sábado, 30 de janeiro de 2021

Psicanálise e Vida Cotidiana 2


 

            Esse livro coletivo, editado pela editora Literatura Em Cena (2020, organizado por Paulo Cecarelli, Victor Cruz e Eduardo Lucas Andrade), inicia-se com um texto de Bartholomeu sobre a transferência, tema muito importante na análise. O segundo texto é sobre o xamã David Kopenawa que, em associação com Eduardo Viveiros de Castro, excelente antropólogo, faz uma antropologia do homem branco.

 A seguir, há o texto de Eduardo Lucas Andrade tratando do pagamento para o analista e as situações que ele cria. O texto é muito bem humorado e cita uma anedota contada por Ferenczi:

 

Mesmo o homem mais abastado faz cara feia quando tem que dar dinheiro ao médico. Um exemplo desconcertante ofertado por um paciente: doutor, se me ajudar lhe darei toda a minha fortuna. O médico respondeu: Me contentarei com as trinta coroas por sessão. Não é um preço muito salgado, doutor? Foi a resposta inesperada do paciente (FERENCZI, 1928, apud: ANDRADE, 2020, P. 57).

 

Eduardo trata das várias questões que o pagamento levanta. Mas finaliza dizendo que  nada na vida é tão cara quanto a doença e a estupidez. O texto de Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Lacan, também tem colocações e provocações muito interessantes: ela observa como a psicanálise decaiu na França.

Os autores clássicos como Dolto, Lacan e outros continuam sendo editados e vendem bem, mas a produção contemporânea concentrou-se numa editora de Toulouse que edita apenas quinhentos exemplares de cada livro. E boa parte dos lançamentos é voltada para pedagogos e profissionais da saúde mental. Aliás, Roudinesco mostra que a psicanálise perdeu a posição que tinha anteriormente, prestigiada junto a marxistas e surrealistas. Hoje os psicanalistas são trabalhadores da saúde mental. Os psicanalistas não contam com apoio da psiquiatria, dentre outros problemas. Outro problema que ele aponta é a participação em programas de gosto duvidoso, forçando uma análise ruim ao colocar personagens públicas no divã, ao dizer coisas como “Macron não tem superego, casou-se com a mãe, é narcísico”. Roudinesco alerta que os psicanalistas brasileiros precisam evitar que aconteça com eles o que houve na França, onde a psicanálise passou a ter interesse histórico, virou coisa de museu, apenas.

O amor lésbico é assunto no texto muito arguto de Ivanildo e Monik. Um conto muito bom e vigoroso de Natália Polessa, Primeiras Vezes, é analisado. Há um texto de Lavarini sobre a transferência e a agressividade, bem como um de Leandro Alves sobre o tema do perdão e sua importância para o tratamento psicanalítico. Ligia Maria Durski fez um texto sobre um tema muito pertinente: a ligação entre a macropolítica e a micropolítica (em tempos de fascismo cotidiano). O atual contexto de pandemia e crise política e econômica gera situações em que a presença física do analista não pode acontecer como anteriormente e alguns pacientes não adaptam-se ao tratamento online. O bizarro é quando um paciente simplesmente acha exagerado o cuidado do analista, ou seja, alinha-se com a lógica dos fascismos cotidianos. Para trazer luz a um contexto tão adverso, Lígia Durski recorre a Foucault e sua análise de como poderia ser uma vida não-fascista.

Bem conectado ao tema proposto pelo livro, Michael Lopes analisa o infamiliar em uma série chamada A Maldição da Residência Hill. Mirelli Barbosa fala do amor e dos poetas, cita Fernando Pessoa e Platão. Lembra do nosso sofrimento e adoecimento em nome do amor. Monik, Stephanie e Ivanildo enveredam-se pelo fascinante universo de Nelson Rodrigues. Encontram um tema excelente: a rivalidade fraterna no conto Diabólica, de A Vida Como Ela É. Duas irmãs disputam o mesmo homem. Natália Paez analisa a relação entre Direito e Psicanálise tendo em mira nosso sistema prisional. Paulo Cecarelli levanta uma hipótese sobre a violência e o trabalho de cultura, citando a amada de Nietzsche e pensadora da minha grande admiração, Lou Salomé, que fala da hipocrisia da nossa civilização e nossa inadequação a ela.

O único artigo da coletânea a trazer ilustrações é de Roberto Barberene Grana sobre Winicott e Francis Bacon, o pintor, mas ele cita satiricamente algumas frases do filósofo também. E traz uma frase, a meu ver, marcante, seminal: “Do ponto de vista deste capítulo este Francis Bacon contemporâneo está se vendo no rosto de sua mãe, mas com certa distorção, nele ou nela, que o enlouquece ou nos enlouquece” (ANDRADE, 2020, 233).

Igualmente, o texto sobre a palavra e o significante na toxicomania, de autoria de Rodrigo Pardini, tratou da dificuldade em tratar os toxicômanos, iluminando problemas que, como professor, também encontro ao lidar com adolescentes que usam drogas e estão em idade escolar. E hoje eles são legião, são maioria. Observou que chegam muitas vezes drogados ao consultório, bem como eles vão ao consultório obrigados por alguém da família ou do trabalho. Ao lidar com os drogados, muitas vezes eles são rompidos com o instrumento de trabalho do analista. Sua fala não faz troca simbólica. Os significantes surgem e assim não é possível fazer aparecer o trabalho do inconsciente. O drogadito tem uma fala que é vazia de conteúdo. Monik contribui com um texto sobre a criatividade e por fim, Victor analisa o nosso difícil momento: o adoecer psíquico causado pela conjugação entre isolamento social, pandemia e crise.

Esse é o tema de O Colapso Brasileiro em 2020. É um drama atualíssimo e que ainda estamos vivendo em 2021. O analista conta que pacientes com obesidade passaram a trancar-se dentro de casa e obter significativo ganho de peso. Para muitos pacientes, a pandemia agravou suas patologias e tornou ainda mais difíceis de tratar. Uma frase citada é muito bela “o luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta”. Há quem até tenha pesadelo com uma situação em que está sem máscara, num salto de consciência dentro do próprio sonho. O sonho é invadido por restos angustiados do consciente Felizmente, diz ele, os sonhos estão em plena atividade, reconciliando-nos com a nossa capacidade de imaginar um futuro melhor.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Anos Rebeldes

 No romance elaborado a partir do roteiro da minissérie televisiva Anos Rebeldes, de autoria de Gilberto Braga (adaptação de Flávio de Campos e Sérgio Marques), o grupo da mesma faixa etária, o peer group ( ou "o clã") representa principalmente para os jovens uma extraordinária comunidade de ação e comunicação no decorrer da história. Assim, a coincidência ac0idental do nascer coletivo e do entrar no mundo dos contextos tanto micro como macro-sociais provoca realmente uma consciência coletiva, que pode ir além de comunicações ocasionais e demonstrações de simpatia. Mas nem todas as formações etárias desenvolvem identidade de geração. Para isso é necessária a existência de circunstâncias especiais. Para que haja uma situação "objetiva" de geração é necessário um acontecimento central marcante, histórico e determinante de traços biográficos e que tem de ser intensamente receptivo no contexto de grupo de jovens e também em instituições sociais adequadas. Para os jovens de Anos Rebeldes, versão romanceada, notamos que esse acontecimento é o golpe de 1964.




Nascer no mesmo ano ou em anos subseqüentes é biograficamente um acaso e sociologicamente desinteressante. Todavia observa-se freqüentemente no cotidiano que pessoas mais ou menos na mesma faixa etária se entrosam, se comunicam e se entendem "espontaneamente" e que no mínimo podem discutir mais facilmente sobre complexos temáticos específicos.



Mas depois dos anos 60 tornou-se difícil criar uma identidade de geração, apesar dos esforços mercadológicos da mídia. É esta dificuldade que pretendo tematizar aqui, buscando suas razões. A tese é a sociedade burguesa e moralista, patriarcal e de direita. As antíteses são os despudorados hippies e os revolucionários de classe média. O não surgimento de uma síntese provoca sintomas mórbidos por todos os lados.



A questão é que a queda do muro de Berlim não foi marcante para os jovens como a Segunda Guerra e as transformações de 1968 foram para as gerações anteriores, embora seja o grande acontecimento deste final de século. A juventude televisiva dos anos 80 só assistiu aos eventos bem à distância. E sem muito envolvimento emocional, já que 1989 acabou sendo uma restauração, uma volta ao capitalismo e a economia de mercado tal como antes de 1917, quando o regime soviético criou uma opção de outro modo de produção e conseguiu mantê-la funcionando - ainda que transformada numa "utopia burocrática". Em 89, os ideólogos do capitalismo determinaram que qualquer crítica a este sistema deveria ser silenciada. E entre estes ideólogos estavam vários componentes da geração 68, dividida agora entre os que aderem ao neoliberalismo triunfante e os que se entregam à melancolia pela perda das utopias.



"Geração" pode, em primeiro plano, ser caracterizada como uma modalidade da consciência coletiva, como variante especial na família dos "sentimentos coletivos". Após os de 45, também aos de 68 foi possível a formação de uma geração. E continua a ser este o mais proeminente exemplo de identidade duradoura de geração. Tanto que continua a influenciar os jovens de hoje, que tendem a buscar modelos no passado toda vez que não conseguem construir uma identidade com as referências culturais disponíveis. A série de Gilberto Braga só fez alimentar esta busca de uma utopia regressiva.



Gerações somente surgem através de um longo período de tempo e além de tendências conjunturais. Na parte jovem de hoje já há marcas potenciais de geração. A juventude de hoje diverge fundamentalmente de outros grupos etários. Há hoje tendências que podem proporcionar o surgimento de um novo modelo cultural que deverá se diferenciar do modelo das gerações precursoras, ou seja, tanto da geração que viveu a Segunda Guerra e o mundo pré-atômico quanto da geração da transformação de valores. As faixas etárias mais jovens vivenciam importantes mudanças: a descrença na militância política tradicional, novas línguas da cultura popular (rap e techno), profundas mudanças na tecnologia e no mercado de trabalho, vivência intensa da TV, vídeo e quadrinhos. O termo geração "X" não é muito usado no Brasil - a mídia norte-americana e européia é que o usam para definir que é uma geração cuja identidade permanece incógnita. Aqui o impeachment de Fernando Collor em 92 criou o rótulo "Geração Carapintada". O único traço notável da geração pós-68 é ainda a relação extremamente contraditória com os modelos anteriores. Hoje há muita gente defendendo posições de direita com discurso de esquerda e anarquistas de má-fé, espécimes desconhecidos para as gerações anteriores. Vale a pena tentar explicar os fatores que levaram a tão bizarras posturas.



Mas a contradição essencial é que, embora haja tais traços de formação de geração, ao mesmo tempo percebemos que as referências culturais dos anos 60 ainda se mostram mais atraentes. E desde a geração 68 não foi possível a formação de uma identidade geracional sólida. Só que nem sempre o avanço é positivo. Elementos como drogas, orientalismo, festivais de música demonstram desgaste, mas alargaram seu campo de influência. Na maior parte das vezes, todos aceitam as velhas idéias recauchutadas. Aliás, o significado propriamente dito da formação de geração é demonstrar que "nós não somos como vocês, e que vocês não conseguem acompanhar nossas transformações". Uma afirmação de continuidade na ruptura. O que torna a questão complexa é que as transformações podem ser reacionárias ou intrinsecamente negativas, conceito difícil de ser apreendido pela geração dos anos 60, acostumada a ver toda ruptura ou manifestação de desprezo pela tradição como positiva.



Os anos 80 provaram que o conservadorismo político pode conviver com a liberação dos costumes e com o vale-tudo nas artes sem ameaçar a ordem estabelecida. É colocando em pauta tais questões que poremos na ordem do dia os problemas da geração que se sucedeu à que viveu 1968, o chamado ano que não acabou.



O romance Anos Rebeldes tem um início que parafraseia o romance O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, uma referência importante para a geração 68 norte-americana:





Se você quiser mesmo saber, provavelmente você vai querer que eu conte onde foi que nasci, como é que foi a minha infância, que é que meus pais faziam na vida, etc. Mas não é isto o que eu quero contar. (BRAGA, p.3: 1992)





O passado recente, exibido na tela da Globo com a estética subhollywoodiana da telenovela, somado a cacoetes de Nouvelle Vague, faz propaganda de uma utopia regressiva, e embora revisite a história da esquerda brasileira, o faz como quem revê um passado vencido.



Escrevendo na orelha do livro de Gilberto Braga, Zuenir Ventura adota a versão de que, em 1992, uma nova geração superou a de 68, tendo desenvolvido características próprias. No entanto, o romance, assim como a minissérie, tentam ocultar os conflitos dos anos 60. A história mostra um retrato de época para o grande público, mas joga novas sombras sobre esse passado, adotando uma versão conciliatória.



Zuenir Ventura adotou um ponto de vista conciliador em seu livro 1968: O Ano que Não Terminou, mas às vezes age como um termidoriano, um neoconservador, como quando diz que "os jovens preferiam errar com Sartre a acertar com Raymond Aron". Ele equaciona essa disputa com a polêmica Alceu Amoroso Lima versus Nelson Rodrigues. Aqui parece que Zuenir Ventura tornou-se reacionário e passou preferir Nelson Rodrigues, que é o dramaturgo da chanchada liberal da classe média, e por isso os diretores de pornochanchada dos anos 70 sentiram tanta afinidade com sua obra. O que sucede é que no livro 1968, o Ano que Não Terminou, Caetano Veloso e Nelson Rodrigues se consagram e Sartre e o Dr. Alceu são tidos como cachorros mortos.



Quem não tem utopia, vive a história como fatalidade. Edgar, personagem principal do romance e também narrador, tenta reunir os fragmentos da época. Ele avisa que é uma "pessoa em quem se pode confiar". Edgar está em busca do passado, mas diz ser "um homem realizado, feliz, em paz". No final do relato, Edgar se revela adepto da cocaína, separado de Maria Lúcia há vinte anos, ameaçado de enfarte, em decadência física e, supomos, moral. O romance deve ser lido como a narrativa de um membro da geração 68, mas um sujeito atípico: viveu sempre nas beiradas da vida, sem lutar por uma causa nobre, sem fazer carreira na editora, de onde há muito foi afastado. Enfim, a história dos anos 60/70 em Anos Rebeldes é contada sob a ótica de um fracassado, e não de um homem bem-sucedido, ou, pelo menos, que esteja em paz com sua consciência. É bom lembrar que o próprio Fernando Collor dizia gostar dos Beatles e inventou para si um passado de lutas nos anos 60, quando de fato cresceu politicamente à sombra da ditadura militar. Edgar se mostra contraditório e traiçoeiro. Ele cita Swift: "bem-aventurados os que nada esperam, porque estes nunca se decepcionarão."



Durante o romance, Edgar dá sinais contraditórios, mas ao final a contradição é flagrante e desonesta. O romance deve ser relido à luz de seu niilismo terminal. É Caetano Veloso que, apesar de conciliador, examina a sua geração no pós-68:





Não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos sequer encontrado uma face humana no socialismo existente; tampouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito Santo; não tínhamos superado o Ocidente, não tínhamos extirpado o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual. (VELOSO, p.111: 1998)





Vamos supor que os desejos autodestrutivos de Edgar são decorrentes de todas essas derrotas. O relato foi gerado sobre a influência da Rede Globo, interessada que ela está em camuflar a sua origem em 1965, sob as benesses do regime militar. Gilberto Braga é o mais prestigiado produtor de sucessos globais, tais como Vale Tudo e Anos Dourados. Parafraseando Flaubert, Gilberto Braga é Odette Reutermann, assim como o autor da Educação Sentimental dizia ser Madame Bovary. Braga encena que matou o lado mau-caráter e reacionário da Rede Globo, ajudando um aparelho ideológico da ditadura militar a posar de progressista, justamente às vésperas da vitória de Collor em 1989, que irá consagrar o estilo Reutermann de ser e de viver.



O romance Anos Rebeldes revisita o passado, ocultando a tragédia e propondo que a história se repita como farsa. A farsa foi levada ao extremo por Fernando Henrique a partir de 1994.



O deboche escatológico do personagem Galeno com as aulas de canto orfeônico simbolizam a negação que alguns membros da geração 68 fazem da era Vargas:





-Aaaa-rranca pentelho, bate cu, bate culhão.



-Bumm-da, bumm-da...



-Caralim, caralim...



-Bebe limonada pra cagar de madrugada...



(BRAGA, 1992: p.17)





Galeno também agride o amigo Waldir com violência que denota homofobia e demonstra uma fixação com relações anais:





-Afinal, ô Galeno, o Vianinha vem pra Semana ou não vem?



O Waldir não devia...Era ele fazer a pergunta e já se arrepender de ter feito. Galeno partia com tudo para cima do outro.



-O Vianinha vem, minha Moita tímida, vem, sim. Pra conhecer estes teus peitinhos bicudos de tanta punheta e essa tua bundinha roliça.



(BRAGA, 1992: p.18)





O canto orfeônico foi também ridicularizado por José Miguel Wisnik, num ensaio sobre Villa-Lobos, O Orfeão do Estado Novo, Este Coqueiro que Dá Coco. O canto orfeônico é redundante, afirma Wisnik. E Villa-Lobos associou-se ao autoritarismo de Getúlio Vargas, conclui o professor uspiano. O valor estético de Villa-Lobos é atrelado a uma condenação política por um concretista/tropicalista, entusiasta ao mesmo tempo de Roberto Carlos e Schoenberg, Carmen Miranda e Stockhausen. Mesmo o autoritarismo de Vargas pode ser relativizado por sua atuação progressista, em especial no final da vida:





O segundo governo de Getúlio Vargas, eleito democraticamente em 1951, com um plano autônomo de desenvolvimento econômico em setores estratégicos - minerais, petróleo, siderurgia, energia nuclear – associado a uma política externa altiva, sacode a América Latina. Reproduzido continentalmente, transfiguraria o rosto e o andar do sul do Rio Grande. Em quantidade e qualidade. Para os Estados Unidos, Vargas era um pusilânime joguete dos comunistas, enveredado pela trilha do colaboracionismo. Colocara à mercê do comunismo o gigante latino-americano. Vargas, o homem que derrotara os comunistas em 35 liquidando a ANL, agora negava a sua história e sentava as bases para que os comunistas tomassem o poder ao abrir-lhes as portas do governo e da máquina administrativa. (MIR, p.18: 1994)





Mais adiante, surgem duas temáticas, a afetividade adolescente e a relação familiar conflituosa. Maria Lúcia é uma representante da juventude dos anos 90 dentro no seriado, é quem encarna as demandas da geração seguinte: "O que estraga papai é o excesso de idealismo, a falta de pés na terra." (BRAGA, 1992: p.15) A moça encaminha as opiniões de uma geração mais pragmática, os filhos da geração 68, mas prioriza somente a liberação dos costumes. O que estraga Maria Lúcia, por sua vez, é sua apatia política, a preferência pela indiferença e antipatia pela militância. Ela deseja um quarto só dela, onde possa se ver livre dos livros e dos intelectuais que seu pai traz para casa. Para Maria Lúcia, um par de sapatos vale mais que Shakespeare, mas o romance tentará minorar essa tendência conservadora da personagem, esboçando uma psicanálise banal: Maria Lúcia apaixona-se por João, militante político, e não por Edgar, um democrata liberal insatisfeito com a ditadura militar.



Nelson Rodrigues foi um pai simbólico, o pai burguês moralista da geração 68, o patriarca moralista e nacionalista de direita que os jovens radicais queriam aniquilar. Em alguns momentos, sua dramaturgia e crônicas têm certo valor artístico, mas noutros é o equivalente intelectual do golpe abaixo da cintura. Curiosamente, numa das cartas enviadas para o Pasquim, Caetano definiu-se como um Nelson Rodrigues prafrentex. Naquele momento, Caetano já demonstra a seguinte postura: é a favor da liberação sexual, do progressismo de costumes, mas é contra os nacionalistas e comunistas que apoiaram Jango.



Em Anos Rebeldes, mais que as teorias políticas ou sociológicas, a questão geracional é que fornece a explicação para as posturas dos personagens. A filha do nacionalista de esquerda, o jornalista Orlando Damasceno, é moderada ao extremo. João, filho de udenista, assume um radicalismo político. Num dado momento, Maria Lúcia ataca João, militante orgânico, e não Edgar, que é a verdadeira esquerda festiva:





A última palestra que meu pai fez lhe valeu um processo que está rolando até hoje. Mas o garoto não entendeu, insistiu. Esse pessoal da esquerda festiva não sabe o que é ter de responder a processo. (BRAGA, 1922: p.21)





Maria Lúcia insiste na ‘privacidade’. Nas anotações de seu diário, que junto com as anotações da mãe de Heloísa (uma grã-fina) e das interpretações de Edgar, correm como relatos paralelos durante o romance, ela nunca fala em feminismo. Quando João se aproxima do pai de Heloísa para propor-lhe uma palestra no colégio Pedro II, confronta-se com Maria Lúcia, mas o confronto se resolve num romance açucarado, que concilia os contrários. João é duro com Maria Lúcia:





-Quem ‘tá me dando a impressão de não ser assim tão fã do seu pai é você. Foram homens como ele que modificaram o mundo, viu, Maria Lúcia? Ter medo de processo é...eu acho uma atitude medíocre. (BRAGA, 1992: p.21)





O pai de Maria Lúcia, aparentemente simpatizou com o segundo governo Vargas: "João se animou e perguntou por um estudo sobre a questão do petróleo que o seu Damasceno tinha escrito no início do governo Getúlio". (BRAGA, p.41, 1992) Maria Lúcia inverte papéis, assumindo autoridade para reprovar o "envolvimento irresponsável" do pai com estudantes esquerdistas. Edgar narra que ele, João e Maria Lúcia foram assistir Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. O diário de Maria Lúcia não comenta o filme, nem comenta livros, embora a moça seja filha de jornalista e casada com editor. Não ficamos sabendo nada sobre seus gostos, mas supomos que prefere a telenovela Direito de Nascer aos filmes de Glauber Rocha, como o próprio Gilberto Braga, que renega Glauber, chamando-o de caótico. Em consonância com essa adotada publicamente, Glauber Rocha em Anos Rebeldes é desculpa para uma trepadinha sem magia, papo furado de intelectualóide:





-Terminei o primeiro ato, Heloísa, dei pruns amigos julgarem, a opinião foi unânime: comercialmente muito arriscada pra essa época de crise. E no segundo ato eu ia precisar no mínimo de uns oitenta figurantes, pra cena de incêndio da cidade, sabe como é peça brechtiana... Resolvi partir pro cinema. Produção modesta, eu acho que a saída é o Cinema Novo: uma idéia na cabeça e uma câmera na mão! Ontem à noite eu estava inspirado. Escrevi trinta laudas de roteiro, de um sopro só! Se a modéstia não me impedisse, eu diria que lembra um pouco a construção operística do Gláuber! (sic) (...) Se você quiser passar lá em casa, um dia desses...Eu lia pra você em voz alta... (BRAGA, 1992: p. 88)





A trepadinha sem magia nem sequer se completa, pois Galeno falha com Heloísa. Aparentemente ele não superou as tendências homossexuais da adolescência. Galeno e Heloísa prenunciam os comportamentos da geração lanchonete:





Superar a compulsão/depressão (o eixo é comum a ambas) significa ainda superar as formas de relação ostentatórias, individualistas e auto-afirmativas encobertas sob as bandeiras ideológicas da nossa geração-lanchonete. Já não vivemos a austeridade nauseante da sala-de-jantar paterna, móveis escuros, gravata e silêncio de garfos. (...) Mas o hambúrguer rápido e descartável comido no balcão. A sedução compulsiva e entediada, a trepadinha sem magia depois da festa e a relação abortada no dia seguinte. Vivemos a vigência de todos os rituais da liberdade sob vigilância constante de nossos companheiros. (KEHL, Maria Rita. 1979: p. 52)





Maria Lúcia, propagandista de uma moral pequeno-burguesa, só se decide lutar contra a ditadura quando seu pai é preso. Ela perde então a virgindade física e política ao mesmo tempo. Edgar se aproveita da militância absorvente e da ética de sacrifício total de João para conquistar Maria Lúcia. Edgar diz ter notado a profunda diferença dos dois, que, reflete ele, está presente na seguinte frase: "desprendimento radical não casa com amor por vitrolinhas". Mais adiante, Edgar mostra mais uma vez que não está revendo o passado por hobby. Ele critica a transformação reacionária do amigo Waldir: "Hoje, Waldir é um desses economistas que dizem que para salvar o país é preciso arrochar salário, ‘aplacar a ponta da demanda’ ". (BRAGA, 1992: p.46)



Seu mergulho no passado revela rancores e inveja. Edgar não é um narrador confiável. Sua visão é dirigida. João abandona a idéia de cursar jornalismo e opta por Ciências Sociais, curso que Fernando Henrique Cardoso também cursou nos anos 50/60. A postura de Maria Lúcia é de absoluta incompreensão: "-Fazer Ciências Sociais por quê? Já tem Faculdade de Jornalismo!" (BRAGA, 1992: p.57) O materialismo chão de Maria Lúcia é o exato contrário do materialismo marxista, a jovem tem apenas apetite pelo gozo direto da coisa. A esquerdista e grã-fina Heloísa é ainda mais ridícula: "(Heloísa) foi esquiar em Saint-Moritz e tinha acabado de voltar, ia tentar vestibular de novo, mas não sabia para quê." (BRAGA, 1992: p.62)



Aqui é importante fazer a ressalva de que, sendo interpretado pela atriz Cláudia Abreu, o personagem da jovem esquerdista ganhou uma consistência maior do que os de João (Cassiano Gabus Mendes) e de Maria Lúcia (Malu Mader). Críticos da Folha de São Paulo na época atacaram o casal Cassiano-Malu: tudo o que o personagem de Cassiano dizia se tornava bobagem. Já Malu Mader tinha "a sutileza de uma capivara". O melodrama revê a década de 60 para aplainar as contradições, detratando as molas sociais situadas no pré-64. Edgar discute com João, entrelaçando o drama individual e coletivo com má-fé:





Primeiro, que eu não acredito que você possa fazer a Maria Lúcia feliz. Você está muito preocupado com a felicidade da população oprimida do Brasil, mas não se preocupa com a felicidade de quem está pertinho de você, da sua namorada, dos seus amigos. (BRAGA, 1992: p.65)





Em primeiro, Edgar coloca a questão política como secundária, e começa com uma afirmação categórica traiçoeira. Edgar simplesmente propõe que João abandone Maria Lúcia para que outro homem a satisfaça. Podemos também supor que Edgar está interessado em João, e nem tanto em Maria Lúcia: "A única vez na vida em que eu lamentei não ser homossexual foi por causa do João", diz ele. (BRAGA, 1992: p.91)



O moralismo da tradicional família mineira é ridicularizado pelo chocho tropicalismo de Galeno:





- Sobre esta moda de minissaia aí? Teve um deputado lá de Belo Horizonte que falou na Câmara: ‘Ninguém levantará a saia da mulher mineira!’



E Galeno arrematou, no meu ouvido desta vez:



- E a jurupoca do homem mineiro também ninguém levanta...



(BRAGA, 1992: p.99)





Galeno equaciona a intensidade da experiência sexual como inversamente proporcional às proibições vigentes no tempo. Quanto mais proibição, menos intensidade. Caetano Veloso concorda com essa posição: "Não aceito com facilidade esses argumentos que submetem a intensidade da experiência sexual às proibições vigentes no tempo da formação sexual de quem os formula." (Veloso, 1998: p.474) Como disse Maria Rita Kehl, saltamos da família patriarcal para a prática da antropofagia sem culpa, fast-food do amor.



A esquerda obteve um grande impulso com a revolução dos valores ocorrida nos anos 60, ganhando espaço ao combater as proibições. Caíram nessa época as últimas barreiras do patriarcado, um dos elementos que permitiu que a mesma revolta se espalhasse pelo mundo inteiro, tanto entre os estudantes parisienses quanto na Praga de Aleksander Dubcek, entre os hippies e yippies da América psicodélica e no Chile de Salvador Allende.



Mas o que estava nascendo, no final dos anos 60, não era um novo matriarcado, nem sequer o matriarcado de Pindorama, e sim a sociedade de consumo, uma sociedade onde mesmo as bandeiras mais progressistas foram absorvidas pelo neocapitalismo. O canto de sereia pecuniária chegou aos ouvidos dos filhos de Marx e da Coca-Cola. Surgiu, nos anos 70, uma nova direita, e os filhos da geração 68 já nasceram sem quaisquer vestígios de Marx, restando só a Coca-Cola. Foi com razão que a mídia os rotulou de geração Coca-Cola. Os anos subseqüentes a 1968 são permeados de contradições e dilemas praticamente insolúveis: com a liberação do corpo, veio também um vagalhão de vulgaridade. Depois da rigidez dogmática do stalinismo, o shopping center da mente e a lavagem cerebral da TV; depois do fim da família patriarcal, o mergulho na dissolução pornô dos costumes. A revolução política fracassa, uma vez que o neocapitalismo exerce uma dominação social e produz uma falsa consciência, divulgada em telenovelas tranqüilizantes contra a contestação, instalando no Brasil dos anos 80 uma democracia burguesa onde só um grupo reduzido de tecnocratas toma as decisões importantes. A continuidade do regime de 64 está garantida, agora com representantes civis. As proibições arbitrárias da ditadura militar foram substituídas pela coação e a cooptação daquilo que Lucien Goldmann chama de "capitalismo de organização."



Na narrativa de Anos Rebeldes confundem-se deliberadamente hippies e militantes de esquerda. Heloísa, militante de esquerda e grã-fina, faz amor livre:





Quando Heloísa já estava achando que o destino dela era entrar para um convento, aconteceu com o professor de violão. Do jeito que ela queria: foi muito bom e sem nenhum compromisso. (BRAGA, 1992: p.101)





O pai esquerdista de Maria Lúcia é conservador em matéria de costumes. Já Maria Lúcia é progressista em termos de costumes e indiferente em política. Ela recorre à ideólogos de esquerda estrategicamente, pela primeira e última vez:





Papai foi procurar um telefone na minha agenda e descobriu, na minha bolsa, uma caixa de pílulas anticoncepcionais. (...) É incrível como uma pessoa tão progressista nuns assuntos possa ser tão quadrada em outros! (...) O problema é que essa posição dele não tem nada a ver com ideologia. Já vi amigos do papai discriminando até homossexual. (...) Falei de Freud, Marcuse e dos tabus que há gerações pesavam sobre a sexualidade (BRAGA, 1992: p.105).





Igualmente é incrível como Maria Lúcia pudesse ler Marcuse, uma vez que até então não comentara livro algum em seu diário, nem sequer os do pai. E que nem sequer discutisse o feminismo, nem um livro como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Só aceita participar da política numa situação extrema, na ocasião em que seu pai é preso. Aí sim, ela aceita a luta, pois só acredita em envolvimentos pessoais.



João e seu Damasceno avançam para propostas diferentes. João é a favor da luta armada e Damasceno da conscientização das massas. É a contraposição do partidão, o PCB de orientação pró-soviética, com os grupos foquistas afins de Cuba.



A questão da droga vem à baila, com Edgar assumindo a posição indiferente que sempre teve a vida toda:





Maconha, para mim, era pra ficar doidão mesmo, para não estar nem aí. (...) Além do meu momento pessoal, ficar doidão facilitava no trânsito em meio a uma agressividade crescente das pessoas. Era difícil você se aproximar de uma roda em que não houvesse uma polarização aguda. (BRAGA, 1992: p.105)





Em meio a um jogo da verdade, modismo que o psicanalista Cristopher Lasch tachou de sintoma de um novo narcisismo, João é questionado sobre suas leituras de Karl Marx:





-Você leu O Capital?



-Tudo, não. Li umas partes da ‘Crítica da Economia Política’. O que me interessa mais são os manuscritos do jovem Marx. (BRAGA, 1992: p.130-131)





A sucinta fala de Edgar pode servir de estímulo para a discussão da obra de Marx, mas podemos supor que na postura do rapaz está refletida simplesmente a "revolução dos jovens" que o faz supor que o Marx "jovem" dos Manuscritos sabe mais que o Marx "maduro" de O Capital.



Como ressonância à entrada dos jovens no mercado consumidor, os meios de comunicação mitificam a juventude, e esta mudança econômica altera até o comportamento do jovem militante João.



Já a eficiência de Edgar enquanto editor é reveladora. Edgar na verdade não se importa muito com livros e com cultura. Quer status e dinheiro e escolheu a profissão errada. Uma parte da população brasileira saiu da cultura oral para os meios audiovisuais, sem passar pela velha cultura humanista, assentada em filosofia e literatura. Diante de um editor preocupado em manter o bom nível, Edgar é pragmático ao extremo:





O dr. Queiroz, ele parecia querer se imolar no idealismo de só editar o chamado material de qualidade, de peso cultural. A vontade era de dizer: -Dr. Queiroz, fala com o balanço da contabilidade que nós temos de editar apenas cultura! Se ele sair do vermelho só com isso, a gente edita, combinado? (BRAGA, 1992: p.133)





Edgar postula o rebaixamento de nível, enquanto na vigência da ditadura é que uma editora nacional, a Civilização Brasileira, conseguiu manter um nível altíssimo, mesmo apesar da perseguição dos militares, publicando bons escritores, fugindo dos manuais marxistas. O dr. Queiroz parece ser uma caricatura do marxista Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira na época. Mas, como já dissemos, Edgar deve ser avaliado como um niilista. Maria Lúcia é complementar a ele em seu desejo de se demitir, de passar para o outro lado das trincheiras: "Não tenho idade nem vocação para me sentir responsável pelo futuro de um país que já começou errado, sei lá se tem chance de dar certo algum dia". (BRAGA, p.133) Maria Lúcia é o bode total, o derrotismo, o desejo que a juventude dos anos 90 apresenta de fugir do país.



Edgar se valeu do fato de que João se entregou a uma ética de sacrifício total para conquistar Maria Lúcia:





-Olha, João, eu nunca escondi de você que eu...Você sabe que quem pode acabar sendo o maior beneficiado nisso tudo sou eu. Porque, se você escolher ficar pichando muro pela rua, quebrando vidraça de banco, botando fogo em carro, você vai perder a Maria Lúcia para mim. (BRAGA, 1992: p. 135)





Galeno estava se dedicando, então, à poesia concreta, inspirado pelos irmãos Campos, Ezra Pound, Cummings e outros. Edgar e Galeno se mantinham alheios às polarizações da época:





O Galeno tinha me alertado que, além de um maior apuro no paladar, a maconha aguçava os sentidos (...). Nem eu nem o Galeno estávamos dando a mínima para aquela xaropada de festival. (BRAGA, 1992: p. 138)





Edgar adota a posição apática que lhe acompanha vida afora, mas mesmo assim avalia equivocadamente o impacto das canções de protesto: "Caminhando também acelerou a roda-viva, serviu de razão ou pretexto para uma nova onda repressiva. Em artigo, um general pediu a prisão de Geraldo Vandré." (BRAGA, 1992: 140) Isso é o que Glauber chamava de revisionismo time-life realizado por tropicanalhas.



Em 1968, as ações armadas já tinham começado, e o objetivo dos militares era combater esses focos de contestação violenta. Pouca influência sobre o aumento da violência teve essa canção -- ela foi antes produto do confronto entre a ditadura e a oposição representada pela Frente Ampla, unindo Jango, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda.



Outro momento de virada é o ato institucional número cinco, em 13/12/1968. João e Heloísa entram na luta armada, Galeno faz uma montagem "tropicalista de protesto" de Fedra, de Racine. Galeno explica suas idéias:





Eu tenho a minha visão do Racine, entende, Edgar? Fedra, para mim, não é só a mulher que se apaixona pelo enteado. Minha concepção é, por assim dizer, original, uma Fedra...tropicalista e engajada! Hipólito é o oprimido pelo poder econômico! (BRAGA, 1992: p. 145)





Anos Rebeldes é marcado pela hegemonia dos tropicalistas. Os personagens reproduzem trechos de músicas da patota de Caetano nas falas do cotidiano e Baby e Alegria, Alegria tocam incessantemente, bem mais do que as músicas de seus opositores, como Sérgio Ricardo, Edu Lobo ou Geraldo Vandré. O tropicalismo é equiparado com a esquerda engajada, porém o grupo baiano bem cedo se afastou de um compromisso com a arte engajada de Vianinha, Augusto Boal e outros. Assim como a tropicália debocha dos desajustes subdesenvolvidos entre a bossa e palhoça, observando-as à luz das modas internacionais, o Brasil na peça de Galeno surge exótico para os próprios brasileiros:





Os figurinos e os adereços de cenário davam um clima ‘tropicalista’, como era moda. Num canto da arena, uma criada grega arrumava frutas, entre as quais abacaxis, jacas e bananas, muitas bananas. (BRAGA, 1992: p. 145)





A versão de Fedra aqui apresentada é avacalhada, equacionada com Carmen Miranda, é uma peça clássica que se torna Kitsch. Aliás, a dimensão "popular" dos Anos Rebeldes, a esperança que Zuenir Ventura apresenta de que este seriado esclarecesse o grande público, se desvanece. O produto oferecido é Kitsch, falso, cheio de situações inverossímeis, entretenimento barato como as telenovelas, mas ousa misturar cenas reais, imagens de jornais, revistas, músicas e têm atores que viveram a época, como Giafrancesco Guarnieri (que aliás dá um depoimento sentimentalóide), como personagens. Pretende, então, passar uma mensagem política conciliatória que, aliás, ajudou a ascensão posterior de Fernando Henrique Cardoso, sociólogo que fez oposição chique ao regime militar e que encenou um exílio depois de receber uma polpuda aposentadoria precoce por ordem do regime militar. Ficou para o senso comum a imagem de que a minissérie global gerou os carapintadas, "movimento juvenil" que derrubou o presidente Collor. No entanto, o fim da era Collor não foi o final do neoliberalismo no Brasil. Pelo contrário, demonstrou a hegemonia da televisão sobre várias gerações, evidenciando sua enorme influência política e comportamental.



Fernando Henrique sempre foi um democrata liberal, com amplo sucesso entre os que posam de esquerda, como o personagem Edgar, narrador do livro:





Olha, João, eu podia te dizer que essa opção pela guerrilha só retarda a volta da democracia, podia te dizer que sou democrata e não comunista, que eu tenho tanto horror a ditadura de direita quanto de esquerda! (BRAGA, 1992: p. 156)





Edgar é também um liberal, e os liberais optam com freqüência pela ordem estabelecida quando uma revolução ameaça seus interesses de classe; aqui no Brasil, o golpe de 1964 é o maior exemplo disso. Edgar se revela retrógrado na relação com o colega de editora, Dr. Queiroz:





-O senhor é voto vencido, eu sinto muito. Foram livros como este que comprometeram a editora. Ainda por cima de um autor de esquerda. Dr. Queiroz, nós dependemos de bancos. Estimular, neste momento, por idealismo...(BRAGA, 1992: p. 167)





O pragmatismo de Edgar é suicida. Num outro momento em que nega a si mesmo, Edgar renega o livro do qual ele copia o início de sua narrativa:





Alguns dias mais tarde, encontrei Maria Lúcia na editora. Elogiei-lhe o parecer sobre O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, mas falei que tinha dúvidas se a tradução deste livro traria lucro significativo para a editora. (BRAGA, 1992: p. 168)





Edgar é mais realista que o rei e só poderia fracassar, pois sua decadência moral já se anuncia; ele passou para outro lado, descobriu que o que vale é a rapinagem, ele despreza quem gosta de boas leituras e por isso é ruim na profissão que escolheu. Mais ridículo que esse editor de livros chulos é Heloísa, a guerrilheira grã-fina. O mundo dos muito ricos é apresentado como um Olimpo onde tudo pode acontecer. Braga segue o velho mandamento de que "telenovela sem mansão não funciona". O direito de nascer da teledramaturgia brasileira coincide com o começo das restrições à liberdade dos indivíduos no Brasil, só restituídos quando o capitalismo tecnocrático já foi firmemente instalado país adentro. A dramaturgia televisiva é o núcleo a partir do qual circulam as mensagens da "Hollywood do Jardim Botânico", que é onde as massas desinformadas desaprendem a viver, pois não vêem o que se passa ali com espírito crítico. Confundem realidade com ficção, e o funcionamento do aparelho ideológico do estado fica garantido. Daí a naturalidade com que o senso comum reproduz o ideário neoliberal.



A inverossimilhança travestida de realidade é levada ao extremo quando as diferenças entre João e Maria Lúcia se acabam na cama. A cama, em Anos Rebeldes, é o paraíso da feijoada. Num outro momento, João deixa o aparelho onde permanece clandestino para assistir o revéillon em Copacana, onde acaba encontrando Maria Lúcia(!). A liberdade do artista não pode ser confundida com a distorção deliberada de fatos históricos. João, em sua clandestinidade que se parece mais com o exílio regado a champagne de FHC, encontra-se com o hippie Galeno. As divergências entre a fuga para as drogas e a militância política ficam encobertas.



Curioso é o capítulo em que a união João-Maria Lúcia se restaura, apenas para terminar logo depois. Depois de esperar mais oito anos, João e Maria Lúcia voltam, mas Maria Lúcia resolve botar um ponto final em sua aproximação com João e a esquerda. E o que afasta Maria Lúcia é a volta de João à militância:



Meu querido diário, cansado e velho de guerra, você sabe onde fica a Encruzilhada Natalino? (...) Ontem de manhã, o telefone tocou. Era o Marcelo chamando o João para uma reunião. Iam tratar da reorganização partidária e discutir o problema dos sem-terra. (...) Levantei devagar e fui embora sem me despedir de ninguém. (BRAGA, 1992: p. 156)



No final do livro, Edgar se revela um sujeito adepto das drogas, que começaram para ele apenas como uma fuga das polarizações políticas. Mas sua decadência moral já tinha começado no tempo da ditadura. Ele sempre viveu pelas beiradas da vida, sem lutar por causa nobre, sem fazer carreira na editora. Revela então que não vai à editora há muito. Edgar reuniu, em dois pólos, duas posturas da geração 68 no presente: o conformismo otimista e o niilismo desesperançado. Mas é entre essas duas falas que oscila Edgar em toda a narrativa, e é com esses marcos teóricos que deve ser lido o folhetim eletrônico Anos Rebeldes.

Descentrado risco no disco

 O livro de poemas de Makely Ka (o Ego Excêntrico, Selo Editorial, Coleção Poesia Porra!) veste a camisa de sua própria obra: sua capa tem barriga, umbigo, pentelhos e trocadilho. O livro vem acompanhado de um disco. Quando o laser lê o risco, digo, o disco, a voz segura vem declamar e atacar. Atacar sim, uma vez que a poesia não tem tido audiência e poetas novos não têm conseguido se projetar. Sempre me preocupei em comentar os poetas meus contemporâneos: escrevi no jornal Plenário (atual BHZSul) sobre Renato Negrão, Júlio Emílio Tentaterra, Johnny Batista Guimarães e produzi uma Composição Sobre Quadrilíneas a respeito do livro homônimo de Ramon Maia, editada apenas na Internet. Negrão está também presente neste livro de Makely, que vem acompanhado de um disco com “Poemas de Ouvido”. O poeta faz esforço para que os poemas entrem pelo ouvido sem pedir licença, batendo com a força de um coice para que eles escapem de serem olvidados. Makely Ka quer a música do Kaos, quer fazer poesia, porra! Trata-se de um mautneriano que curte Cioran, Mishima, Maiakósvski, Bukoswki, Leminski, Borges, Kafka, Nijinski, Natasha Kinski, Karl Kraus, Nick Drake, Fernando Pessoa, Kilkerry, Lautreámont, Georg Trakl, Borges. Que signo fica disso? Makely lida com a angustiante influência da poesia concreta com a sutileza de um mamute. A dois minutos do fim, o poeta remete à Antropofagia oswaldiana, quer muito falar, cala-se e tenta comer o leitor pela boca.


Uma de suas características nesse que imagino ser o seu primeiro livro acompanhado de CD é um tom mais ou menos assim: “Duvido que você esteja me lendo. Gostou? Não? Então vai se foder, cai fora, mas vai numa boa.” Ele deixa que a agressividade e uma necessidade de auto-afirmação tisne o discurso, e não aparece um cisne, se aparecer ele depena e bota para assar. Ele assume o risco e enfia a língua afiada, antropófaga, no cálice da cicuta e, em meio a um sarau da Filosofia, prova o doce veneno: a música expulsa a dialética, a musa única é uma dos motores do livro, é uma muleta para a poesia nesses tempos de tesouro & tesoura. Quem Kant seus males espante. Makely aquece a Filosofria no fogo da poesia.