incorporar bandeiras anti-imperialistas, como a condenação à guerra, não assumem programaticamente uma perspectiva anti-capitalistas. É o que vemos no Fórum Social Mundial. Trata-se, como dissemos, de movimentos fundamentais, mas ainda insuficientes para caracterizar uma virada do quadro internacional a favor do campo das lutas dos trabalhadores.
A opção neoliberal não é conjuntural, mas constitutiva da nova coalizão de classes
Vivemos uma situação paradoxal. As políticas neoliberais, que fazem parte da resposta do capital à sua crise estrutural, provocaram catástrofes e misérias que intensificaram o genocídio na África subsaariana, empurraram para a miséria milhões de novos trabalhadores na América Latina e nos países centrais, sem sequer atenuar a crise estrutural do capitalismo. Entretanto, conforme Perry Anderson, essas políticas seguem dominantes em toda a parte, inclusive nos governos social-democratas e em países autoproclamados comunistas, como a China. O governo Lula, “o governo da esperança”, pode ser uma alternativa ao neoliberalismo? Tudo indica que não. Por isso, a célebre indagação feita por Lênin há um século tem de ser feita em novas bases: o que fazer?
O governo Lula não é circunstancialmente neoliberal, como afirmam crer as principais correntes de esquerda do PT. É neoliberal porque a sua coalizão de classes não tem saída melhor. Os principais setores representados na nova coalizão de classes, a saber, o setor financeiro (Meirelles), o agrobusiness (Rodrigues) e commodities (Furlan), acrescidos de gestores buscados no pólo outrora antagonista, como os operadores dos fundos de pensão (muitos vindos da CUT e do PT) e, mais amplamente, do Estado (Articulação e oligarquias regionais a exemplo de Sarney, Barbalho e ACM) necessitam dessa política para sua reprodução.
O neoliberalismo do governo Lula não é um ‘raio em céu azul´ pois, há tempos, o PT e a Articulação da CUT vinham sinalizando sua conversão ao pensamento único. O agravante, lembra Chico de Oliveira, é que, no caso dos partidos social-democratas europeus, essa mudança levou mais de meio século enquanto, no PT, foi quase instantânea: tão logo os dominantes se viram sem meios de prosseguir no governo, em virtude da crise, a direção majoritária do PT aquiesceu com o transformismo. A Carta aos Brasileiros simboliza o novo momento. Desse modo, Lula e o PT não preservaram, sequer, alguma cultura pública e republicana. O ardor privatizante em todas as esferas do governo – da previdência e dos transgênicos, da Monsanto ao Brasil Alfabetizado - ilustra esta opção.
Qual é a aposta do núcleo dirigente, em especial da Articulação? Conforme os documentos da Fazenda, é possível compatibilizar emprego e crescimento com as políticas neoliberais, desde que: (a) o crescimento econômico do núcleo capitalista seja significativo; b) os investimentos diretos estrangeiros (IDE) sejam elevados; e c) os “Senhores do Mundo” sigam apoiando o governo. Se essas condições forem satisfeitas, haverá estabilidade cambial, redução dos juros e do estoque da dívida e, desse modo, o Estado terá recursos para promover o chamado “espetáculo do crescimento”.
Todas as previsões ufanistas do governo fracassaram, pois os pressupostos da tese são frágeis: a) nos termos de Robert Brenner, o crescimento econômico dos EUA é instável, advindo hoje do endividamento das famílias; b) os IDE estão muito abaixo do esperado: US$ 3,5 bilhões no primeiro semestre (muito abaixo dos US$ 9,6 bilhões do período em 2002), devendo alcançar menos da metade dos US$ 10 bilhões previstos pelo governo para 2003: recursos que não serão aplicados em investimentos produtivos, mas em diferenciais de juros, ações desvalorizadas e aquisições e fusões de empresas; e c) os Senhores do Mundo, FMI, Banco Mundial, G-7, a exemplo das juras de amor a Menem, têm-se mostrado volúveis em suas paixões.
A coalizão de classes que assimilou o PT não será capaz de cumprir as suas promessas. A história é pródiga em exemplos e as conseqüências das medidas de Lula para os trabalhadores já são insuportavelmente severas. O desmonte do serviço público, por meio do arrocho de verbas e salários e do ataque aos direitos trabalhistas, como a Reforma da Previdência, cria obstáculos ainda mais ásperos aos milhões de brasileiros que necessitam da escola, da saúde e das políticas públicas. A política econômica, ao beneficiar exclusivamente o núcleo sólido da coalizão de classes, elevou ainda mais o desemprego. De acordo com o Dieese/Seade, a taxa alcançou dramáticos 20% em junho último, a maior desde 1985. Dos 500 mil novos desempregados de 2003, 270 mil têm pelo menos 11 anos de escolaridade. A renda dos trabalhadores caiu 27% desde 99, sendo 13% nos últimos 12 meses.
As lutas de classes assumem novos desafios
Frente à coalizão dominante, potencialmente mais forte – pois reúne os setores mais internacionalizados do capital, as oligarquias regionais e operadores recrutados no seio das organizações das classes subalternas – é preciso inventar novas formas de organização da classe que vive de seu próprio trabalho. Não é possível subestimar a grande capacidade de governabilidade da coalizão dominante: os maiores empreendimentos da mídia apóiam decididamente o governo; as forças repressoras permanecem a postos; as políticas sociais para os miseráveis podem ter alguma efetividade aqui-e-ali; as lutas anti-capitalistas no seio da CUT serão sistematicamente combatidas por sua direção majoritária; a coerção econômica prosseguirá, por um bom tempo, a restringir a luta do MST contra a política geral de Lula da Silva; parte significativa dos intelectuais seguirá colocando os seus cérebros a serviço da nova ordem etc.
Entretanto, a opção neoliberal é agora ainda mais dura do que fora no primeiro mandato de FHC, pois não há margem para ampliar os modestíssimos dispositivos de inclusão social. O desemprego segue numa curva ascendente em um quadro de quase nulo crescimento econômico e de forte redução dos investimentos. Ademais, os melhores empregos, particularmente no setor industrial, desmoronam em sintonia com a condição de país em processo de desindustrialização, conforme o Relatório da UNCTAD de 2003. Nesse quadro, não está descartado o recrudescimento dos conflitos sociais, tendência já verificada neste ano, em particular nas lutas pela moradia, pela terra e pela reforma agrária e na grande greve dos servidores contra a reforma neoliberal da previdência. Um indicador importante, quase ocultado pela grande imprensa, veio da última pesquisa de popularidade de Lula, realizada pelo IBOPE: somente 52% voltariam a sufragar Lula presidente. Devemos avaliar tais potencialidades sem exageros, pois não é possível extrair daí a conclusão de que teremos de pronto um movimento anti-capitalista de massa, visto o caráter fragmentado e imediatista de muitos desses embates. No plano ideológico, não é possível negligenciar a eficácia da atuação da CUT e, sobretudo, do próprio PT na manutenção da ordem. Existem vínculos duradouros que não são fáceis de serem rompidos. Destarte, para avançar na discussão dos desafios que se colocam para a perspectiva de construção do novo partido, é preciso pensar a trajetória do PT e como esse partido pode ser hoje um instrumento decisivo da governabilidade do capital, iniciativa que terá o apoio dos “Novos Senhores do Mundo”.
A trajetória do PT
Embora setores significativos que estão dispostos a discutir a proposta do novo partido, organizados em correntes políticas ou não, já tenham se desligado da referência ao Partido dos Trabalhadores – há mais ou menos tempo -, é inegável que a experiência recente do PT ainda é o ponto de partida para avaliarmos como surgem hoje mais e mais militantes dispostos a discutir uma nova alternativa. Também é fundamental que avaliemos a trajetória do PT para que possamos dela tirar os ensinamentos necessários a um salto de qualidade no instrumento político que queremos construir.
Os que estudaram a trajetória da esquerda, em especial da social-democracia e dos partidos comunistas sob o stalinismo, costumam partir de algumas interpretações mais clássicas que podem servir como referência para o processo vivido pelo PT. Uma dessas interpretações é a de que os partidos social-democratas precisam fazer uma opção: ou mantêm sua base social original (na classe trabalhadora) e os seus programas originais que apontam para mudança social (o socialismo) e não conseguem aquilo que eles dizem querer, que é ganhar o poder através do voto, ou flexibilizam os seus programas, fazem alianças para além da sua base social e chegam ao poder através do voto. Só que ao chegar ao poder através do voto, através dessa decolagem eleitoral, eles já não têm mais o mesmo compromisso com a mudança que tinham antes. (Ver por exemplo as idéias de Adam Przeworski, no livro Capitalismo e social-democracia).
Isso é de certa forma o que ocorreu com o PT, embora o partido, até bem pouco tempo, recusasse o rótulo de social-democrata. Desde as primeiras eleições em que o partido tomou parte, em 1982, e principalmente após a campanha presidencial de Lula em 1989, levantaram-se vozes cada vez mais fortes no interior do PT, defendendo uma flexibilização da sua política de alianças e de seu programa para conquistar vitórias eleitorais. Nos anos 1990 essa foi a prioridade política do partido, que acabou por assumir uma estratégia centrada no marketing eleitoral no melhor estilo dos partidos de direita, como saltou aos olhos em 2002, com Duda Mendonça ocupando o lugar de Tzar da campanha. A opção do PT por aderir a essa estratégia política e não tentar outra via de mobilização da sua base social para o projeto político do partido indica que esse projeto passou a ser cada vez mais eleitoral, ou seja, a tentativa de mobilização que o PT faz de suas bases é uma mobilização de bases eleitorais e não mobilização de bases sociais para um projeto de mudança social. Não é mais um projeto de, nas eleições, mobilizar a sua base social para participar do processo com o seu projeto social; o que se apresenta para garantir votos é o que se acredita que possa conquistar eleitores e não um projeto que ao mesmo tempo seja educativo, conscientizador, mobilizador para a mudança.
Outra forma de interpretação clássica de transformações em partidos de esquerda é a que se centra na idéia da burocratização. Na medida em que os espaços institucionais vão sendo ocupados e que o próprio partido se transforma num partido grande, em que a cada mandato conquistado amplia-se também a cadeia de assessores ligados a esse mandato, de verbas públicas utilizadas, a ocupação do espaço institucional passa a ser uma questão de sobrevivência para aqueles que ali estão colocados e para todos que estão a reboque deles. Então, a estratégia política passa muito mais por ganhar a próxima eleição para continuar ocupando aqueles espaços do que pelos compromissos programáticos ou com as bases sociais. Essa tese da burocratização tem uma versão conservadora, centrada na teoria das elites, para estudar a social-democracia (Ver Robert Michels e sua Sociologia dos partidos políticos). Mas há também a versão de Leon Trotski para interpretar o caso soviético e dos partidos nele inspirados, que envolve idéias como a de uma “crise de direção” oriunda de um grupo dirigente do Estado ou do partido que se burocratizou e por isso rompeu com o projeto revolucionário original se transformando em gestor de um Estado ou de um partido burocrático (ver a esse respeito, entre outros textos de Trotski, A revolução traída). Tais idéias também ajudam a iluminar a questão do Partido dos Trabalhadores, bastando para constatá-lo analisar os números e perfil de participantes dos congressos e encontros do PT, que definem os rumos partidários, em que ao longo dos anos 1990, passaram a predominar os ocupantes de mandatos, cargos públicos nas administrações municipais, estaduais e assessorias parlamentares ou executivas, escasseando cada vez mais o percentual de militantes sem vínculo com a institucionalidade nos espaços de decisão e nas direções do partido.
Todas essas teses, porém, dão conta do perfil e das opções das direções, mas é preciso entender também como se explica a trajetória do PT, pelo vínculo de classe de origem do partido. O PT surgiu como um partido representativo das lutas da classe trabalhadora brasileira. E se, nos anos 1980, essas lutas viviam uma fase de ascensão e isso explica a diferença do PT em relação aos outros partidos social-democratas ou mesmo comunistas e socialistas do mundo ocidental na época; nos anos 1990, por uma série de fatores, essas lutas viveram um declínio. O fato de haver uma base social do PT mais fluida hoje, mais eleitoral do que social, somado ao fato de haver uma organização dirigente da base social de trabalhadores original do partido, como a Central Única dos Trabalhadores, que já fez opção pela “consertação social” (nome novo para a velha conciliação de classes), pela burocratização – num processo de fôlego um pouco mais longo –, nos ajuda também a entender o que aconteceu com o partido. Há um recuo das lutas da classe trabalhadora no Brasil que contribui como contexto, como moldura geral. para que avaliemos como o Partido dos Trabalhadores tomou o rumo que tomou.
No governo, tais contradições do PT tornaram-se apenas mais evidentes para setores mais amplos e a ruptura com o projeto original de sua formação ficou nítida demais para que dúvidas ainda possam ser levantadas sobre o fato de que o Partido dos Trabalhadores transformou-se em um partido da ordem, morrendo como alternativa política para a luta da classe trabalhadora pela emancipação social. As propostas de reforma até aqui apresentadas, retirando direitos dos trabalhadores, são o melhor exemplo disso. O PT surgiu com uma proposta de ser um partido de esquerda, com horizonte socialista, mas de “novo tipo”: um novo partido em relação à experiência brasileira, isto é, em relação ao PCB e às organizações de esquerda dos anos 60, e um novo partido em relação à experiência internacional. Nem partido stalinista, comunista típico, nem partido social-democrata.
Pode-se dizer que o PT exagerou na afirmação de sua novidade. Partidos surgidos do meio do movimento sindical, em um momento de ascensão das lutas dos trabalhadores, no quadro internacional há muitos. A história do Partido Trabalhista Inglês ou do Partido Social-Democrata alemão é uma história que tem muitos pontos de contato com a história do Partido dos Trabalhadores. Mesmo no Brasil, o ressurgimento do PCB na redemocratização de 1945 tem muitas semelhanças com o surgimento do PT e sua trajetória no início dos anos 80. Porém, havia sim certas diferenças: o PT buscou manter nas suas origens um vínculo com os movimentos sociais diferente daquele da “correia de transmissão” e buscou alicerçar-se em uma democracia interna, que teoricamente deveria alimentar-se da participação ativa dos militantes nos núcleos de base e espaços de decisão do partido.
O PT tinha um projeto de se distanciar do modelo do partido comunista e da social-democracia, anunciando um socialismo pouco definido, mas aos poucos isso se diluiu, só que de uma forma muito particular. O PT era diferente do ponto de vista internacional porque as lutas sociais dos trabalhadores no Brasil viviam uma fase ascendente que empurrava o partido para uma política mais ofensiva, no contexto do fim da ditadura militar, enquanto no plano internacional os partidos de base trabalhadora viviam uma fase de refluxo, tanto os partidos social-democratas quanto os partidos de origem comunista. Os partidos comunistas viveram a crise do “socialismo real” e a social-democracia viveu a ascensão do neoliberalismo, ao longo dos anos 1980. Com isso, esses partidos perderam o espaço político conquistado no pós-guerra. Naquela época, a principal especificidade do PT era essa e não um horizonte socialista pouco definido.
A situação atual é que os partidos social-democratas voltaram a encontrar algum espaço, na Europa em especial, se adaptando à perspectiva neoliberal e rompendo com o modelo de “Estado de bem-estar social”, com aquelas políticas públicas de universalização de direitos sociais e redistribuição mínima de rendas, que eles mesmos tinham protagonizado nas décadas anteriores. Quanto aos partidos comunistas, estes desapareceram ou se adaptaram à lógica da social-democracia. Em poucos casos temos resistências importantes de núcleos originados de partidos comunistas, como a Refundação Comunista italiana, mas em geral o que temos são pequenos agrupamentos. Com o governo Lula, ficou claro que o movimento feito pelo PT foi saltar do seu projeto original, que era socialista – embora esse socialismo fosse difuso, mal definido – para a linha que hoje tem a social-democracia da “terceira via” do novo trabalhismo inglês de Tony Blair, sem ter passado pela experiência de lutar pelo Estado de bem-estar social, calcado em políticas públicas redistributivas. Sendo assim, hoje o PT não apresenta nada de novo ou específico em relação aos partidos que estão colocados, nada de diferente em relação aos partidos que estão no poder ou que têm forte participação política no mundo ocidental.
Esse deslocamento à direita do PT foi facilitado porque, desde a sua origem, defendendo uma via alternativa para fugir do dogmatismo dos partidos comunistas tradicionais, acabou adotando aquela idéia de que ele era “partido movimento”, quer dizer, que se fazia na sua própria prática. “Qual o socialismo que o PT defende?” perguntavam algumas pessoas, e Lula respondia: “O socialismo que os trabalhadores brasileiros vão inventar.” Isso era bonito, uma proposta construída a partir dos próprios trabalhadores, mas também dizia muito pouco sobre qual era o projeto estratégico do partido. O PT, em vários momentos, fugiu a esse debate, sobre projeto estratégico, sobre qual era a natureza do próprio partido, facilitando os deslizamentos da direção, pois afinal de contas, se o PT é uma coisa que se constrói a partir do próprio movimento, os dirigentes podem dizer: “o movimento hoje nos levou para essas posições”, “somos os mesmos, só que a conjuntura mudou e embora tenhamos os mesmos princípios, temos que adequar as nossas idéias”. Embora fique claro para nós que não foi isso que aconteceu, essa é a justificativa do partido, e uma das formas de entender isso é a fuga do debate de concepção, que se manifesta em muitos momentos, em nome da idéia de que seria o movimento que daria a dimensão política fundamental do PT.
Tomando um exemplo de deslizamento mais sensível no debate atual, uma das características da proposta nova do PT era a ênfase na democracia interna. A democracia interna do PT significava, pelo menos, espaço para duas coisas: a organização pela base, os núcleos de filiados deveriam ter poder de decisão no partido; e o direito de tendência, o que também seria uma novidade em relação aos partidos da esquerda comunista tradicional, que viam sempre a tendência como uma fração, como uma ameaça.
Embora a discussão sobre “centralismo democrático” possua muitas variantes, a perspectiva leninista clássica sobre “centralismo democrático”, em teoria, é uma perspectiva que acentua a democracia interna, no sentido de que os espaços de discussão são espaços valorizados, as diretrizes políticas são construídas por debate e decisão coletiva para, depois de definidas, serem implementadas pela direção, coordenação efetiva do partido. Então todo o debate é feito e, quando se fecha posição, todos caminham juntos em relação às decisões coletivas, coordenados pela direção partidária. Mas na trajetória da esquerda tradicional foi comum relevar-se esse aspecto de debate democrático, através de um certo substitucionismo, quer dizer, após o momento em que as decisões são tomadas em congresso, quando a direção responde por encaminhar a execução dessas decisões, o centralismo que deveria se dar em relação à ação unificada de respeito à linha política, acabava por ser entendido como concentração de poderes na direção, que muitas vezes substituía a decisão coletiva pelas leituras que fazia da linha política, enquadrando a partir daí as dissidências à linha da direção, ainda que conformes às definições da linha política, como traições aos princípios centralistas. Por conta do balanço dessas experiências e pelo fato de incorporar em sua fundação grupamentos que tinham certa organicidade própria, o PT nunca se definiu como um partido de “centralismo democrático”.
Muito ao contrário, José Genoino por exemplo, quando era minoria no partido, fazia questão de ir aos jornais da grande imprensa e dizer: “Eu não concordo com o que foi aprovado”. Isto acontecia tanto quando era parte da minoria de esquerda (na fase do PRC), quando após 1989, passou de forma muito ligeira a ser minoria (ao menos nos primeiros anos a seguir) de direita no partido. A experiência do atual presidente do PT é a prova maior de que nunca existiu o “centralismo democrático”, nem existiram grandes problemas no PT em manifestação de divergência de opinião. Mas o que se observa em relação ao caso dos parlamentares hoje prestes a serem expulsos do PT é que se não há “centralismo democrático”, há o pior da tradição da esquerda ortodoxa do século XX, que é o expurgo, no estilo stalinista mesmo. A matriz formativa de muitos desses dirigentes do PT é uma matriz stalinista, não há nenhuma dúvida quanto a isso; o que espanta, é que eles exercitem no poder com tanta desenvoltura essa idéia de expurgo como saída para lidar com a posição minoritária do partido – como a dos parlamentares que insistem em votar conforme o horizonte das resoluções históricas do partido - anulando de vez qualquer ilusão de democracia interna.
Em síntese, o Partido dos Trabalhadores hoje já não busca mais uma base social da classe trabalhadora, mas sim uma base eleitoral que passe pela classe trabalhadora, mas não só por ela. É um partido que se afina com a linha da social-democracia européia,em sua fase de “terceira via”, ou seja, uma linha em que o passado de compromisso com a base social dos trabalhadores é para eles evocado como um elemento de confiança política, de respaldo histórico. Porém, na prática de governo, o que se tem é o sinal de pólo inverso, na busca da confiança da classe dominante e do “mercado” (rótulo para o sistema do capital em sua atual fase imperialista), através da adesão à idéia de que o se papel no poder é tocar a política no campo que o neoliberalismo definiu.
O Novo Partido
A partir da caracterização da conjuntura que explicita a necessidade e a possibilidade de construirmos um novo partido da esquerda socialista brasileira e de um balanço da trajetória do Partido dos Trabalhadores que possa contribuir para uma avaliação dos motivos que levaram e continuam levando setores organizados e milhares de militantes a romper com o PT, chegamos ao ponto para onde converge o debate e, por isso mesmo, o ponto em que as divergências emergem: a natureza e o caráter do novo partido ou, em outros termos, que outro partido pretendemos fundar? Evidentemente, o ponto de partida do debate são os grandes problemas que devemos enfrentar para construir o novo partido.
Considerando a diversidade dos setores que estão se propondo a forjar a nova organização, compreendemos que um primeiro passo é a definição de métodos e encaminhamentos que viabilizem a construção da nova organização. Não devemos apresentar definições prévias fechadas, o que não quer dizer que seja possível fugir das questões de conteúdo mais importantes. Passemos então aos desafios.
1) Construindo a unidade a partir das rupturas
O desafio maior que temos pela frente no processo de criação de um novo partido é manter a unidade dos setores que hoje discutem essa alternativa, respeitando as diversas temporalidades e experiências das rupturas com o Partido dos Trabalhadores. Será uma grande perda, não apenas em quantitativo de militantes, mas em termos de qualidade da discussão, se não conseguirmos unificar neste processo as correntes nacionais organizadas que estão em processo de ruptura/expulsão com o PT (como o MES e a CST), as correntes que não possuem a mesma visibilidade, por não estarem representadas no parlamento, mas que possuem enraizamento em certos setores da classe ou em certas regiões e aqueles setores organizados a mais tempo fora do PT, mas que se dispõem a construir uma organização superior, como é o caso do PSTU. A perda deste referencial unificador pode levar-nos à triste situação de confirmação, no interior da consciência da militância, da visão de senso comum de que quanto mais à esquerda no espectro das forças políticas estão determinadas organizações e militantes, mais fragmentação encontramos.
A fratura na unidade dessas forças seria um péssimo patamar para iniciarmos um processo, em especial porque tenderia a afastar aquele amplo conjunto de militantes que, decepcionados com a trajetória do PT, não apostariam numa alternativa que fosse marcada desde a origem pela incapacidade de construção unitária, entre setores que, no dia-a-dia do movimento sindical e popular, são identificados como verdadeiros companheiros de luta, pois não abandonaram a combatividade classista. Tal disposição para a construção unitária exigirá das organizações um elevado grau de responsabilidade política, responsabilidade diretamente proporcional às dimensões de cada fração.
O objetivo da unidade, porém, não dependerá apenas da boa vontade das correntes organizadas, dos seus parlamentares e das direções. Ao contrário, a unidade somente será efetiva e concreta se formos capazes de envolver no processo de construção do novo partido toda a militância dos movimentos sociais que não se referencia nas organizações hoje existentes, embora já tenha vivido ou esteja vivendo a ruptura com o PT. Esse envolvimento exigirá das organizações, além da responsabilidade acima comentada, a sabedoria do reconhecimento de que nenhuma das organizações hoje existentes é capaz de, por si só, aglutinar essa militância em torno de um novo partido. Não haverá novo partido se ele for projetado apenas como ampliação das organizações hoje existentes por adesão de outros militantes. Trata-se realmente de um desafio de construção de algo novo.
Por isso, desde os primeiros debates dos quais participamos, temos insistido que o novo partido não surgirá, ou não surgirá com capacidade de responder aos desafios que lhe são colocados, se for construído com base simplesmente em acordos de cúpulas. A realização deste seminário de 11 de outubro representa um triplo avanço no sentido do que temos defendido: 1o. Trata-se de uma construção unitária dos diversos segmentos que estão elaborando politicamente sobre o novo partido; 2o. Reuniu desde o primeiro momento de sua discussão, militantes dos movimentos sociais que não estão identificados com nenhuma das organizações hoje existentes, mas que estão investindo na discussão do novo partido; 3o. Foi projetado com uma metodologia de envolver a militância nas discussões, através dos Grupos de Trabalho e plenárias, de forma a destacar que, para enfrentarmos os desafios que nos são lançados, será necessário que, desde a origem, os protagonistas do novo partido sejam as bases militantes nas principais lutas sociais deste país.
Assim, defendemos que todos os desdobramentos deste seminário e os diversos processos que convergem para a criação do novo partido, sejam pautados pelo princípio da construção pela base, a partir do protagonismo dos militantes. Insistimos que o método de construção será decisivo para a representatividade, a legitimidade e a força da nova organização.
2) O segundo desafio que devemos enfrentar é o da concepção estratégica
Partimos das convergências: estamos todos envolvidos nas mesmas lutas centrais da conjuntura, porque enxergamos a realidade a partir da ótica das classes e da luta de classes e porque tomamos partido da classe trabalhadora, ou seja, compartilhamos de uma perspectiva classista como referência para o novo partido. Assumir o ponto de vista classista, numa sociedade em que a classe trabalhadora é explorada pelo capital, é defender a superação da sociedade de classes e, portanto, defender o socialismo.
Se temos convergência em defender um partido com referencial classista e horizonte socialista, para atuar nas principais lutas sociais da atualidade em favor da transformação social, nem sempre as formas de atuação para alcançar tal objetivo são as mesmas, nem na definição de quem serão os protagonistas dessa transformação.
Queremos defender aqui que não se chega ao socialismo pela via do acúmulo eleitoral. Essa é uma constatação centenária, que os setores mais conseqüentes do movimento socialista internacional fizeram ainda no início do século XX, no debate que colocou um fim a II Internacional. A proposta socialista requer a ruptura com o poder econômico do capital que se reproduz por meio da exploração do trabalhador e, por conseguinte, não será construída sem rupturas políticas e sociais. E a dimensão atual do domínio do capital, que mercantilizou não apenas os produtos do trabalho humano, avançando a ponto de converter a própria natureza a condição de mercadoria (das águas aos genes dos seres vivos), exigirá rupturas ainda mais profundas do que aquelas previstas pelos fundadores do socialismo.
O exame da história dos partidos de esquerda nos permite extrair várias lições. A primeira, característica da experiência petista de muita discussão e de parca definição estratégica, é a forma como se tornou etérea a perspectiva socialista. Deve ser destacado que, do ponto de vista da classe trabalhadora, a democracia representativa burguesa é hoje o melhor espaço para acumularmos e atuarmos em favor do projeto de transformação (e sabemos quanto foi importante superar ditaduras, em um país que viveu cerca de 50 anos dos seus últimos 100 sob regimes ditatoriais). Porém, chamamos tal democracia de burguesa, justamente porque ela não comporta efetivamente a idéia do governo pelo povo, que teria como conseqüência a possibilidade de um governo contra o capital. Não será através dos processos eleitorais que chegaremos ao poder, no sentido de conquistarmos as condições para o início da transformação socialista, embora siga sendo importante ocupar os espaços parlamentares e, particularmente, o debate eleitoral.
Em segundo lugar, no quadro atual da luta de classes, não será possível defender a ruptura socialista com conseqüência sem assumir que o protagonismo da mudança cabe à classe dos que vivem do próprio trabalho, aos trabalhadores, e não ao partido, que deve ser o seu instrumento, não seu motor. Definir o melhor instrumento partidário para desafios dessa magnitude significa, antes de mais nada, ter clareza do grau de heterogeneidade atual da classe trabalhadora, de forma a construir os mecanismos através dos quais ela possa atuar de forma unitária e consciente pela transformação. Faz-se necessário resgatar o sentido revolucionário da expressão “construir a hegemonia da classe trabalhadora”, tão corrompida pela proposital confusão entre hegemonia e vitórias eleitorais que a experiência petista nos quis impor.
Defendemos, portanto, como ponto de partida para um debate que exigirá aprofundamento de todos nós, que o novo partido, com referencial classista, horizonte socialista, pautado pela concepção de que o socialismo só se alcança pela ruptura com o domínio do capital, tenha como centro da sua atuação as lutas sociais que confrontam com o capital em suas várias dimensões, procurando conferir-lhes unidade de classe e um projeto estratégico de transformação. Um partido constituído pelos que estão inseridos nessas lutas e se dispõem a imprimir-lhes uma dimensão transformadora. Para nós, tal desafio não será conquistado com uma organização que se baste por aglutinar quadros revolucionários bem formados, capazes de aguardar o melhor momento revolucionário para guiar a classe. Outra perspectiva a combater é a crença de que o caminho para o socialismo passa pela conversão da base em apoio eleitoral de massa.
3) Um terceiro desafio diz respeito ao modo de organização e funcionamento do novo partido.
A experiência histórica de longo termo dos partidos socialistas e a trajetória recente do PT devem nos servir de referencial para pensar o tamanho das dificuldades que temos pela frente quando tratamos do funcionamento partidário. A deformação stalinista impôs aos partidos de tradição comunista uma lógica de autocracia do núcleo dirigente que provocou o rompimento de variados segmentos da esquerda socialista com a idéia do partido único. O substitucionismo da direção que se impõe às bases partidárias, reivindicando o centralismo para reprimir e rotular de traição a divergência interna, secundarizando o aspecto democrático na definição da linha política da organização, gerou posicionamentos críticos como os presentes na origem do PT que enfatizaram a necessidade de uma organização partidária com espaço para divergências (e direito de tendência) e garantia de democracia interna (respaldada por uma política de nucleação e de construção coletiva da linha partidária em encontros e congressos representativos, mecanismos de escolha de direções e de candidatos a partir das bases, etc.). Porém, como já comentamos, o que se viu no PT com o decorrer dos anos foi uma prática de tolerar o discurso divergente da linha construída coletivamente, quando isto interessava à direção e de aplicação do mais rígido centralismo autoritário para punir os divergentes da direção, ainda que coerentes com as definições partidárias coletivamente construídas. Por outro lado, os núcleos e as instâncias de construção coletiva da política partidária foram cada vez mais abandonados.
Não nos basta a simples afirmação do princípio tradicional do centralismo democrático, pois que temos que enfrentar o debate sobre as tragédias que sua aplicação gerou em diversos momentos e circunstâncias. Também não nos satisfará a forma tendenciosa como a liberdade de manifestação de divergências de opinião foi manipulada pelo PT. O desafio dos que constroem o novo partido é combinar o mais absoluto respeito pelos princípios de construção democrática interna da linha política da organização – exercício fundamental para a construção da democracia dos trabalhadores contra o domínio do capital – com a ação efetivamente unitária em torno dessa linha política nas lutas da classe trabalhadora.
Na definição dos mecanismos que garantam tal funcionamento partidário, devemos começar, desde já, a exercitar a prática da construção democrática pela base. Por isso insistimos que, como em todos os outros desafios aqui listados, e em muitos outros que temos pela frente, o método democrático de constituição do partido a partir do debate e posicionamento da base militante será decisivo para o perfil que ele terá.
4) O quarto desafio é o da definição do caráter do internacionalismo necessário à nova organização.
É possível constatar que a conjuntura atual difere da de alguns anos atrás, pelo pipocar de lutas sociais de grandes dimensões em diversas regiões do globo e em particular na América Latina. São lutas, entretanto, como já sinalizamos, que possuem forte dimensão anti-neoliberal e mesmo anti-capitalista, mas que não afirmam necessariamente a alternativa socialista e não se articulam no plano internacional. Por outro lado, vivemos uma fase de aglutinações internacionais em torno de bandeiras e movimentos anti-globalização (embora nem sempre assumidamente anti-imperialistas e, portanto, anti-capitalistas), como as que se materializam no Fórum Social Mundial e na sua bandeira de que “Um outro mundo é possível”. Para nós, tal bandeira precisa ser melhor definida, pois trata-se de um novo mundo, socialista, que não só é possível como necessário e para cuja construção, o ator fundamental continua sendo a classe trabalhadora. Essa definição, pela qual devemos trabalhar, não significa, no entanto, que possamos desprezar o potencial desse nível de articulação internacional.
Por outro lado, é necessário reconhecer que as diversas correntes que se dispõem hoje a construir um novo partido possuem vínculos e/ou referência política em organizações internacionais. Muitas delas, inclusive, oriundas de cisões internas a troncos de origem comum do movimento socialista internacional, o que obviamente gera dificuldades e problemas de confiança mútua. Um desafio do novo partido será superar tais dificuldades, respeitando os vínculos e referências políticas internacionais hoje existentes, o que exigirá das correntes organizadas a responsabilidade de não procurar impor suas referências sobre o conjunto da nova organização, da mesma forma que exigirá do conjunto do partido o desafio de uma prática internacionalista que procure garantir o mais elevado grau possível de articulação e a maior coerência possível na definição estratégica de todas as lutas internacionais das quais participaremos ou com as quais seremos solidários.
5) O quinto desafio é a relação com os movimentos sociais.
Não será possível, como já insistimos aqui em vários momentos, construir o novo partido sem partir das bases militantes que hoje efetivamente enfrentam o capital e o governo nas lutas sociais. Para tanto, o processo de construção partidária deverá envolver a todos os segmentos que nessas lutas chegam à conclusão de que é necessário construir uma alternativa organizativa superior. Mas, isso significa, também, que será necessário aprofundar o debate sobre a relação do partido com os movimentos sociais, superando a experiência recente de um PT que buscou romper com os compromissos históricos das bases sociais que o constituíram, mas insiste em apresentar-se como referência para tentar sustentar a partir dessas bases sociais uma base eleitoral para seu projeto de ocupação do governo.
Para tanto, o novo partido deverá apresentar-se sempre como parte das lutas sociais, mas terá que encontrar os mecanismos adequados para evitar que seu objetivo de conferir uma direção classista e socialista (nos termos aqui definidos) para essas lutas seja confundido com qualquer perspectiva de subordinação dos movimentos sociais aos ditames partidários, respeitando a autonomia própria a esses movimentos, raiz de sua força e representatividade.
6) O Programa
Por fim, ao menos entre os pontos que aqui podemos abordar, é necessário incluir entre os nossos desafios o da construção do programa para apresentar à classe trabalhadora como forma de enfrentar a conjuntura, coerentemente com o horizonte de transformação socialista que defendemos.
Há razoável acúmulo em torno de pontos comuns a uma pauta programática mínima pela qual possamos pautar nossa intervenção desde já, combinando a perspectiva do confronto à lógica capitalista em sua fase de reestruturação produtiva neoliberal e em seu desenho imperialista atual, com as bandeiras concretas que possam mobilizar a classe trabalhadora para as lutas que traduzam esse confronto. Aí se inscrevem: a ruptura com o FMI, com as negociações da ALCA e o não pagamento da dívida externa; a revisão das privatizações e da abertura de setores estratégicos para o capital internacional; a redução da jornada de trabalho sem redução de salários; a garantia e ampliação dos direitos trabalhistas hoje existentes, revisando as reformas que retiraram direitos; programas de ações inclusivas universalizantes, para garantirem a superação das condições sub-humanas em que vivem os (as) dezenas de milhões de brasileiros (as) miseráveis, como a criação de frentes de emprego formal em obras públicas, como saneamento e construção de moradias (atacando a questão do emprego, da saúde coletiva e da moradia); e a reforma agrária sobre controle dos trabalhadores, combatendo o processo de criminalização da luta pela terra no Brasil.
O aprofundamento da discussão de programa, como os demais desafios aqui listados dependerão, insistimos mais uma vez, da nossa capacidade de ampliar a experiência atual em direção a um processo consistente de envolvimento da militância e construção pela base do novo partido.
Para tanto, indicamos os seguintes encaminhamentos, que não são formulações apenas nossas, pois apoiamos os pontos levantados até aqui nas discussões preparatórias deste seminário entre os diversos segmentos que se propuseram a organizá-lo:
1) Socialização da experiência e dos debates do seminário de 11 de outubro de 2003, através da divulgação de um relatório com os principais pontos discutidos e eventuais encaminhamentos, em forma impressa e através de um sítio a ser criado na internet,que abriria espaço também para a divulgação de elaborações de correntes ou militantes interessados na discussão e para a aglutinação de um maior número de pessoas de todo o país em torno das propostas em discussão;
2) Intervenções comuns nas campanhas e lutas da conjuntura- As correntes e militantes participantes do seminário devem mobilizar-se para intervir conjuntamente nas seguintes frentes:
a) calendário de lutas próximas, como: manifestação pelo passe livre dia 10 em Niterói; manifestação contra o descalabro educacional do governo estadual (contratação de professores concursados, fim das fusões de turmas, etc.), dia 14, no Palácio; manifestações no dia nacional da consciência negra (20/11); e tantas outras indicadas pelos movimentos sociais;
b) participação nas campanhas nacionais, entre as quais: pela libertação dos presos políticos da luta pela terra; não pagamento da dívida externa; contra a ALCA; contra os transgênicos; além das campanhas de âmbito regional;
3) Desdobramentos no plano estadual do seminário:
a) realização de uma reunião de avaliação com os setores que organizaram o seminário, em data próxima;
b) realização de debate com os setores que organizaram o seminário, em outras cidades, a começar por Niterói;
d) seminários temáticos sobre alguns dos temas que serão abordados no seminário (como concepções de socialismo; partidos socialistas; políticas setoriais, etc.), de forma a manter o debate e ampliar o envolvimento dos participantes no Rio de Janeiro;
4) Indicações de desdobramentos nacionais do seminário:
a) repetição de seminários no mesmo modelo (envolvendo as correntes nacionalmente estruturadas que discutem o novo partido e militantes dos movimentos sociais; e com modelo de grupos de trabalho/plenária) nos outros estados;
b) realização de uma reunião sobre novo partido na ocasião do Fórum Social Brasileiro, em Belo Horizonte (1a. quinzena de novembro);
c) realização de um encontro nacional, nos primeiros meses de 2004, para iniciar o processo de formação do novo partido (a ser encaminhado à reunião de BH);
É importante ressaltar que todas as indicações no plano nacional dependem de fóruns mais amplos do que este seminário de 11/10, que embora possa contar com participações de outros estados, teve uma convocação local, para ganharem a legitimidade necessária. Daí a importância da realização de uma reunião com caráter nacional, na oportunidade aberta pelo Fórum Social Brasileiro. Também queremos destacar que nenhuma dessas propostas tem a intenção de fechar questão em torno de quem está dentro ou quem está fora da construção do partido, ao menos nessa primeira etapa. Defendemos, por fim, que o calendário das discussões obedecerá ao ritmo imposto pelo movimento, não devendo se submeter a datas fechadas por opções de determinados setores que participam da construção, nem a calendários institucionais.
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