Por Sebastião Nunes
Tem gente que não me perdoa, mas continuo achando que a maior obra de arte do século 21 até agora – incluindo literatura, cinema, música, teatro e todo o resto – foi mesmo a explosão das torres gêmeas. Tudo perfeito. A hora escolhida, a beleza crua dos aviões detonando os edifícios, a transmissão em tempo real, a monumentalidade da realização... e até algumas vítimas inocentes (sic: ninguém é inocente, não é mesmo, João Paulo Sartre?) para temperar com sangue o grandioso espetáculo da manhã em chamas, que mergulhou em pânico e espanto os sentimentais, e encheu de sádico prazer os que não rezam pela cartilha do Tio Sam.
Mas meu assunto não é este. Estou pensando mesmo é em livro e leitura, embalado pela crônica de Geraldo Maia, “Bienal do Livro: cadê a leitura?”, publicada aqui em 23/2/2009, e pelo post-resposta de Ney Ferraz Paiva, de 28/2/2009, “mercar, sim, mas assim não”.
A resposta que eles procuram e não encontram, e eu também não encontrei, mas sei que tangenciaram, aponta pelo menos o problema maior: o livro transformado em mercadoria, e só mercadoria, foda-se o mundo e dane-se o leitor.
A questão básica é a seguinte: por que, existindo tantos programas de compra de livro e de incentivo à leitura, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes?
A resposta, alegórica: porque os empata-fodas continuam empatando a foda. E os empata-fodas são os vendedores de livros fantasiados de produtores de livros ou, se preferem eufemismo, em editores, distribuidores e livreiros, argh!
Perguntinha número 1: quais são, pela ordem, os três produtos mais vendidos nas tão badaladas bienais e feiras de livros?
Resposta: estandes, comida e bebida. Em quarto lugar ficam os livros, mas só em quarto lugar, assim mesmo com 99% de best-sellers vagabundos, biografias e fofocas de e sobre gente famosa, e obras de auto-ajuda, que não ajudam ninguém, é claro, só ajudam a encher o bolso dos autores de tais babaquices e das grandes empresas que mamam no público que sucumbe aos cantos das sereias do mercado.
Perguntinha número 2: por que as bienais de livro são tão badaladas, se em vez de servirem à cultura servem apenas a seus promotores e paus-mandados?
Resposta sintética: porque a grande imprensa está cheia de autores editados na base da troca de favores e precisa desovar seus próprios produtos pseudoculturais, ou seja, incrementar o círculo vicioso da mútua badalação.
Perguntinha número 3: quem são os “famosos autores” que ajudam a promover essas bienais de livros?
Resposta cínica: exatamente os autores de best-sellers, quase todos encastelados na grande imprensa do mundo todo (que culturalmente também está globalizado), que a cada peido recebem um milhão de dólares, e a cada arroto, idem.
Perguntinha número 4: por que, apesar de comprar e distribuir de graça tanto livro, o governo federal ainda não conseguiu, com seus milhares de “parceiros” da iniciativa privada, consolidar programas de leitura e escrita consistentes, seja a curto ou a médio prazo?
Resposta dedo-duro e longa, relendo a crônica de Geraldo Maia:
Sim, 70% dos livros editados no país são comprados e distribuídos de graça pelo governo federal, que mantém há alguns anos o maior programa de compra de livros do mundo. Pequena mas importante parcela é constituída de livros literários de boa e ótima qualidade. Falo do PNBE, Programa Nacional Biblioteca da Escola, ligado ao FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão do MEC. Os outros, a grande maioria, são didáticos, também indispensáveis nas escolas públicas.
Por outro lado, boa parte das entidades ligadas a livro e leitura, sejam elas editoras ou fundações, são pouco ou nada confiáveis.
Exemplo número 1: os governos da cidade e do estado de São Paulo fizeram expressiva compra de livros literários em 2008, meio por baixo dos panos, com aval da CBL (Câmara Brasileira do Livro), que privilegiou editoras paulistas, lógico. O garoto-propaganda, com sempre, foi nosso sorridente Ziraldo, o que faz tudo por dinheiro e holofotes, mesmo estando velhote e rico. Não preciso citar Maurício de Souza, claro.
Exemplo número 2: A Fundação Biblioteca Nacional, ligada ao Ministério da Cultura, lançou edital para compra de cerca de 2.000 títulos pré-escolhidos não se sabe por quem, já que a divulgação só apareceu depois do edital pronto, isto é, dos livros já escolhidos, se não loteados entre as editoras mais espertas. O CEM, Clube de Editoras Mineiras (do qual faço parte como sócio da Dubolsinho, de literatura infanto-juvenil), entrou na justiça contra a licitação. Perdemos, porque atiramos contra o que vimos (a licitação) e não visamos quem ordenou a compra (a FBN). Parece que a tramoia melou parcialmente, pois deve ter chegado aos ouvidos do Juca Ferreira, que quase certamente não sabia do rolo. Bravo editor cearense (não estou autorizado a escrever seu nome) recusou participação na gandaia, declarando em carta-aberta que não venderia seus dois títulos escolhidos, por não concordar com os critérios sombrios e sem transparência da escolha. Por outro lado, mesmo sendo Minas um importante polo na produção nacional para jovens, numa briga feroz por qualidade contra quantidade, as editoras do estado não tiveram um único titulo incluído na lista.
Exemplo número 3: a FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), baseada no Rio de Janeiro, e que fica a dois ou três quarteirões da FBN, promove todo ano o julgamento da produção editorial para jovens, com ênfase na badalada distinção “Altamente Recomendáveis”. Dos 25 votantes, 11 moram no Rio.
Perguntinha número 5: e então, como ficam a leitura e a escrita nesse país?
Resposta final: é preciso separar o joio do trigo, com perdão pelo truísmo.
As mais badaladas instituições ligadas a livro e leitura não passam de entidades de fachada, criadas por grandes empresas para não pagaram impostos e se promoverem na mídia. Literatura não faz parte de seus interesses, a não ser como meio.
Por mais que os “intelectuais” torçam o nariz para o governo Lula (a maioria inclusive não se cansa de fazer piada com seu pretenso “analfabetismo”, sem perceber que é o primeiro presidente digno do título em 110 anos de república patrimonialista, seus programas educacionais são motivo de admiração (e de reprodução) em muitos países, tanto mais ricos quanto mais pobres que nós.
Literatura com L maiúsculo, ou seja, aquela magnífica escola de vida que fez a glória dos grandes autores de todo o mundo, é dinossauro soltando os últimos suspiros. Me refiro especialmente aos romances de alto nível. Sobrou a escória, os que não sabem escrever porque nunca leram nada. São esses que alimentam a cadeia do toma-lá-dá-cá, a nojenta cadeia “produtiva” de livros que assola o país e que infesta tanto as editoras quanto a grande imprensa, ou seja, a que se vende em tempo integral.
Voltando às feiras de livro, com as famosas bienais (Rio e São Paulo) à frente: seu objetivo, não faz mal repetir, é encher de grana o rabo dos grandes editores, das grandes distribuidoras, das montadoras de estandes e das entidades que as promovem, além dos periféricos vendedores de cachorro-quente e refri. Só. Apenas isso. Nada mais do que isso. Leitura e literatura não foram – e nunca serão – convidadas para a festa, por mais que as duas palavras sejam citadas e usadas todo o tempo, como uma espécie de “abre-te sésamo” para a mais deslavada picaretagem livresca.
Enfim, e depois de tanto malhar em ferro frio, será que ainda preciso revelar o nome das novas torres gêmeas, infinitamente mais perniciosas que as outras? Aquelas, coitadas, eram apenas edifícios arrogantes e cheios de empáfia, produtos da grosseira megalomania ianque. As nossas, ah, essas fazem um mal danado a este pobre Brasil, tão precisado de seriedade e tão entregue às baratas do mau-caratismo e do pseudo-intelectualismo da classe média.
Sebastunes Nião, também conhecido como Sabião Bestunes, Nastião Sebunes e diversos outros codinomes, é ex-poeta, cronista e ficcionista, autor de vários livros de prosa satírica, entre eles Decálogo da Classe Média e Somos Todos Assassinos, relançados em dezembro pela Editora Altana, de São Paulo. Sobre sua obra, poética ou não, a Editora UFMG lançou recentemente, organizado por Fabrício Marques, o livro Sebastião Nunes (o título é esse mesmo). Passou dos 70 anos, está quase caduco mas, ainda assim, continua metendo o bico na vida alheia, tanto de vivos quanto de mortos, principalmente de mortos-vivos. E-mail: dubolso@uai.com.br
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