[Augusto Machado]
O Húngaro que agradou o marxismo tupiniquim
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O "amado" Meszáros (esquerda) em evento da Boitempo ao lado de Valério Arcary, dirigente do PSTU |
A obra do filósofo húngaro Istvan Meszaros tem tido boa receptividade no Brasil nos últimos anos. A partir de várias publicações de suas principais obras no Brasil na década 00, Meszaros é uma das principais referências do marxismo contemporâneo no Brasil. Sua magnum opus é Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (original de 1994), recentemente publicado (2002) no Brasil, sob a coordenação de Ricardo Antunes (Unicamp/PSOL) e tradução de Cezar Castanheira e Sério Lessa (UFAL). De grande repercussão no país a obra é um apanhado de vários textos e livros seus produzidos durante décadas.
É bem possível que seu sucesso aqui seja desproporcional, se comparado a outros países do norte. A utilização do autor aqui provém tanto da academia, quanto pela esquerda (PSOL, PCB, PSTU, mas também PT/PCdoB e afins). Não é por menos. Sendo a leitura do marxismo no Brasil pós anos 80 influenciada fortemente pela leitura via filosofia hegeliana, a partir das diversas correntes do marxismo ocidental, sobretudo Lukács, e pelo gramscianismo, Meszaros, pode ser tido como um filho tardio de uma corrente que outrora fora definida como marxismo de rosto “humanista”, oposto ao famigerado monstro ideológico ortodoxo-soviético do oriente. Aluno do próprio Lukács; integrante da chamada escola de Budapeste; de formação acadêmica invejável; aparentemente próximo das posições políticas de Rosa Luxemburgo: o filósofo é visto por muitos como uma atualização do marxismo.
Marxianos e cia: deixando o século XX órfão
Enfocaremos aqui as temáticas e polêmicas que envolvem o problema da transição socialista na obra do autor.
O autor tem sido muito usado pelo o que ultimamente tem se intitulado como “marxianismo”, ou corrente marxiana, caracterizada pela ênfase nos escritos do próprio Marx em detrimento dos escritos marxistas de pensadores posteriores. Uma espécie de ortodoxia mais ferrenha e de novo rosto, os marxianos pretendem alcançar o mais puro do marxismo da leitura integral e totalmente fiel de Marx, sendo qualquer alteração consequente na teoria marxista um desvio, até mesmo considerando absurdamente alguns escritos de Engels nesse sentido. Focam muito mais as obras iniciais e não publicadas(Manuscritos Econômicos Filosóficos, Sagrafa Família, Ideologia alemã) do que propriamente os escritos mais centrais e maduros,como o próprio O Capital.
Obviamente essa nova corrente, até agora quase que puramente acadêmica do marxismo (no Brasil, expressa nas novas cadeiras e linhas de pesquisa sobre o “trabalho”, de forte influência da “ontologia” lukacsiana), se impõe pela erudição e pela exegese dos escritos originais de Marx e contra o marxismo “chulo” e “ativista” do movimento operário. No âmbito da política o marxianismo se conforto na crítica "esquerda de oposição", social-democrata de cara nova, dos Fóruns Sociais Mundiais da vida. Já na análise histórica e no espectro ideológico, essa corrente se aproxima em muitos pontos dos paradigmas e críticas trotskistas/anarquistas/autogestionárias/conselhistas/luxembarguistas (que por sua vez são próximas das análises liberais, conservadoras etc...). Um exemplo claro é a proximidade de análise das experiências socialistas do sec. XX. Todas essas correntes são unânimes em negar enquanto socialista tais experiências, cada uma com uma justificativa: burocratização, ditadura, estatismo etc. Os próprios marxianos se utilizam até do linguajar mais gasto do anti-comunismo americano de guerra fria para tal fim, vide os termos chaves e neologismos “stalinismo, totalitarismo, ditadura...”.
O objetivo principal do marxiano Meszaros, hoje um grande referencial teórico para essas correntes no Brasil, é, sobretudo em sua obra da qual será analisada brevemente a seguir, Para além do capital, limpar o terreno da teoria marxista de suas falhas e enganos, atualizando-a para o século XXI. Ou seja, denunciar os desvios do marxismo que o distanciaram do Marx em pessoa, fazendo um balanço de toda a prática e teoria socialista que ocorreu após seu "criador" e rejeitar as experiências socialistas como um todo. Ir rumo a uma (nova e verdadeira) teoria da transição, para além do capital.
A tese central e, pelo seu enfoque, “original”, que Meszaros repetidamente (e às vezes enfadonha e prolixamente, vide seu catatau de mais de 1000 páginas...) tenta nos demonstrar é que: a obra de Marx é uma crítica aocapital e não somente ao capitalismo, sendo este só uma forma social e política daquele se manifestar. Entendendo o capital como modelo sociometabólico que determina tanto os seus microcosmos e seus macrocosmos respectivos a partir de seus imperativos de expansão-acumulação, quanto suas personificações (subjetividades das determinações objetivas alienantes), este seria muito mais profundo e difícil de ser eliminado social e historicamente. Pois o capital não se expressa somente o regime burguês, mas todo e qualquer regime em que se mantenha a hierarquização e imposição vertical no mundo da produção (dominação exploradora e alienada sobre o trabalho) a partir da divisão social do trabalho e da separação entre os produtores diretos e meios de produção, assim como entre produtores e o poder político sobre a produção social, que se expressa na tríade ESTADO-CAPITAL-TRABALHO. Sendo assim o capital (e seus consequentes complementares) poderia sobreviver, como sobreviveu na URSS (que nesse caso se torna pós-capitalista/pós-revolucionária, segundo a definição do autor, mas ainda não socialista), mesmo após revoluções ditas anti-capitalistas no sentido original do termo.
Aqui ficamos próximos a outra tese “marxiana” do anti-trabalho de Kurz, em seu O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Tendo um ideário muito próximo na avaliação do “socialismo” (entre aspas para esses autores) do sec. XX, só que de maneira menos ortodoxa, Kurz a partir do desenvolvimento da teoria crítica iniciada pela Escola de Frankfurt, ambos jogam no mesmo saco o socialismo realemente existente (entendido não como uma nova formação social, mas sim um sistema preso à forma-mercadoria provindo de uma revolução burguesa/moderna aos avessos, mas predominantemente estatista como as “originais”), o capitalismo e o nazifascismo como sociedades produtoras de mercadorias/sociedade onde impera o capital e por isso mesmo fetichizadas no mesmo sentido (na louvação do trabalho abstrato, continuidade da lei do valor, etc.). Uma revolução social, nessa perspectiva dos autores, que é compartilhada por muitas outras correntes socialistas dissidentes que negam as experiências século XX, deveria abarcar uma transformação radical de todas as estruturas sociais, de uma vez, e em todos os lugares (debandando o capital, o trabalho, o estado, e todas as classes consequentemente), e não só uma revolução política de tomada do poder do estado ou “expropriação dos expropriados”, como foi na versão socialista soviética. A revolução social deve buscar ao máximo formas de não possibilitar nenhum risco de se retornar ao capitalismo como ocorreu no final do séc. XX na URSS, ou dessa sociedade pós-revolução se tornar apenas mais uma forma nova de manifestação do capital/sociedade do valor, com novas personificações (Estado-Partido etc).
Para Meszaros, assim como para outros autores como Kurz, não era possível nem no tempo de Marx, nem no tempo de Lenin e seu elo mais fraco, realizar uma revolução realmente socialista e incontornável, pois o capital ainda não se apresentava em uma crise estrutural: o modo de produção ainda não se tinha esgotado no sentido original de Marx em seu prefácio de 59. Ou seja, no século XIX e XX, independente dos sacrifícios e esforços dos revolucionários e das massas, ainda existiriam possibilidades de exportar contradições e assumir novas formas de salvar acumulação, através da intervenção estatal, por exemplo. Sendo assim: 1) não havia condições objetivas para uma revolução e 2) estava impossibilitada a implosão do sistema como um todo, já que o próprio capital ainda não estava em uma crise estrutural. É a partir principalmente da falência do keynesianismo e da sua “solução” monetarista, assim como da falência da via do socialismo de mercado da URSS, que abre-se espaço para a atualidade histórica da revolução socialista, já que o capital, agora mundialmente presente, em sua crise estrutural atinge seus limites e contradições absolutas e ameaça a sobrevivência humana no planeta.
Traços de uma “teoria da transição” que Marx aprovaria
Com a atualidade da revolução em mãos, e na certeza de uma crise inescapável do capital, apesar desse processo não ser linear, a esquerda precisa de um novo paradigma de atuação já que seus modelos teóricos e organizativos majoritários do sec. XX falharam terrivelmente. As duas faces da mesma moeda da chamada defensiva socialista, a social-democracia (gradualista, atuação parlamentar) e o leninismo-stalinismo (voluntarismo que não rompe com o capital e desemboca num socialismo de mercado), a partir de sua lógica binária de braço político e braço de massas/econômico, mostraram-se fracassadas para construir um projeto positivo, mundial e emancipador. A teoria nova da transição então se foca no retorno a Marx e em muitos pontos na negação de Lenin (e na sua substituição por Rosa): devemos construir uma “consciência comunista de massa”, abandonar as lutas na linha de menor resistência do capital e o fetiche do partido hierárquico, para o próprio bem e sobrevivência da humanidade, a partir de uma organização pluralista de atuação extraparlamentar que busque a não reprodução da ditadura leninista que se voltou “contra o próprio proletariado” ou do reformismo conciliador da social-democracia. Grande desafio... como o autor respode?
O autor não dá maiores indicações, que sejam claras e concretos, apontando politica e sociologicamente os agentes e as formas dessa luta de classes rumo à revolução. Tudo permanece no campo da abstração da objetividade. No final, a luta será no marco do trabalho versus capital total, um inimigo invisível. Poucas vezes o autor se refere ao termo burguesia, por exemplo. A política é possível assim? Essa visão é típica também do pensamento de Kurz: averso ao que acusa de “sociologismo” do “marxismo de movimento operário” que “em vez de criticar o próprio capital, passou-se a criticar os capitalistas que tinham que aparecer como sujeitos pessoais da relação social da mercadoria, que na verdade não tem sujeito algum”, o mesmo afirma, não apontando nenhuma estratégia revolucionária concreta, que: “O verdadeiro despotismo da modernidade é o absolutismo do dinheiro, sem sujeito, isto é, aquele do trabalho abstrato e de sua exploração em empreendimentos econômicos.”
À guisa de conclusão: Meszaros, o marxiano emergente, é (in)dispensável?
As críticas de Meszaros, e de seus irmãos legítimos ou não, são justas? Suas propostas, viáveis?
Fatores objetivos, mas, por favor, nem tanto assim...
Em primeiro lugar, deve-se observar que a crítica de Meszáros ao século XX e às experiências da alternativa socialista do passado para a construção de uma nova teoria da transição é limitada, como na maioria das críticas trotskistas, anarquistas e afins, às experiências da URSS. Elas apontam problemas graves e verdadeiros, porém, de maneira distorcida, por isso, não devem ser consideradas no final das contas. O debate das limitações da URSS não é novidade. As propostas de socialismo e de transição, no século XX, iniciaram uma verdadeira guerra interna do socialismo (que muitas vezes chegaram às vias de fatos...). Essa disputa, que acabou com o retorno da maioria dos países ao capitalismo "puro", contribuiu pelo menos para uma elevação da consciência dos comunistas. Hoje não existe comunista sincero que não busque olhar criticamente a experiência soviética. Mas olhar "criticamente" é uma coisa, aplicar o revisionismo, a difamação histórica e se aproximar da contra-revolução ideológica é outra. Meszaros, por exemplo, assim como muitos de seus comparças, desconsideram quase que por completa à experiência do socialismo na China, e suas diferenças e oposições ao modelo soviético, sobretudo depois da subida de Kruschev ao poder, símbolo da consolidação do revisionismo soviético. Esse fator de cabal importância para pesar a teoria e prática socialista do sec. XX normalmente é esquecido ainda mais na esquerda brasileira. Para Meszaros, e tem-se essa impressão ao ler seu livro principal, a China não existiu: nenhuma avaliação política e econômica séria é realizada. Para variar, e deslocar sua incapacidade de considerar a experiência chinesa e seus frutos, o autor joga-a no saco de sociedades pós-revolucionárias, de molde político “stalinista” (sic) que sempre acaba em retorno ao capitalista. Essa visão desconsidera o esforço de vários autores marxistas que tentaram demonstrar os avanços chineses principalmente na busca de superação do Estado e da divisão social do trabalho. A Revolução Cultural, necessidade já anunciada por Lenin para romper com vícios de outros sistemas anteriores ao socialismo, no caso chinês, foi um exemplo máximo disso que é desconsiderado pelo autor. A tendência de levar em consideração só a URSS empobrece a teoria e distorce a história. E mais: é oportunista pois busca, de maneira ahistórica, forçar uma interpreção tipicamente anti-comunista do discurso hegemônico do pós-guerra.
Por outro lado sua crítica se diferencia em muitos pontos (e nisso Meszaros avança) das simplistas críticas subjetivistas ou voluntaristas sobre a URSS, que se limitam a culpar a burocratização, o Partido etc, sem levar em conta as condições materiais-objetivas que levaram à derrocada e ao fracasso a tentativa soviética no final das contas, além da ausência de uma teoria completa da transição no marxismo (vide principalmente o capítulo 23 do livro). O mesmo viés progressista por um lado, pode-se encontrar também em Kurz, que escapa das críticas subjetivistas e do personalismo ao afirmar que é errôneo pensar que existiam alternativas ao passado, alternativas que se baseavam pelo crivo reducionista de escolhas "certas" ou "erradas" que levariam a experiência da alternativa socialista sobretudo do séc. XX para um caminho completamente diferente. Da mesma forma o autor diz que “os céticos e críticos socialistas marxistas, que na União Soviética foram fisicamente liquidados pelo aparato stalinista à maneira jacobina, repetindo-se o exemplo da Revolução Francesa, nem tinham, no entanto, uma alternativa histórica a oferecer, nem estavam em condições de explicar em conceitos claros o processo social que estava se realizando diante de seus olhos. A tendência trotskista, que contava com uma “revolução proletária no Ocidente”, por considerar impossível o socialismo em um só país e especialmente na Rússia “subdesenvolvida”, enquanto o Ocidente cumpria as condições objetivas e subjetivas, foi uma mera ilusão.”
Mas ao mesmo tempo em que Meszaros considera os fatores objetivos, posicionando-se de maneira avançada para um justo balanço do passado das tentativas socialistas, sua crítica permanece confusa e não consegue abarcar uma dialética segura: ora afirmando que o socialismo pleno só é viável mundialmente (logo o caso do fracasso da URSS seria uma limitação objetiva), e por outro lado culpa a direção leninista-stalinista por não alcançar o socialismo, mesmo que a força das circunstâncias (país agrário, parca industrialização, guerra civil, boicotes, invasões imperialistas etc...) estivesse forte (capítulo 22). Ou seja, a derrota da tentativa soviético era inevitável pelas circunstâncias ou poderia ter vencido caso houvesse uma mudança de direção política? Mészaros prefere ficar com os pés nas duas canoas: culpa os “pregadores” socialismo de um só país, "expressões do capital", e posteriormente os livra da culpa. Aqui um auxílio conceitual, não tão usado por Meszáros com o objetivo de condenar toda a experiência da URSS, poderia ser útil: a diferenciação entresocialismo e comunismo, ou entre vitória completa do socialismo, e vitória definitiva. Ou como dizia Mao, estágio inferior e estágio superior. Os defensores soviéticos da tática conhecida como o socialismo de um só país, em oposição à lunática e inconsequente revolução permanente trotskista, nunca afirmaram, fora os revisionistas pós-Kruschev, a possibilidade de alcançar o comunismo num só país, mas sim ser possível com o avanço das forças produtivas e do modo de propriedade socialista alcançar a hegemonia das características socialistas no campo da economia, ao mesmo tempo que este serviria de base material e militar de auxílio para que a revolução não concluída se completasse nos outros países. Os recuos necessários naquela conjuntura objetiva-material caótica, nomeados por Lenin de Capitalismo de Estado, deixa bem claro que ninguém afirmava ser uma sociedade ainda com assalariamento e Estado, além de cercado pelo mercado capitalista, de plenamente socialista (comunismo): todos sabiam da necessidade de se completar a vitória do proletariado sobre todo o planeta. Como diz o economista soviético G. A. Koslov “Se o partido afirmasse a tese da impossibilidade da vitória do socialismo na URSS antes da vitória da revolução mundial, isto poderia gerar uma série de medidas erradas e aventureiras na política externa, bem como a estagnação no trabalho de construção socialista interna, o que acarretaria por sua vez uma pesada derrota para o movimento revolucionário mundial. Mas o Partido Comunista partia de que o meio mais poderoso de revolucionar as massas populares nos países capitalistas seria a construção com êxito do socialismo na URSS, uma vez que a URSS era a base da revolução mundial. O exemplo da URSS infundia a todos os trabalhadores a crença na vitória da revolução em todo o mundo, mobilizava as massas para a luta revolucionária.” E não fica claro essa necessidade ao perceber a crise da esquerda após da quedado bloco socialista? Nesse ponto, independente dos erros programáticos, táticos, estratégicos e teóricos do Komintern, fica claro a necessidade naquele contexto da continuidade da construção do socialismo com todos os recuos necessários no campo da economia, mas nunca largando mão o poder, ou seja sem largar mão que as classes trabalhadoras estivessem no poder (ditadura do proletariado com o campesinato). Meszaros por vezes parece não levar em conta a situação impossível que a URSS estava posta, materialmente, e que os esforços heróicos de Lenin e seus seguidores são no sentido de não esperar pacientemente reformas ditas nacionais-burgueses sob a hegemonia da burguesia e do imperialismo, para que só aí se crie possibilidades materiais para o socialismo (argumento dos dogmáticos e ortodoxos da segunda internacional). Lenin sabia que “aqueles que esperam pelas condições objetivas da revolução irão esperar para sempre”; que existe a necessidade de arriscar quando todas as portas se fecham. Estando num país periférico na era imperialista, e dada a consequente falência da burguesia local, o seu “voluntarismo” político correto naquela situação, era uma possibilidade, mesmo que não vingasse (e sabia-se as limitações caso a revolução alemã não explodisse), menos pior que não agir historicamente e a não tentativa de construção do socialismo. Como dizia Lenin “não é possível avançar sem caminhar para o socialismo”. O modelo político fixo de Meszaros, e também utópico, já que não leva em conta as dificuldades que a prática revolucionária.
Meszaros contudo não abandona a noção de ditadura do proletariado, mesmo a fustigando várias vezes. Com uma análise realista e sincera, que por vezes se distanciam do otimismo de Marx de certos períodos, concorda que diante da fragmentação da classe trabalhadora, e as contradições impostas no imperialismo, uma fase de transição sem uma instância política firme não é possível, diante da complexidade e do prolongamento provável desse período. Os riscos são vários, como a própria teoria leninista nos adverte, mas a necessidade dessa estratégia está no fato de que o fim da divisão social do trabalho, e consequentemente a queda do capital, não se pode dar de uma vez, mas através da modificação estrutural mediatizada da sociedade, o que significa bases materiais que possibilitem tal modificação e uma contínua ação política e cultural sobre as massas. Denunciando o simplismo daqueles que revindicam a estrutura da Comuna ou outras experiências mirradas de “democracia radical” para resolver toda a gama de problemas em escalas nacionais que essa questão da maior complexidade traz, questão que também envolve as resistências e contra-revoluções, Meszáros reafirma a necessidade do proletariado se organizar num Estado, mesmo que esse “pareça por vezes ir contra a sua classe” pois sem o mesmo, seria inviável o proletariado tornar-se classe dominante e concomitantemente destruir as estruturas sob as quais a sociedade de classes está posta. A passagem por um possível terror e corrupção, estes sendo uma extrapolação da velha forma para engendrar um novo conteúdo (só alcanço algo via seu oposto, quando forço os limites deste), são necessidades de mediação que a dialética sempre exigiu: entendendo aqui dialética diferente holismo ou dialogismo, onde não há categorias determinantes e, por isso mesmo, vias necessárias. Porém, o autor sabiamente alerta sobre as lacunas da teoria revolucionária marxista sobre o período de transição que ainda é preciso avançar para não cair em círculos viciosos e em retroalimentações, entendendo que “o Estado só pode ser desmantelado na mesma proporção em que a própria divisão social do trabalho herdada seja correspondentemente modificada”. Por isso o desafio marxista é, com a ditadura do proletariado, minar a fragmentação e contradições da classe trabalhadora, fortalecendo-a sobretudo subjetivamente, e desenvolver e reformular as forças e relações de produção dando bases para o fenecimento do Estado, já que as classes fenecerão com a derrota da burguesia/vitória do proletariado.
Por outro lado e contraditoriamente, podemos encontrar um tom bastante diferente em outras partes do livro, possivelmente escritas em época diferentes, que impossibilitam sua real e concreta posição do autor. Um Meszáros pessimista e confuso afirma, contrariamente, sobre a estrutura política da ditadura do proletariado que “é porque o trabalho não é abolido que o antagonismo se intensifica, criando uma nova forma de alienação [e assim] […] o proletariado volta sua ditadura contra todos os indivíduos que constituem a sociedade, inclusive os proletários” (p. 1026) [aqui o autor faz referência a noção leninista de “democracia para a maioria, ditadura para a burguesia”]. No final, ficamos num beco sem saída (se o Estado não acaba com o trabalho, e não é possível abolir o trabalho com o auxílio do Estado, que fazer?). Vemos então que há poucas esperanças de resolver as complexidades da reestruturação social, e nos resta esperar o amadurecimento das condições objetivas e condenar o “socialismo realmente existente” que de nada significaram para o caminho em direção à emancipação... Essas posturas dicotômicas, a falta de utilização de mediações, tornam o prédio de Meszaros um elefante branco, "rebuscado" mas pouco operante. Teorica e praticamente (eis o que importa) inviável.
Menos objetividade, mas, por favor, nem tanto assim...
Sobre o seu marxianismo, mesmo concordando que a obra de Marx não foi concluída em muitos pontos pelo próprio e a mesma não contempla várias dinâmicas do capital da era imperialista, Meszaros e os marxianos não rejeitam quase que nenhuma vírgula de Marx. Os mesmos que chamam o marxismo-leninismo de religião/dogma, ou fruto do “culto à personalidade”, não estariam caindo no mesmo "erro"? Tentando desesperadamente, para ser aceito pela esquerda pequeno-burguesa e pela academia progressista do pós-queda do muro, os marxianos, pintando-se de científicos, negam o legado e experiência proletária socialista do sec. XX, com seus erros e acertos justificáveis, taxando-a confortavelmente para se livrar da herança de “contra os ideais de Marx”. No caso de Meszáros o desespero chega ao extrema de comparar Stalin ao ultraliberal Hayek, sendo ambos inimigos, no fundo, semelhantes, pois são contrários à teoria emancipatória e "anti-alienante" de Marx. De acordo com Zizek, essa lógica dos marxianos deve ser abandonada por completo: “uma das armadilhas mais enganosas no caminho dos marxistas é a busca do momento da queda, em que as coisas tomaram a direção errada na história do marxismo: terá sido o Engels tardio com sua compreensão mais positivista/ evolucionista do materialismo histórico? Terão sido o revisionismo e a ortodoxia da Segunda Internacional? Terá sido Lênin? Ou o próprio Marx em seu trabalho posterior, depois que abandonou o humanismo da juventude (como certos “marxistas humanistas” alegaram há algumas décadas)? Todas essas questões devem ser postas de lado. Não há motivo para controvérsia: a queda deve ser inscrita nas próprias origens. (De modo ainda mais claro, essa procura do intruso que infectou o modelo original e colocou em marcha sua degeneração só pode reproduzir a lógica do anti-semitismo.) Isso significa que, mesmo se –melhor, especialmente se – submetermos o passado marxista a uma crítica implacável, primeiro teremos de reconhecê-lo como “nosso”, assumindo inteira responsabilidade por ele, e não nos livrarmos confortavelmente do “mau” resultado das coisas por atribuí-lo a um intruso estrangeiro (o “mau” Engels, demasiado estúpido para entender a dialética de Marx, o “mau” Lênin, que não compreendeu a essência da teoria de Marx, o “mau” Stálin, que estragou os nobres planos do “bom” Lênin etc.).” Essa é uma posição justa, não dogmática ou subjetivista/personalista de assumir a história da luta da classe proletária e de sua teoria máxima, o marxismo. O “erro” deve ser encontrado nas entranhas mais profundas, nas origens, da teoria ou da realidade/conjuntura e assumido enquanto “nosso”, sendo também da responsabilidade de todos corrigi-lo de maneira sincera.
Assim, a leitura a ser feita, na busca da universalidade do marxismo, não é a aplicação literal do original/ortodoxo, ad infinitum, mas sim essencialmente a “traição” que se equivale a uma atualização/superação, pois “da mesma forma que Cristo precisou da “traição” de Paulo para que o cristianismo emergisse como igreja universal (lembrar que, entre os 12 apóstolos, Paulo ocupa o lugar de Judas, o traidor, substituindo-o!), Marx precisou da “traição” de Lênin para levar à prática a primeira revolução marxista: é uma necessidade inerente ao ensinamento “original” submeter-se e sobreviver a essa “traição”, sobreviver a esse ato violento de ser arrancado de seu contexto original e lançado em cenário estranho em que se deve reinventar – só assim nasce a universalidade. […] Esse é o movimento da “universalidade concreta”, essa radical “transubstanciação” pela qual a teoria original tem de reinventar-se em novo contexto: só quando sobrevive a esse transplante pode a teoria despontar como efetivamente universal”. Esquecendo da sofisticada dialética de Mao (apud Zizek), afirmando que tudo deve se focar na luta/dialética somente entre capital-trabalho, como dizia o velho Marx, Meszáros esquece que “é precisamente na particularidade da contradição que reside sua universalidade”.
Essa leitura academicista, a do marxianismo, e politicamente desonesta, significa um retrocesso à teoria marxista, pois a limita à interpretação de Marx “em pessoal” tudo que aparecer na ordem do dia. As obras e análises políticas, em vez de se basearem na análise materialista e dialética da realidade social, se tornam quase um questionário ao fantasma Marx. Todas as respostas que forem contrárias às suas citações, serão errôneas. Com isso não se está afirmando a desatualização de Marx, pelo contrário: está se combatendo o fetiche personalista na teoria marxista, que não pertence a um indivíduo (que obviamente a formulou inicialmente), mas sim a uma classe, historicamente delimitada e em constante reconstrução na prática revolucionária. De acordo com Althusser em suas Notas sobre os AIE: “Existe, frequentemente, a crença de que uma ideologia como esta [teoria marxista] resultou de um ensinamento dado por certos intelectuais (Marx e Engels) ao movimento operário, o qual a teria adotado porque se teria reconhecido nela: dever-se-ia, então, explicar como certos intelectuais burgueses puderam produzir esse milagre, o de uma teoria à medida do proletariado. Tampouco foi, como queria Kautsky, introduzida de fora para o interior do movimento operário, uma vez que Marx e Engels não teriam podido conceber sua teoria se não a tivessem construído sobre posições teóricas de classe, efeito direto do fato de pertencerem organicamente ao movimento operário de sua época. Na realidade, a teoria marxista foi concebida por intelectuais, é claro, , providos de uma vasta cultura, mas no interior e a partir do interior do movimento operário. Maquiavel dizia que para compreender os príncipes é preciso que se seja povo. Um intelectual que não nasce povo deve fazer-se povo para compreender os príncipes, e só pode conseguir isso compartilhando das lutas desse povo. Foi o que fez Marx: converteu-se em intelectual orgânico do proletariado (Gramsci) como militante de suas primeiras organizações e foi a partir das posições políticas e teóricas do proletariado que pode compreender o capital.” Os marxianos acadêmicos não estariam esquecendo-se dessas lições?
Finalmente...
Entre avanços e recuos Meszaros está aí, mais uma bandeira dos marxianos, presente na teoria socialista importada, mas “brasileira”. Adorado pelos lukacsianos (aqueles que assim como Meszaros rejeitam o “forçadamente vendido” Lukacs soviético/stalinista) e gramscinianos, e até mesmo por trotskistas oportunistas (talvez pelo fetiche do termo “stalinismo” que legitima toda aproximação e aliança teórico-política), e rejeitado e tido como “neoleninista” por outros conselhistas, Meszaros é hoje um nome importante, de referência, mas previsível e de pouca ajuda prática. Sendo mais um acumulado ortodoxo e hermenêutico de citações das fases mais aleatórias de Marx somadas a fatos recentes, seu discurso pouco enérgico parece vir de longe, talvez dos anais franco-alemães, ou das críticas humanistas ao terror soviético do marxismo ocidental mais acadêmico, pouco original e de pouca ajuda nos tempos atuais. Algumas correções, sistematizações e fechamentos de arestas da teoria marxista realizadas pelo autor muitas vezes perdem o significado se comparados a obra como um todo.
Seu estilo e escrita, também são um problema. Sua falta de objetividade só enche as páginas de um enfadonho discurso que vaga por entre as planícies mais amplas e sempre retornam para o mesmo lugar. Suas reflexões sobre ideologia são fracas, repete chavões, sem considerar o imenso acúmulo e avanço teórico sobre a teoria das superestruturas do sec. XX (permanecendo aí um fiel “marxiano”), e demonstram ter poucas armas para entender e combater a lógica ideológica do capitalismo atual.
Nesse sentido, Meszaros, intelectual de extrema erudição, provindo de universidades de alto nível, cuja produção provém de um longuíssimo e árduo trabalho não consegue inovar e no final perde o alvo, não cumprindo seu objetivo: soma-se ao mais do mesmo do marxismo (ou do marxianismo), sendo somente uma dedução óbvia ou transcrição explícita das observações de Marx. Seu atual brilho sobretudo no Brasil talvez provenha mais da escuridão na qual nos encontramos do que de seu próprio pensamento. Assim, Meszaros, apesar de ser um autor muitas vezes didático (e como teórico, ele se mostra um ótimo professor), e de ser um contemporâneo, pode ser entendido, em muitos pontos, como descartável: diz o que todos sabemos, repete o que muitos já falaram e falam: que estamos num labirinto, com pouco tempo de vida, mas não nos mostra a saída (nem uma prática concreta para alcançá-la), a não ser com frases repetidas, rearranjos tautológicos e um discurso abstrato “radical”. Aqui, podemos repetir, no sentido estritamente “marxiano”, todas as críticas de Marx aos socialistas utópicos e idealistas.
No mais, para uma nova teoria da transição é preciso antes de tudo entender a unidade da teoria e prática. Concorda-se com Lenin quando o mesmo afirma: “a teoria revolucionária não é um dogma, ela só se forma de modo definitivo em estreita ligação com a prática de um movimento verdadeiramente de massa e verdadeiramente revolucionário”. Logo, a resolução das questões e lacunas da teoria não virá de constructointelectual impecável, muito menos de uma ação cega, mesmo que bem intencionada: mas de uma práxis revolucionária coletiva e organizada numa situação historicamente determinada que constantemente se renove e se supere, pois “o critério da verdade é a prática”. Os erros do passado foram muitos, mas nossos. Porém, como dizia Mao, o amanhã também nos pertence.
“Uma formação social nunca se desfaz antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela está pronta” MARX apud KURZ, 1992, p. 52.
ZEDONG, Mao. A Nova Democracia na China. 2006. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/mao/1940/01/15.htm. Acesso em: 12 ago. 2011.