quarta-feira, 26 de abril de 2023

Uma Descida no Maelstrom

 

NOTAS SOBRE O TEATRO DE GERALD THOMAS:

UMA DESCIDA NO MAELSTROM

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

 O início dos anos 80 foi o momento em que o Brasil reconheceu o talento de encenador de Gerald Thomas. O contexto em que sua peça Quatro Vezes Beckett fez sucesso era de redemocratização e abandono das preocupações políticas dos anos 70. A partir de então, transformou-se o contexto em que boa parte dos diretores e dramaturgos brasileiros tinham sido primordialmente brechtianos, mas vivia-se um momento em que Brecht foi perdendo, paulatinamente, sua influência.

Essa pesquisa visa estudar e verificar uma importante mudança ocorrida na carreira do encenador Gerald Thomas desde meados dos anos 2000: Gerald decidiu não mais encenar textos de outros autores, esforçando-se agora por encenar e redigir sua própria dramaturgia. A primeira experiência dessa nova fase foram as peças Terra em Trânsito e Rainha Mentira (Queen Liar). Ele se aproxima, portanto, do traço autoral de um Glauber Rocha, que sempre escrevia e dirigia seus filmes, tendo todos eles a sua marca, sua assinatura autoral e muitas vezes, como em Idade da Terra, sua presença física e voz propriamente ditas.

Nos anos 90, o crítico David George já considerava Thomas como mais do que um diretor e sim um encenador surgido a partir de uma visão original das obras de Beckett nos anos 80. É comum nas peças de Thomas a interferência da própria voz do encenador. Por exemplo, em Queen Liar, a narrativa autobiográfica apresenta constantemente a voz do encenador que faz intervenções narrativas. Essa voz narrava, por exemplo, que a personagem da avó se assemelhava a uma personagem do pintor Otto Dix (expressionista alemão que protestou contra guerra pintando os mutilados e mortos). Já Terra em Trânsito, que Gerald considera a mesma peça, refere-se claramente a Terra em Transe, filme de Glauber Rocha: cita-se, por exemplo, o apaixonado por ópera Paulo Francis, enquanto Terra em Transe era o epitáfio do jornalista e poeta ficcional Paulo Martins. Em Terra em Trânsito, uma cantora de ópera se vê presa em seu camarim e entra num processo de enlouquecimento enquanto escuta um discurso reacionário de Francis no rádio e desespera-se enquanto alimenta um ganso para fazer foie gras. Trata-se de uma oscilação freqüente na obra de Gerald Thomas e que talvez seja o drama do artista contemporâneo: ele está entre um ceticismo neopositivista (“nada prova nada”) e o desespero ultra-romântico (a diva em crise na carreira, Hamlet/Paulo Martins).

Recentemente, em 2008, Thomas realizou mais uma peça que continua essa trilogia iniciada com Terra em Trânsito: a peça O cão que atacava mulheres, Kepler, the dog, inspirada numa blognovela realizada por Gerald Thomas juntamente com os participantes de seu blog no provedor Ig, internet gratuita. Nela, um cão de nome Kepler perambula entre um cenário de pesadelo que, dentre muitos outros personagens, vê imagens que fazem lembrar as torturas nas bases norte-americanas de Abu Ghraib e Guantánamo, assim como um executivo suicida, a busca do Santo Graal, etc. O cão (Fabiana Gugli) está na coleira do personagem do executivo (Duda Mamberti), mas faz referência à imagem, muito recorrente na mídia, da militar norte-americana no Iraque trazendo um prisioneiro iraquiano na coleira, imagem associada a uma mulher dominadora da imagética sadomasoquista, a dominatrix. A dramaturgia de Thomas possui, portanto, referência a um universo de referências muito particular e caro ao autor: Living Theatre, Stoppard, Orwell, Kafka, Kantor, Duchamp, Haroldo de Campos, Oswald de Andrade, às montagens do próprio Gerald Thomas, entre outros.

Gerald Thomas é um enigma, mas não um enigma vazio, como alguns querem que seja a arte contemporânea. Para o crítico norte-americano David George, Gerald realiza uma antropofagia wagneriana. Enquanto isso, no Brasil, devido à sua posição polêmica dentro do teatro brasileiro, é acusado de fazer imperialismo cultural. David George estabelece uma linha de influências para Gerald Thomas no Brasil: José Celso Martinez Corrêa e Antunes Filho, assim como a dramaturgia de Nelson Rodrigues, em homenagem a quem Thomas dirigiu uma peça chamada “Asfaltaram o Beijo”. Ele seria o principal divulgador do pós-modernismo no teatro brasileiro. Mas Thomas vai bem além e é um agitador cultural que exerce muito bem o seu talento para o jornalismo, diferente da tendência de Beckett para escrever poemas e prosa mais extensa. Thomas, por sua vez, é show man: atua como colunista em veículos como IgFolha Ilustrada, comentarista no prestigiado programa de TV Manhattan Connection, etc.

 

DE BECKETT A KEPLER

 

 

Gerald Thomas

Gerald Thomas começou como seguidor de Beckett e com ele ainda possui muito em comum. Em primeiro, ele surge de uma revisão de Brecht e do teatro político, que terminava não alcançando as camadas populares a quem dirigia seu discurso. Além dessa inabilidade de chegar às camadas populares, e diretamente associada a ela, uma outra dificuldade tem caracterizado uma considerável parcela do teatro dito político: a predominância do compromisso didático em detrimento das preocupações estéticas. Isto é, um desequilíbrio entre conteúdo e forma. Apesar de Brecht enfatizar por diversas vezes em seus escritos teóricos que o teatro engajado não precisaria, nem deveria, excluir o caráter de diversão próprio a essa arte, muitos dos seus seguidores incorreram nesse erro e construíram espetáculos sisudos, excessivamente intelectualizados e de pouco apelo para o grande público. Como explica o encenador Gerald Thomas:

Pouco foi dito sobre isso, mas o efeito de distanciamento, de esfriamento, de racionalização e de didatismo sobre uma arte que é, essencialmente, fabulesca e metafórica começou como uma saudável doença de alerta e acabou por se tornar seu vírus mais fatal (THOMAS apud GUINSBURG et al FERNANDES, 1996, p. 37).

Diante desses impasses, em um mundo pós-muro de Berlin, o teatro político tem sido impelido a redimensionar seus objetivos e suas práticas. O próprio trabalho de Boal evidencia uma busca por um novo posicionamento teórico. Quando comparado ao Teatro político de Piscator, por exemplo, percebe-se que no Teatro do Oprimido já não há um enfoque explícito na questão da luta de classes. A "revolução" de que fala Boal pode também significar uma radical modificação interna do indivíduo-espectador. É a partir da necessidade desse tipo de modificação e da dificuldade em obtê-la é que está o traço que podemos notar em Beckett e Thomas.

Para explicar Thomas, tratemos de Beckett. Em The Rhetoric of Fiction, Wayne Booth utilizou, numa edição revista, a novela Company de Beckett como exemplo de sua teoria do autor implícito, aplicando-a em uma narrativa contemporânea. Como definir Beckett e aquilo que pode ter influenciado Thomas? Tomemos as palavras de Peter Brook:

Talvez a escrita mais intensa e pessoal de nosso tempo venha de Samuel Beckett. As peças de Beckett são símbolos no sentido exato da palavra. Um símbolo falso é mole e vago; um símbolo verdadeiro é duro e claro. Quando dizemos “simbólico” frequentemente queremos dizer enfadonhamente obscuro; já um símbolo verdadeiro é específico, é a única forma de expor uma certa verdade. Os dois homens esperando ao lado de uma árvore seca, o homem gravando a si próprio em fitas, os dois homens escravos de uma torre, a mulher enterrada na areia até a cintura, os pais em latas de lixo, as três cabeças nos vasos: essas são invenções puras, imagens frescas, agudamente definidas – e funcionam no palco como objetos. São máquinas teatrais. As pessoas sorriem delas, mas elas ficam firmes: são à prova de crítica. Não chegaremos a lugar nenhum se esperamos que elas nos sejam explicadas, entretanto cada uma tem uma relação conosco que não podemos negar. Se o aceitamos, o símbolo nos provoca uma grande e pensativa exclamação (BROOK, 1970, p. 57).

Assim como em Company não é preciso explicar de onde vem a voz que sugere ao personagem que imagine, Gerald busca símbolos que não precisem ser explicados nem entendidos racionalmente e sim imagens que falem direto ao inconsciente, símbolos tais como Beckett fazia: e símbolos duros. São símbolos poderosos presentes nas peças recentes de Thomas: em Queen Liar, a figura distorcida da avó que era como um personagem de Otto Dix, a cantora de ópera em crise e seu ganso em vias de virar foie gras, um cão em forma de mulher que diz um texto filosófico enquanto defeca no chão.

Os pontos em comum entre Gerald Thomas e Samuel Beckett ficam mais claros quando se avalia alguns pontos da análise de Wayne Booth a respeito da novela Company. Em alguns momentos, é como se ele estivesse falando da blognovela que ora estamos estudando. O texto de Beckett é um “texto para nada”. Essa forma de limitar artificialmente as palavras imaginadas para fazer um quebra-cabeças minimalista é presente nas peças de Thomas e de Beckett. Para se ter uma idéia, Company inicia-se com a enigmática frase: “Uma voz chega para alguém no escuro. Imagine” (BECKETT apud BOOTH, 1983, p. 445). Tanto o mestre quanto o herdeiro tratam da falta de sentido do mundo. O mundo, em seus textos, é predestinado a ser sentido, e o recurso de escrever sobre ele, “para ter companhia”, está destinado ao fracasso insignificante, produzindo não mais do que falência supérflua e miséria. Ambos buscam estabelecer um equilíbrio delicado entre criar situações que complexas e que geram perplexidade, mas que não são tão confusas ao ponto de não despertarem a curiosidade e demandarem uma interpretação.

A VOZ AUTORAL EM KEPLER, O CÃO QUE ATACAVA MULHERES

 Gerald Thomas foi uma voz autoral desde o início de sua carreira. Sua interpretação das peças de Beckett já tinha uma assinatura própria. “Julian Beck morreu durante uma voz que ele ouviu, gravada por ele mesmo e ouvida por ele próprio” (THOMAS, 2008), referência em off que entra com a voz de Gerald Thomas quando o personagem de Duda Mamberti está em cena na peça O cão que atacava mulheres: Kepler, the dog e que refere-se à montagem de um texto que Beckett escreveu para Julian Beck quando este já era paciente terminal de câncer (All Strange Away e The Time). O texto em off, surgido devido a exigências extra-artísticas em Nova York, onde, para se apresentar uma peça é preciso depositar pagar um valor vultoso para o ator a título de seguro, encarecendo a peça e obrigando o diretor a ter a voz do ator ao invés de tê-lo presente, passou a ser usado de forma muito inovado como recurso anti-realista por Thomas, num lance verdadeiramente antropofágico, revertendo o desfavorável em favorável e fazendo da voz em off um de suas marcas autorais mais importantes.

Tanto nas peças que ele escreve quanto nos textos que dirige, Thomas busca acionar uma simbólica profunda, vinda do inconsciente, criando símbolos e imagens fortes como os que estão presentes na obra de Samuel Beckett. Quando Thomas surgiu, o Brasil vivia um momento onde se buscava novos caminhos para a dramaturgia. A problemática coletiva dava lugar às questões individuais. O trabalho de Thomas não se filia nem a Brecht nem a Stanislavski, nem segue ortodoxamente os métodos nem de um nem de outro. Thomas recusa tanto o método épico-didático de Brecht (não transmite conteúdos socialistas, prefere polemizar com a esquerda) quanto o método de Stanislavski, que segundo ele não seria apropriado para o teatro (pois o teatro exigiria principalmente projeção de voz), adequando-se melhor ao cinema (a propósito, ele cita o Actor´s Studio, estúdio norte-americano que aplicou amplamente em Hollywood o método do russo, ajudando a criar atores tais como Marlon Brando). Marcelo Alcântara comentou a respeito na revista A Bacante:

 (...) Muitas das características do que se vê na tela são facilmente relacionáveis ao nome e à obra de Thomas - uma montagem textocêntrica e sem linearidade, entrecortada por milhares de assuntos, embalada por imagens construídas com rigor, muita fumaça, jogos de luzes e narração em off dublando personagens em cena. Nada disso é novidade, mas aqui há muito mais do que a tradicional relação forma/conteúdo: ganha força também o fator meio (nã-não, não o centro, tô falando do medium por onde o espetáculo é transmitido) - e as influências que esse meio impõe à forma do que é produzido (...). Mas diferente dos roteiros escritos por Samuel Beckett para a TV, por exemplo, Kepler, The Dog visto pela mediação da tela do monitor não passa de um espetáculo concebido para o palco - ainda que sua realização visasse a transmissão pela rede. Por mais que tenha surgido a partir da internet e só faça sentido considerando este fato, o primeiro capítulo da blognovela de Gerald Thomas ainda é teatro filmado, com toda a importância que o registro da efemeridade do palco pode ter, mas também com toda a precariedade e ingenuidade de câmeras que tentam dar conta de captar o todo de forma documental e com pouco diálogo com o meio a que a obra se destina (vale ressaltar que a busca por atores via internet, por meio do envio de vídeos, dialoga muito mais com o meio do que o próprio resultado final). Para os próximos episódios desta blognovela, fica a expectativa de que além da inspiração na atividade colaborativa, haja maiores apropriações (e por que não questionamentos e subversões?) da tecnologia como forma de transformação (e não apenas reprodução/propagação) da produção teatral - além da torcida para que o produto final transmitido pelos precários serviços de banda larga brasileiros seja minimamente estimulante a quem não está num teatro escuro cheio de fumaça (e cujos focos de atenção não estão condicionados a seguir os movimentos de luz e som que ocorrem em cena) (ALCANTARA, 2008).

Divergimos da crítica acima no seguinte ponto: a blognovela foi concebida primeiramente como texto literário, somente depois foi encenada, de maneira totalmente repensada, pela Companhia Ópera Seca e pensado simultaneamente para ser encenado no palco e transmitido pela internet. Diz Mau Fonseca a respeito do “teatrocinema da blognovela”, quase como se estivesse respondendo às críticas acima elencadas por Marcelo Alcântara:

O teatro visto por uma tela pequena de computador sujeito às entropias da exibição intra-pessoal (algo que não seja pessoalmente) é como a comunicação diária no blog. Todos são íntimos distantes, sujeitados a uma entropia diária - a mensagem é verdadeira, mas os formatos criados (os nicknames e as técnicas) dentro do blog são falsescas, tal como na produção cinematográfica. Então, por associação, o blog é como o cinema também, mesmo parecendo absurdo. A encenação da peça ao vivo, como num ensaio, era teatro apenas pra quem estava na platéia, o cenário, elenco, a fumaça, a interação e o peso dos corpos e sons. Ao público em casa, era também uma peça teatralizada porque não houvera montagem anterior, seguia-se obviamente um roteiro, mas a montagem era ao vivo (o plen-air impressionista) - portanto teatro. E a criação foi com base teatral, Gerald é homem do teatro, e sua cia. faz parte do universo teatral. Nossa visão se deslocava na tela do computador procurando pontos focais, sendo que em determinados momentos a tela se escurecia, um corte cinematográfico e teatral. É o teatrocinema ou nenhum dos dois...de repente não é uma coisa ou outra, é apenas uma obra audiovisual, como uma vídeo arte ou "Performance Body Art" que poderia ser reproduzida em paredes de museus ou encostas de morros, laterais de prédios, projetada por grandes projetores interferindo na paisagem, o que aumentaria a percepção e ao mesmo tempo provocaria outras interferências perceptivas em relação ao tema. Afinal, as idéias ou conceitos eram mais importantes que o formato, o que deveria ser relevante era a mensagem. E foi justamente a mensagem que prevaleceu e sendo assim funcionou, não importando quão complexa a linguagem. Quando no cinema o diretor filma várias tomadas da mesma atriz, de costa, perfil, diagonal, de cima, com mão no joelho, no cabelo, boca entraberta, etc e etc, busca-se o excesso da imagem e o detalhismo para construção rica na tela grande. O teatro funciona melhor no minimalismo pra causar a impressão, ao mesmo tempo que limpa a imagem deixando o objeto exposto de forma nua (...). Há ganhos e perdas, seja qual for o meio, a importância de renovar é relevante. Vivemos uma época que se pode pensar - tudo já foi criado e não nos sobrou espaços para mais nada. A ousadia não foi repelida e nossa capacidade talvez ainda exista. Tem que se quebrar espelhos sem medo das pragas do azar e fuçar os escombros do mundo arruinado (FONSECA, 2008).

A blognovela seria, portanto, um gênero híbrido entre a literatura, o teatro e o cinema. Diferente do que Alcântara supôs, Gerald pensou a peça não só como teatro, até porque ele define o que faz como cinema para o palco, assumindo a influência de Glauber Rocha.

Embora conhecido como diretor, recentemente Thomas decidiu que seria preciso dirigir e encenar somente seus próprios relatos para garantir sua assinatura própria. Thomas leva bastante a sério esse direcionamento em seu trabalho: embora tenha de fato recolhido as falas e comentários dos freqüentadores do blog para realizar a blognovela, ao encená-la preferiu uma outra solução: homenagear os mais fiéis freqüentadores do blog através da citação de seus nomes em cena, o que de fato ocorreu, e não utilizar literalmente suas palavras e falas no texto, que foi praticamente todo alterado. Do texto original da blognovela, Thomas manteve a idéia da figura de um travesti, símbolo da ambivalência e da androginia. Um exemplo do texto original:

Gerald: Bom, eu queria reunir todos vocês aqui pra tentar encenar….

(sou interrompido)

Fabio:…Gérald,…?!..Que tal falar da Dóroty Stang, Chico Mendes, o Joãzinho trinta, o “almirante” negro da revolta da chibata, o madãme satã, o dom Élder Cãmara,o Antônio Conselheiro……..!!!!!! Tem tãnto brasileiro BOM e PÓBRE, esquecido ……! Claro que o Mandela e o Bill são legais….! Mas eles não precisam de fãma ou espaço, eles já Os TEM, E MUITO..!..São RECONHECIDOS EM VIDA..! isso é muito legal. Os que CITEI, SE FUUUUUderam em VIDA E NINGUÉM TÁ NEM AÍ COM ELES..!(desculpe o palavrão)

Gerald: Peraí Fabio, calma. Eu nem falei ainda sobre o que trata esse espetáculo! Além do quê tudo já foi escrito sobre Dorothy Stang, Chico Mendes virou filme com Raul Julia e Dom Helder Câmara foi uma das pessoas mais conhecidas e reconhecidas de sua época. Mas estou aqui pra tentar montar uma peça inédita que escrevi pra vocês, do Blog. É uma espécie de remontagem de um espetáculo…. (sou interrompido de novo e vejo que o Vamp esta atacando fisicamente o Fabio). (...). Obs: todos estão mudos no espaço de ensaio. Mau Fonseca tentava dizer alguma coisa tipo “a humanidade é horrivel” mas murmurava, ninguém o ouvia. Sandra tentava socorrer o coitado do Fabio que já flutuava a mais de 30 cm de altura do chão e estava sangrando. Eu me escondia, covarde que sou, atrás da única pilastra de concreto que havia no espaço (...).

Gerald - Cacá, tudo bem, tá ótimo. Justo o que você falou aí, muito justo. Mas eu estou aqui com vocês pra remontar o espetáculo M.O.R.T.E (movimentos obsessivos e redundantes pra tanta estética - aquele que o Haroldo de Campos montou uma tese em cima e que viajou o mundo)….lembram? Nao lembram? Bem foi em 1990 e a segunda versão foi em 1991. Não lembram. É, falta cultura à essa falta de cultura. Falta memória a essa falta de memória!

Gerald – Mas Fabio, eu já disse que…

Vamp: se voce falar mais uma palavra com esse Fabio eu saio por aquela porta ali e nao volto nunca mais!

Gerald - Mas Vamp…

Vamp: NUNCA MAIS entendeu? NUNCA MAIS!!!!

(ouve-se uma porta batendo, a luz desce em resistencia e Fabio sussurra: “poxa, perdi meu melhor amigo.. eh a MORTE!)

[Fim do Capitulo 1 de uma longa novela da blogosfera! (THOMAS, 2008).]

No texto da blognovela, Thomas valorizava a oralidade da fala cotidiana, os assuntos do momento, agindo como se estivesse realmente dirigindo uma peça, refletindo, pensando alto e revendo momentos de sua própria trajetória. Ao transpor a blognovela para o palco, reduziu significativamente o texto, refazendo-o para que ele pudesse trazer referências a dilemas fáusticos sobre a relação, presente no trabalho de Thomas, entre o poder e a arte, tal como o seguinte fragmento: “Não é o que vocês estão pensando. De alguma forma, é o que vocês estão pensando. De alguma forma, o que vocês estão vendo é isto. O que vocês estão vendo confirma o que vocês estão pensando” (THOMAS, 2008).

A essa altura pode-se ver pessoas dependuradas de cabeça para baixo, com um chapéu panamá pendurado no alto de seus corpos pendentes. O chapéu panamá refere-se a um quadro de Magritte e ao trabalho de Reinaldo Azevedo, jornalista e blogueiro da revista Veja e com quem Gerald Thomas polemizou, mas conseguiu reverter a antipatia inicial, travando com ele relações de amizade, numa peripécia que muito abalou os seguidores de ambos na internet, tendo todos entrado em guerra e realizado a paz juntamente com seus “mentores”. Reinaldo Azevedo possui uma relação de oposição radical ao governo Lula, no que existem confluências com a rebeldia anárquica e oposicionista proposta por Thomas. Azevedo, no entanto, alimenta-se da crescente impopularidade do governo Lula entre parte das elites e da classe média, devendo a esse governo boa parte de sua repercussão. E ele concorda, por exemplo, que o governo Lula deve manter sua política econômica. As relações entre Reinaldo Azevedo e o governo Lula fazem lembrar a tragédia Lacerda/Getúlio, inclusive possuem algo que podemos chamar de um resquício de uma dialética. Gerald Thomas diferencia-se de Azevedo por sua posição liberal em relação a costumes, especialmente no que se trata de ecologia e liberdade sexual. Para além dessa discussão, a revista Bacante referiu-se à blognovela como “teatro filmado” e descartou-a como inferior a trabalhos como Quádos, de Beckett (como uma forma de evitar a verve polêmica de Gerald: afinal, ele não se diria melhor do que Beckett, deve ter pensado Marcelo Alcântara). No entanto, Kepler vai bem além de um teatro filmado como habitualmente se faz na televisão brasileira e é teatro agudamente experimental, fazendo jus às influências recebidas de Beckett: é um espetáculo que marca pela sobriedade e despojamento minimal e cujo claro e escuro permanece em nossas mentes. Escreveu Alberto Guzik a respeito de Kepler, the Dog:

É muito poderoso o novo trabalho de Gerald Thomas, "o cão que insultava as mulheres, Kepler, the dog". Vi ontem e ainda está girando na minha cabeça. as imagens, a força das idéias. tudo muito simples, muito despojado, e extremamente requintado. Não parece o gerald capaz de inventar máquinas cênicas complicadíssimas. Este gerald está interessado em explorar o palco nu, a caixa cênica desventrada, sem nenhuma moldura que a enfeite. O resultado é magnífico porque sofre o impacto da visão de mundo lúcida e arguta do encenador. Fabiana gugli está esplêndida, cada vez mais precisa e senhora do palco. E também brilham Duda Mamberti e Pancho Capeletti, dominam a cena com extrema segurança. Mas é das idéias do espetáculo que se precisa falar (...) (GUZIK, 2008).

Na primeira versão da blognovela, o próprio Thomas era, ao mesmo tempo, diretor e ator: ele falava como um dos demais personagens e atuava de fato como um diretor dos demais, sendo partícipe da narrativa, mas resguardando-se a posição daquele que determina a direção que a narrativa deveria tomar. Era uma espécie de “Deus intra machina”. A decisão de antropofagizar até mesmo os comentários dos leitores e trazer à luz imagens que são, como dizia Freud, unmheimlich, ou seja, ex-estranhas, foi a decisão de Gerald tomou para unificar e manter sua assinatura própria, seu gesto e escritura autoral. Rui Filho associou a peça à problemática fundamental da identidade (que ligaremos, aqui, com a de autor e autoria):

Tentar diagnosticar nossa identidade, já seria um desafio imensurável. Tratar o diagnóstico, então, pelo prisma da arte, associando esta ao poder, torna a abordagem ainda mais complexa. Tudo inicia na exposição de corpos dependurados. Escolha anunciada do próprio criador. “Porque eu coloquei ali” (...). Como responder, então, o paradoxo entre “a arte tem a cara do poder” e “o poder tem a cara da arte”? O que parece ser a mesma coisa, expõe uma problemática crucial para chegarmos a tal da identidade. Na primeira questão, a arte é colocada como artifício, instrumento de determinação de uma ordem pela subjetividade da estética; na segunda, o poder se fantasia de subjetividade para esconder sua manipulação. Mas nem tão distantes estão. Equilibram-se na existência do próprio homem como fruto responsável por ambas, já que tanto arte quanto o poder são atributos da necessidade humana de superar o meio, seja ele simbólico (e portanto cultural e natural, entendendo que a origem etimológica das duas palavras são a mesma) ou político. E é esse homem, essa figura, transformada em mulher, que vemos surgir da figura do cão. Se deus é o criador de tudo e todos, então a mulher é responsável pela continuidade da vida. É ela igualmente criadora. A humanidade se configura, portanto, na existência da criação como instrumento de adoração do criador. Adoração exposta em desejo ao próprio corpo, como o strip-tease do ator (metáfora da necessidade de abdicarmos de nossas máscaras sociais para nos reencontrarmos puros e originais), como a idolatria ao inacessível, ao inquestionável, ao que cala, representado pelo Santo Graal (face existencial de criador supremo) (FILHO, 2008).

Vale a pena registrar um ponto importante: o fato da dramaturgia ancorar no “autor”, em se tratando de Thomas, não é garantia de não-decifração. O autor mesmo possui diferentes falas conforme o momento. Em algumas situações ele é “O Rebelde Revolucionário do Teatro Carioca”, em outras ele é “Conservador Realista Norte-americano”, em outras ele fala alemão, inglês, francês. Thomas parece vivenciar, enquanto autor, a dissolução do sujeito de que trataram Nietzsche e Foucault.

A virada autoral de Thomas talvez tenha se dado no momento da grande polêmica gerada por Tristão em Isolda em 2003. Naquele momento, o gesto do autor de protestar diante das vaias da audiência foi extensamente noticiado, assumindo maior importância até do que o debate – que deveria acontecer – sobre a montagem. Na montagem, os elementos que surgiam por associação livre adquiriam maior relevância que a narrativa clássica. Podemos dizer que Gerald Thomas é pós-modernista no sentido em que Fredric Jameson analisou essas formas culturais de origem norte-americana em seu livro A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio: o pós-modernismo surge como uma aceitação e valorização do momento presente, representando, portanto, um abandono praticamente total das utopias da modernidade. Por isso em seu Tristão e Isolda aparece Freud cheirando cocaína, junto a desfiles de moda, etc. A modernidade (Freud, Wagner) foi ali problematizada e, em boa parte, desconstruída. Sua direção foi entendida no Brasil, muitas vezes, como provocação hermética “chata” ou “pretensiosa”, assim como proclamação do vale-tudo nas artes, o que é um grande equívoco.

Minha hipótese é que, a partir da enorme repercussão do gesto autoral ao final de Tristão e Isolda, Thomas tenha decidido tecer sua obra a partir da autobiografia e dos gestos autorais conscientes. O gesto de protesto do encenador em Tristão e Isolda resultou em um processo para Gerald Thomas, processo ao qual ele respondeu politizando os ataques aos quais foi submetido: a era Lula, do tão esperado governo “de esquerda”, favorecia uma nova censura e acusações de elitismo contra ele. O processo acabou arquivado, mas suponho que, mais do que a visão da queda das Torres Gêmeas em 2001, seja esse fato que pode fazer o papel de navio que nos pode guiar para o maelstrom (redemoinho) que é a obra de Gerald Thomas.

Para uma melhor compreensão dessa obra multifacetada é preciso ouvir a voz do autor. Mas esse é um dos enigmas de Thomas: o próprio autor se define como um significante tantalizado, ou seja: o Holandês Voador. Ele assume uma identidade multinacional, não desejando representar a arte de nenhum país, a não ser, quem sabe, a América mestiça e de muitas vozes. Ele é anfótero: conforme o meio, ele assume o papel de ácido ou de base.

Como comentou o crítico Alberto Guzik, em Kepler Gerald Thomas deixou limpa a cena, deixando a “máquina cênica” quase nua, ele que já elaborou complicadas máquinas cênicas tal como em Carmen com Filtro. Essa clareza cênica não implica a ausência de alguns estilemas que celebrizaram o encenador: a voz em off do encenador que substituiu a voz de um ator que está em cena (Duda Mamberti), o texto oscilando entre a simplicidade e o hermetismo, a iluminação que faz sobressaltar o jogo do claro e escuro, as referências eruditas (Susan Sontag), misturando-se às de massa (Led Zeppelin) e às artes plásticas (Magritte), assim como uma reflexão sobre o poder. A reflexão fáustica sobre o poder é muito presente na obra de Gerald Thomas e ele mesmo assume que não dissocia política e estética, tal como Jameson teoriza em A Lógica Cultural do Pós-Modernismo: a superestrutura, no capitalismo tardio, perdeu boa parte da autonomia anterior.

A VOZ AUTORAL EM BATE MAN: O AUTOR COMO ISCA DE SI MESMO

Bate-Man, espetáculo mais recente de Gerald Thomas, revê, com precisas variações, questões que tratamos acima. Nessa peça o autor reflete sobre os processos que fazem sua arte através da apropriação de seu próprio trabalho e de suas criações passadas. Iconoclasta por vocação e desejo, era de se esperar que, em algum momento, fosse ao extremo de si mesmo para se recompor. Muitas são as referências paralelas a montagens recentes. As garrafas vazias (Ventriloqüist), o chão estéril de terra (Nowhere Man), as caixas e o encontro com os segredos históricos metaforizados em seus conteúdos de restos humanos (Circo de Rins e Fígados), o desfile de moda (Nietzsche x Wagner), o porão como lugar não-identificável (O Príncipe de Copacabana), os remédios e vitaminas (Terra em Trânsito), o corpo dependurado pelos pés (O Cão que Insultava Mulheres, Kepler, the Dog). Com paciência, papel e caneta chegaríamos a mais tantas outras. E o que isso quer dizer? Assim como assinala o argumento de Bate Man – o homem isca –, Gerald se fisga num panteão simbólico por ele criado, na última década, onde a construção de vocabulário particular identifica autoria e destreza. Poucos são, verdadeiramente, os artistas a constituírem um discurso preciso e particular, mesmo entre os bons artistas. Quase sempre nos defrontamos com apropriações circunstanciais, estímulos produtificados de alfabetos comuns e gerais. Gerald, não. Faz do palco e cena a expressão de um complexo sistema de metáforas organizadas a partir de percepções próprias dos fatos históricos, reavaliando suas origens através de provocativas reinterpretações sígnicas. O autor, mais do que tudo, conserva os valores deturpando qualquer possibilidade de estagnação histórica, levando os fatos e circunstância a constituírem um elaborado jogo de origens e conseqüências, como que nos avisando de haver muito mais no ontem na constituição do agora. Nessa perspectiva, por que deveria ele abrir mão de si mesmo? Bate Man argumenta, portanto, a favor do autor determinando sua particularidade e individualidade, tanto estética quanto argumentativa, em um panteão contemporâneo estéril de pessoalidades e olhares originais.

As garrafas de vinho tinto espalhadas pela cena oferecem ao espectador a possibilidade de contextualizar-se à história. E não qualquer história. A que nos torna piores do que desejamos ser. São vinhos originados em sangue humano produzidos durante a ascensão e queda do Terceiro Reich. Mas não devemos nos limitar ao tal período. A guerra hitlerista é outra vez argumento simbólico. Gerald fala de todas, identificando o horror inerente ao espectro maior do Holocausto. Assim, o homem isca, retorna à sua função de traduzir o coletivo, a face comum que nos identifica, num jogo metafórico digno de Charles S. Peirce e semioticistas de plantão. Está na guerra a maior atrocidade humana, o princípio destruidor que nos iguala e distancia, paradoxalmente. E Gerald, insistente sobre isso, vem tramando, sucessivamente, espetáculos cujo foco primordial é compreender em que momento desse paradoxo tombamos ao distanciamento. Se por um lado, o teatro reserva a comunhão dionisíaca, por outro, o discurso que se pretende questionador desagrada ouvidos. Gerald se utiliza da artimanha do humor, ou melhor, do ridículo para nos aprisionar interessados. Na construção de circunstâncias absurdas, revela o mais próximo de nossas idiossincrasias. O patético em ser humano. E a culpa histórica e religiosa configurada no absurdo da surdez autista. Um homem banha-se e serve-se voluptuosamente de vinho de sangue humano decorrente de guerras, assassinatos e atrocidades históricas. E rimos disso sem perceber que abrimos diariamente as mesmas garrafas, embriagados que estamos pelas manipulações. Enquanto nos distanciamos do ontem, na perspectiva errônea do novo, prostituímo-nos ao silenciar de toda e qualquer responsabilidade por nossos atos. Sim, nossos. Não o do indivíduo, mas de toda a humanidade. Somos, assim, iscas de um teatro ainda pior, maior, orwelliano. Nas guerras encenadas de Gerald Thomas, a humanidade é culpada por omissão, e em Bate Man, o homem devaneia embriagado pela crueldade da consciência. Como o homem de Dostoiévski, em Notas do Subterrâneo, o de Gerald opta por permanecer isolado, porém bêbado, travestido de estética e futilidade, conduzido ao sofrimento de Prometeu pelo exercício da reflexão.

Gerald exercita um saboroso monólogo sobre o silêncio, apoiado na consistência da trilha de Patrick Grant e das alongadas notas de guitarra. Não há como suprir a voz calada, nem mesmo como calar o som estridente e persistente. Bate Man mostra que estamos afundados em nossas ausências. E nada mais coerente, então, do que o autor, encenador, cenógrafo e iluminador, buscar socorro em si mesmo. O mundo se tornara excessivamente absurdo. E beber sangue humano não me parece nada além de uma possibilidade futura dentre as demais.

Gerald Thomas propõe trocadilhos para além das palavras em seu Bate Man, em cartaz do Espaço Sesc, em Copacabana, como se a ação, ou inação, do homem submetido ao “banho de vinho tinto de sangue” fizesse parte do jogo das inevitabilidades do nosso tempo. O indivíduo, torturado pela banalidade da violência, transformado numa peça de carne pendurada numa exposição de atrocidades, se esvai pelas frestas de uma realidade de sentidos duplos e aparências enganosas, que o imobiliza e atrai a sua perplexidade. Vejamos uma passagem do texto:

(Vira de costas e toma mais banho de vinho.

Murmura pra si mesmo.)

Sabe que… eu acho nunca vi….

Sinceramente.

Eu vou dizer uma coisa para vocês…

Ai…

Sinceramente.

Ai….

(pigarreia algumas vezes, como se preparando para falar.

Murmurando.)

Acho que….

Eu nunca achei que agradar a Burguesia seria desperdiçar aquilo, aquilo que eles acreditam ter de melhor. E agora? Que eu fiz tudo isso aqui.

Qual será a próxima?

(tempo, pensando.

Conclui.)

Um banho de caviar?

Banho de caviar.

(olha para baixo e vê caixas de caviar.

Encontra caixas de caviar.

Se assusta com a surpresa.)

Ahhh (...).

E OLHA QUE LOUCURA ESSA AGORA!

MEU DEUS DO CÉU.

Roupas FASHION!

Não posso acreditar.

Um John Galiano direto da próxima coleção de verão!

WOW!

(entra música. Bate Man se veste e começa a desfilar) (THOMAS, 2008).

Portanto, o que resta a esse homem, bêbedo do real, mas que desconhece as razões para o que vive, encharcado de incoerência e de culpa. No teatro de meias verdades ou de mentiras cínicas, interpreta o papel do bufão ensangüentado que bebe vinhos de safras incontornáveis e participa, como foi visto acima, de patético desfile de moda, numa antropofágica deglutição da imensa solidão do silêncio dos tempos.

Nas metáforas da existência na atualidade, Gerald Thomas não abandona as citações, a busca de representar o momento com fatos do passado, de reinterpretar significados e reverberar a imobilidade ruidosa. A escrita cênica de Gerald Thomas capta a intensidade com que expõe as suas próprias dúvidas e inflexiona a arte contemporânea. A capacidade de criar identidade visual para suas montagens permite que o autor, diretor e cenógrafo deixe, a cada espetáculo, a sua marca também na ambientação. Em Bate Man, a semi-arena coberta de areia, com caixas de vinho espalhadas pelo chão e um simulacro de palco ao fundo, cuja cortina se abre para desvendar atrocidades, confirma a sua mão firme para o desenho da cena.

CONCLUSÃO

A obra de Gerald Thomas é uma obra de signos em rotação. Concluímos aqui que entrou numa rotação ainda mais intensa recentemente, acelerando o seu maelstrom de referências. O “turning point” da obra, supomos, foi o gesto autoral de protesto em Tristão e Isolda. O resultado foi a guinada para relatos intensamente autorais ou até mesmo autobiográficos que realizou o autor em Terra em Trânsito e Rainha Mentira (Queen Liar). Analisamos também, brevemente, a blognovela O cão que atacava mulheres ou: Kepler, the dog, considerada por Gerald Thomas como continuação da trilogia iniciada em Terra em Trânsito e Rainha Mentira. A blognovela passou por uma transformação entre o seu formato original no blog e a encenação. Nessa mudança, investigou-se o traço autoral de Thomas. Ao verter a peça, originalmente apenas literária, para o teatro, Thomas tornou-a algo marcado pela preocupação em, com imagens de pesadelo, buscar mobilizar o inconsciente, refletir as relações entre arte e a política no mundo atual, referindo-se indiretamente a episódios de tortura em Abu Ghraib, por exemplo. Em Bate Man, ele continua esse trabalho autoral de encenação de si mesmo em um monólogo escrito para o ator Marcelo Olinto.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Severino J. O Teatro Brasileiro na Década de Oitenta. Latin American Review. No. 25.2 (Spring 1992), p. 23-36.

ALCANTARA, Marcelo. Crítica: O cão que insultava as mulheres: Kepler, the dog. Revista Bacante. http://www.bacante.com.br/revista/critica/o-cao-que-insultava-as-mulheres-kepler-the-dog.

BOOTH, The Rethoric of Fiction. Chicago University Press: 1983.

BROOK, Peter. O Teatro e seu Espaço. Rio de Janeiro: Vozes, 1970.

FILHO, Rui. Kepler, o cão atordoadohttp://antroparticular.blogspot.com. <acesso em 20/01/2009>.

FONSECA, Mau. O Teatrocinema da blognovelawww.maulsoleu.blogspot.com. <acesso em 20 de janeiro de 2009>.

GEORGE, David. Gerald Thomas postmodernist theatre: a wagnerian antropofagia? Luso-brasilian Review, XXXVII, 1998.

GUINSBURG, Jacó et. FERNANDES, Sílvia.  Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas. São Paulo: Editora Perpectiva, 1996.

GUZIK, Alberto. O Impacto de Keplerhttp://os.dias.e.as.horas.zip.net/arch2008-11-09_2008-11-15. <acesso em 20/1/2009>.

JAMESON, Fredric. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996.

MACKSEN Luiz. Texto pretensioso de Gerald Thomas expõe crueldade de nosso tempohttp://jbonline.terra.com.br/extra/2008/12/17/e171213626.html. <acesso em 21/01/2009>.

REIS, Luís Augusto. Piscator, Brecht, Boal e Artaud – Considerações sobre o teatro político. www.ccb.com.br. <acesso em 21/01/2009>.

THOMAS, Gerald. Presswww.geraldthomas.com. <acesso em 21/01/2009>. 

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior. Graduado em Filosofia (UFMG) e Mestre em Estudos Literários por essa mesma universidade. Atualmente, doutorando em Teoria e História Literária (UNICAMP). Autor do livro de contos Penetrália, pela editora Dez Escritos (2005) e do vídeo Falas de Lúcio Júnior em Blognovela de Gerald Thomas (2008), disponível no Youtube. Mantendo um blog (www.penetralia-penetralia.blogspot.com) e colaborador com sites na web tais como a revista Broca Literária e A Barata. Contato: lucio1405@yahoo.com.br.

domingo, 23 de abril de 2023

Se Cercar Vira Hospício é Deus: Maura Lopes Cançado na Seção de Saldos

 

 

                Se Cercar Vira Hospício é Deus: Maura Lopes Cançado na Seção de Saldos

 

                Nossa cidade não tem livrarias desde 2008, mais ou menos. A última existiu aqui ao lado, na Praça da Matriz, onde hoje é a Praça Lanches, aliás excelente local, propriedade do amigo Ivan, assíduo leitor desse jornal.

Na adolescência, nos anos 80, o professor Ronan tinha uma livraria na Praça da Rodoviária, onde hoje é um açougue, se não me engano. Lá estava sempre o professor Juninho, que posteriormente deu grande contribuição ao teatro e até ao cinema locais, com o filme Uma Chance para Glória. Ele lançou os atores Italo Laureano e Thales Braga, dentre outros. Italo Laureano recentemente fez a minissérie Segunda Pele, série onde ele faz o tenente Selton do Bope e que teve apoio da PM. Eu tenho uma memória distante dessa livraria, mas lembro-me nitidamente do hoje economista Bruno Carazza dos Santos entre seus frequentadores. Hoje Bruno escreve uma coluna no jornal Valor Econômico, teve o blog Espírito das Leis junto da Folha de São Paulo e tem um site na internet (brunocarazza.com.br).

            Até bem pouco tempo atrás, eu costumava encontrar livros numa papelaria chamada BD Útil. Os livros ficavam ali ao fundo, mas infelizmente a papelaria acabou. E foi numa livraria, uma espécie de seção de saldos que abriu de forma passageira ao lado do Banco do Brasil que encontrei, finalmente, o livro Hospício é Deus, Diário I, de Maura Lopes Cançado, a maior escritora que viveu aqui nesse nosso Bom Despacho. O perfil biográfico ao final do livro citou nossa cidade:

 

            Uma garota bonita que desafiava a morte em um aviãozinho amarelo. Essa imagem nunca saiu da memória de um menino de calças curtas que brincava no esqueleto de um velho Aeronca Champio e divertia-se ao ver os voos do aeroclube de Bom Despacho (MEIRELES, 2015, p. 210).

 

            Esse menino, segundo o jornalista Maurício Meireles, que escreve um estudo biográfico que fez as vezes de posfácio do livro, era o jornalista Pedro Rogério Moreira. Nós o conhecemos aqui na cidade como Pedrim do Sô Benigno. Posteriormente, Pedro Rogério foi colega de Cesarion Praxedes, jornalista, poeta e filho daquela menina, a escritora Maura Lopes Cançado. E escreveu, inspirado nela, o romance Bela Noite para Voar. No livro, ela inspira uma mulher que também é piloto de avião e salva o presidente JK de um desastre aéreo tramado por conspiradores. Um dia, ao falar de Maura a minha querida amiga Luciene Guimarães, maior tradutora de Marguerite Duras no Brasil, sabia dela e contou-me que a academia estuda bastante Maura: “ela é a louca que escreve”.

            Maura entrou no aeroclube (que era onde é o bairro Campo de Aviação) aos quatorze anos e lá conheceu outro piloto, Jair Praxedes, filho de um coronel da PM, o nosso coronel Praxedes (que deu nome a uma de nossas escolas). O casamento não durou muito e foi apenas no religioso, por exigência de José Lopes Cançado, o pai de Maura. Segundo Pedro Rogério do Couto, Maura era uma mulher adiante de seu tempo. Era tida como libertina, as outras mulheres tinham inveja dela. Ela casou grávida antes disso virar regra, como é hoje em dia, quando o feto acelera os procedimentos matrimoniais e só assim as pessoas casam-se. Ao contrário, nesse tempo isso era enorme escândalo (anos 40!). Ela tinha mania de grandeza e dizia que seria a maior escritora da língua portuguesa. Maura foi amiga de Carlos Heitor Cony e ele disse, posteriormente, que sua coluna Da Arte de Falar Mal, no Correio da Manhã, foi inspirada numa fala de Maura. Ela dizia que seu esporte preferido era falar mal dos outros, dizia que “falar mal é uma arte”.

Maura Lopes Cançado teve uma vida muito trágica, marcada por internações em clínicas psiquiátricas. Numa dessas crises, matou uma moça grávida de quatro meses. E, depois disso, traumatizada, passou a morar com o filho Cesarion Praxedes e nunca mais escreveu. Ela pouco trata de nossa cidade em seu livro, nem menciona seu nome. Bom Despacho, de certa forma, perseguiu-a, ela, por ser separada, tentou inscrever-se no instituto Izabela Hendrix em Belo Horizonte, mas sua fama chegou primeiro e ela foi recusada lá. Ela era apaixonada pelo sogro, o coronel Praxedes. A família Lopes Cançado daqui de Bom Despacho tem parentesco distante com ela. Já acompanhei um curso de Literatura e Psicanálise a respeito de sua obra, disponível no youtube. Maura foi elogiada por Assis Brasil, um dos mais importantes críticos literários do tempo em que lançou Hospício é Deus e Sofredor do Ver, seus únicos livros.

            Maura é imbatível como nossa maior escritora. Recentemente, uma peça chamada Uma Mulher ao Sol, de Danielle Oliveira e Maria Augusta Montera, dirigida por Ivan Sugahara, inspirou-se no livro Hospício é Deus. Foi notícia em O Globo, a peça foi encenada no Rio de Janeiro. Paulo Sérgio Teteco, amigo de Pedro Rogério, passou-me essa interessante informação em março desse ano de 2023. “Maura, super-Maura, Maura de todas as coisas e de nada, solene e vaga”, diz ela, autodefinindo-se. Sendo bem “fora da casinha” e tendo sofrido aqui, com certeza Maura adoraria a definição que os bom-despachenses dão, de forma bem humorada e piadesca, de nossa cidade e de si mesmos: “se cercar vira hospício, se colocar uma lona, vira circo”!

Quero Ver Irene Rir: O Sol nas Bancas de Revista

 

Quero Ver Irene Rir: O Sol nas Bancas de Revista

 

 

            Quando vou a uma banca comprar revistas e jornais, que aprecio muito no formato físico, lembro-me com frequência da canção de Caetano Veloso: “Alegria, Alegria”. Nessa canção Caetano comenta, na verdade, que via nas bancas de revista o jornal de vanguarda O Sol, onde escrevia Nelson Rodrigues, dentre outros. O Sol não brilhou muito tempo, mas foi eternizado nessa incrível marchinha.

            Hoje nossa cidade tem somente duas bancas de revista. Uma delas vende revistas e também passagens de ônibus e é comandada por Alberto. A outra fica na Praça de Matriz, comandada pela simpática Irene, irmã de Alberto. Alberto é um senhor bastante sério e surpreendeu-me um dia, quando contei a ele que sou socialista. Ele disse que é socialista também e que o maior socialista do mundo foi Jesus Cristo!

Eu sempre achei um prazer ler as notícias e ver as capas de revista e manchetes.  Ela contou que trabalha há quarenta anos com banca de revista, mas que essa época da internet é a época mais difícil para esse empreendimento. Ela mostrou-me alguns brinquedos: a distribuidora passou a entregar até brinquedos para vender em bancas. Contei a ela que vi, em Belo Horizonte, bancas cobertas de roupas para vender, num espetáculo melancólico. Falei a ela que, mesmo na biblioteca pública e na escola onde trabalho, as assinaturas de jornais e revistas foram cortadas. Um dia encenamos uma peça teatral onde o pai de família lia um jornal. O jornal encontrado pelos alunos foi esse Jornal de Negócios, cujos exemplares eu levo para a biblioteca da escola com bastante frequência. Ela contou-me, com tristeza, que não abre mais a banca em dias de domingo: nada de comércio, nem o Xuá Lanches abre mais aqui na praça, ela fica ali sozinha e tem medo, restam da madrugada alguns bêbados, ela acabou preferindo não abrir mais. Uma pena, pois o domingo era, no passado, um dia onde, tradicionalmente, as pessoas tinham mais tempo de ler jornais e revistas.

            Minha mãe é ávida leitora de jornais. Eu contei a Irene que eu tentei assinar o jornal O Tempo para minha mãe, mas a empresa desistiu de renovar assinaturas para o interior. A ideia deles é concentrar a venda apenas na região metropolitana de Belo Horizonte, conforme fiquei sabendo ao entrar em contato com a empresa. Um carro vinha trazendo os exemplares para o interior, mas com a queda nas vendas, passou a ser inviável. O Tempo passou a chegar apenas às sextas-feiras. Numa sexta passei lá e encontrei o último exemplar. São apenas quatro, comenta a sempre atenciosa Irene.

 Igualmente, soube que algo semelhante ocorreu ao jornal Aqui, que era muito barato e vendia bem diariamente, passou a ser semanal e as vendas despencaram. O poeta, editor da Literatura em Cena e psicanalista Eduardo Andrade, personagem frequente dessa minha coluna, explicou-me, recentemente, que o preço do papel aumentou com a venda on-line de mercadorias durante a pandemia. É muito mais lucrativo vender papel para embalar mercadorias do que para fazer jornais e revistas, daí a crise do papel.

            Outra revista que eu compro com Irene é a revista Piauí. Eu sou um dos poucos compradores da cidade. Como assim da cidade? Irene disse que vem um rapaz de Dores do Indaiá que passa ali para comprar. “Mas lá não tem banca?”, perguntei eu, perplexo. “Não, não tem”. Diante do meu espanto, completa ela: “não tem mais banca de revista em Luz, Nova Serrana e nem Moema”. Que triste realidade, a do nosso interior!

            E assim, angustiado, pensando em como a vida é breve e tudo acaba, peço aos meus leitores apoio às nossas duas bancas, para que apoiem os vendedores e para que elas não fechem. É um apelo...E ao fazê-lo penso em outra canção de Caetano, Irene: “Quero ver Irene rir! Quero ver Irene dar sua risada...”

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Um Novo Partido

 Roberto Leher, Marcelo Badaró e Cristina Miranda,




Em conjunto com outros setores, estivemos desde o primeiro momento de convocação do seminário que se realiza em 11 de outubro no Rio de Janeiro apostando na possibilidade de criação de um espaço de discussões que pudesse reunir, a partir de uma construção unitária, todos os setores que hoje elaboram politicamente sobre a constituição de um novo partido de esquerda, incluindo na discussão não apenas as correntes organizadas, mas também os militantes dos movimentos sociais que não se identificam necessariamente com nenhuma delas, como é o nosso caso. Defendemos neste processo, uma metodologia de discussão que incorporasse o máximo de militantes nos debates, e por isso o seminário foi estruturado com grupos de trabalho e plenárias.

Até aqui atuamos com o firme propósito de garantir as condições para um debate includente, nos limites do contexto, tarefa que estamos dispostos a continuar executando, na expectativa de que o seminário se desdobre em muitas outras iniciativas de mesmo sentido e direção. No momento em que o debate se abre, não nos furtamos a apresentar uma contribuição na expectativa de somar para o debate franco e respeitoso que esperamos possa cimentar caminho para a construção da organização política que a conjuntura exige.

Para tanto enfrentamos neste texto o debate sobre a conjuntura, porque é nela que situamos a necessidade e a possibilidade de construção de uma alternativa partidária de esquerda. Enfrentamos também o debate sobre a trajetória do PT, pois nosso objetivo é construir um novo partido, em um movimento que se inicia sob o duplo signo da ruptura e da unidade. Ruptura porque, ainda que com temporalidades distintas, tanto os setores organizados quanto os militantes independentes que estão interessados na discussão sobre o novo partido acumulam uma experiência, mais antiga ou mais recente (ou já prevista para o futuro próximo), de ruptura com o Partido dos Trabalhadores. Unidade porque o desafio que se coloca é garantir que nesse processo de discussão consigamos aglutinar todos os setores – das correntes organizadas aos militantes dos movimentos sociais que não as integram – que compartilham do objetivo de fundar um partido classista (que lê a sociedade pela ótica da luta de classes e toma partido da classe trabalhadora) e socialista (que luta pela transformação social, entendida como fim da sociedade de classes, e age consciente de que a transformação não se fará sem rupturas). Portanto, nos marcos da ruptura com o PT, é importante tomar a experiência recente do partido como ponto de partida para avaliarmos como surgem hoje mais e mais militantes dispostos a discutir uma nova alternativa. Também é fundamental que avaliemos a trajetória do PT para que possamos dela tirar os ensinamentos necessários a um salto de qualidade no instrumento político que queremos construir.

No que diz respeito à unidade que desejamos construir no movimento pela criação do novo partido, é necessário enfrentar o desafio de por em discussão os temas mais controversos que marcaram a experiência negativa com o PT e também as diversas expectativas que organizações e militantes possam ter sobre qual a natureza do instrumento político que desejam construir. Isto significa que temos a necessidade de discutir e construir propostas sobre pontos como: o projeto estratégico (o socialismo) e o caráter da organização partidária adequada a tal projeto; as relações do partido com os movimentos sociais; a concepção internacionalista e as relações com organizações internacionais; as definições programáticas que possam vincular as concepções estratégicas às propostas concretas para enfrentarmos os desafios da conjuntura atual. Este foi o esforço que fizemos a seguir.





A conjuntura atual no quadro das respostas do capital à sua crise estrutural

Desde a década de 1970, a economia dos países industrializados cresce a passos tão lentos que se poderia caracterizar toda essa fase como um período de estagnação econômica. As crises que o noticiário normalmente associa ao mercado financeiro, ou a determinadas regiões (crise mexicana, crise asiática, crise russa, crise argentina), são na verdade manifestações de uma crise mundial, expressão de contradições econômicas e políticas profundas. (Ver sobre este aspecto os vários trabalhos de François Chesnais, como o artigo publicado na Revista Outubro, no. 1). Podemos dimensioná-la através de indicadores que demonstram uma queda do crescimento dos países industrializados, que oscilava em torno da taxa de 5,5% ao ano (1965) nos anos 1960 e regrediu a taxas de 2% (1995) ao ano na década de 1990. Neste quadro, ainda seguindo Chesnais "O sistema capitalista imperialista mundial considerado como um todo investe a uma taxa muito fraca; ele não coloca, portanto, bastante capital criador de valor e de mais valia em movimento. Ele não produz mais bastante valor e mais valia para enfrentar as exigências às quais está confrontado. Quanto mais o sistema superexplora e pressiona, mais ele conhece a superprodução tendencial e mais ele sofre repetidamente os choques financeiros."

Na mesma linha, as políticas neoliberais (aí incluídas a retirada das políticas keynesianas de controle da demanda e a retirada dos direitos dos trabalhadores, desregulamentando o mercado de trabalho), bem como a ascensão do capital financeiro, devem ser entendidas como conseqüências e não como causas da estagnação econômica de longo prazo. Mas, os choques neoliberais acabaram por agravar, nos anos 1990, a situação de vulnerabilidade a crises da economia capitalista, em escala internacional. Robert Brenner esclareceu que "a crise (...)tem raízes profundas numa crise secular de lucratividade que resultou do excesso constante de capacidade e de produção do setor manufatureiro internacional”. O crescimento do setor financeiro deu-se, então, como conseqüência da incapacidade da economia real, especialmente das indústrias de transformação, de proporcionar uma taxa de lucro adequada. (Outubro, no. 3.)

Essa análise pode ganhar maior concretude quando aplicada ao carro-chefe da economia mundial, os Estados Unidos. Segundo os cálculos de Robert Brenner, a taxa de lucro líquido do setor manufatureiro nos EUA caiu de 24,35% , no período 1950-1970, para 14,5% , nos anos 1970-1993. No G7, as mesmas taxas eram de 26,2% e 15,7%, respectivamente. Uma crise que atinge o epicentro do sistema, os EUA, tem dimensões catastróficas para a lógica do capital, pois este hoje busca refúgio seguro financiando a economia norte-americana, cujo déficit público atinge proporções incontroláveis.(O boom e a bolha. Os estados Unidos na economia mundial) Hoje, a dívida pública federal norte-americana equivale a 36,1% do PIB do país. Para 2003, estima-se que o déficit público atingirá 304 bilhões de dólares e o acumulado é de uma dívida federal total de quase quatro trilhões de dólares ou mais de seis trilhões se calculado o conjunto da dívida e não apenas a parte do governo federal. (Cintra, Marcelo. "Rombo histórico". Reportagem, São Paulo, março de 2003)

Após a tentativa desastrosa de Clinton de aplicar internamente o receituário ortodoxo neoliberal e conter o déficit, o que acabou por acelerar a crise com a recessão interna, o governo de Bush filho retoma a fórmula de Reagan e do pai, de acelerar o financiamento público ao setor manufatureiro, através das encomendas à indústria armamentista. Mas, fazer a guerra é também a face mais visível de uma forma predatória de expansão do capitalismo numa etapa em que a crise de demanda e a superprodução de manufaturados acabam por exigir a transformação de tudo em mercadoria, para tentar conter a tendência secular de queda da taxa de lucro. Por isso, não apenas petróleo, mas água, biodiversidade, genes, saúde, educação, tudo deve ser submetido à lógica do capital. Não haveria exagero em dizer que o desejo do capital é patentear o sol e o ar, para deles obter lucro. O grau de destrutividade do estágio atual deste sistema é com certeza inédito. A fase atual da expansão imperialista estaria sendo marcada, seguindo Iztván Mézáros, por um "Imperialismo global hegemônico, em que os Estados Unidos são a força dominante (...) que se tornou bem prenunciada com a eclosão da crise estrutural do sistema do capital - apesar de ter se consolidado pouco depois do final da Segunda Guerra Mundial - que trouxe o imperativo de construir uma estrutura de comando abrangente do capital sob um governo global presidido pelo país globalmente dominante." (O século XXI: socialismo ou barbárie?) Por isso também devemos atentar para a precariedade da ilusão de estabilidade sob a bandeira de um "governo global" norte-americano, num contexto em que a cada dia surgem novos “inimigos” (o Afeganistão, o Iraque, a Coréia do Norte, a China...). Esta é a razão de Mézáros acrescentar ao brado de Rosa Luxemburgo de "socialismo ou barbárie", a frase "barbárie se tivermos sorte", "no sentido de que o extermínio da humanidade é um elemento inerente ao curso do desenvolvimento destrutivo do capital. E o mundo dessa terceira possibilidade, além das alternativas de socialismo ou barbárie , só abrigaria baratas, que suportam níveis letais de radiação nuclear." Por isso, o mesmo Mézáros afirma que tal projeto depende de uma saída dos movimentos de massa da classe trabalhadora de sua fase defensiva atual, pois "somente uma alternativa radical ao modo estabelecido de controle da reprodução do metabolismo social pode oferecer uma saída da crise estrutural do capital".

Vivemos uma conjuntura em que alguns sinais de saída da defensiva dos movimentos de massa parecem estar se dando, mas com limites muito evidentes para que possamos apostar numa etapa eminente de ascensão das lutas sociais puxadas pelos trabalhadores em direção à ruptura socialista. É o caso dos movimentos de resistência à guerra imperialista, em seu caráter de libertação nacional, nos países ocupados, ou no conteúdo de solidariedade internacional, como nas manifestações contra a guerra na Europa. Mais próximas a nós, na América Latina, apresentam-se lutas que possuem forte dimensão anti-neoliberal e mesmo anti-capitalista, mas que não afirmam necessariamente a alternativa socialista e não se articulam no plano internacional, vide o caso Argentino no passado recente, ou mesmo no momento atual o que ocorre na Bolívia. Por outro lado, vivemos uma fase de aglutinações internacionais em torno de movimentos anti-globalização que, embora tendam progressivamente a incorporar bandeiras anti-imperialistas, como a condenação à guerra, não assumem programaticamente uma perspectiva anti-capitalistas. É o que vemos no Fórum Social Mundial. Trata-se, como dissemos, de movimentos fundamentais, mas ainda insuficientes para caracterizar uma virada do quadro internacional a favor do campo das lutas dos trabalhadores.





A opção neoliberal não é conjuntural, mas constitutiva da nova coalizão de classes

Vivemos uma situação paradoxal. As políticas neoliberais, que fazem parte da resposta do capital à sua crise estrutural, provocaram catástrofes e misérias que intensificaram o genocídio na África subsaariana, empurraram para a miséria milhões de novos trabalhadores na América Latina e nos países centrais, sem sequer atenuar a crise estrutural do capitalismo. Entretanto, conforme Perry Anderson, essas políticas seguem dominantes em toda a parte, inclusive nos governos social-democratas e em países autoproclamados comunistas, como a China. O governo Lula, “o governo da esperança”, pode ser uma alternativa ao neoliberalismo? Tudo indica que não. Por isso, a célebre indagação feita por Lênin há um século tem de ser feita em novas bases: o que fazer?

O governo Lula não é circunstancialmente neoliberal, como afirmam crer as principais correntes de esquerda do PT. É neoliberal porque a sua coalizão de classes não tem saída melhor. Os principais setores representados na nova coalizão de classes, a saber, o setor financeiro (Meirelles), o agrobusiness (Rodrigues) e commodities (Furlan), acrescidos de gestores buscados no pólo outrora antagonista, como os operadores dos fundos de pensão (muitos vindos da CUT e do PT) e, mais amplamente, do Estado (Articulação e oligarquias regionais a exemplo de Sarney, Barbalho e ACM) necessitam dessa política para sua reprodução.

O neoliberalismo do governo Lula não é um ‘raio em céu azul´ pois, há tempos, o PT e a Articulação da CUT vinham sinalizando sua conversão ao pensamento único. O agravante, lembra Chico de Oliveira, é que, no caso dos partidos social-democratas europeus, essa mudança levou mais de meio século enquanto, no PT, foi quase instantânea: tão logo os dominantes se viram sem meios de prosseguir no governo, em virtude da crise, a direção majoritária do PT aquiesceu com o transformismo. A Carta aos Brasileiros simboliza o novo momento. Desse modo, Lula e o PT não preservaram, sequer, alguma cultura pública e republicana. O ardor privatizante em todas as esferas do governo – da previdência e dos transgênicos, da Monsanto ao Brasil Alfabetizado - ilustra esta opção.

Qual é a aposta do núcleo dirigente, em especial da Articulação? Conforme os documentos da Fazenda, é possível compatibilizar emprego e crescimento com as políticas neoliberais, desde que: (a) o crescimento econômico do núcleo capitalista seja significativo; b) os investimentos diretos estrangeiros (IDE) sejam elevados; e c) os “Senhores do Mundo” sigam apoiando o governo. Se essas condições forem satisfeitas, haverá estabilidade cambial, redução dos juros e do estoque da dívida e, desse modo, o Estado terá recursos para promover o chamado “espetáculo do crescimento”.

Todas as previsões ufanistas do governo fracassaram, pois os pressupostos da tese são frágeis: a) nos termos de Robert Brenner, o crescimento econômico dos EUA é instável, advindo hoje do endividamento das famílias; b) os IDE estão muito abaixo do esperado: US$ 3,5 bilhões no primeiro semestre (muito abaixo dos US$ 9,6 bilhões do período em 2002), devendo alcançar menos da metade dos US$ 10 bilhões previstos pelo governo para 2003: recursos que não serão aplicados em investimentos produtivos, mas em diferenciais de juros, ações desvalorizadas e aquisições e fusões de empresas; e c) os Senhores do Mundo, FMI, Banco Mundial, G-7, a exemplo das juras de amor a Menem, têm-se mostrado volúveis em suas paixões.

A coalizão de classes que assimilou o PT não será capaz de cumprir as suas promessas. A história é pródiga em exemplos e as conseqüências das medidas de Lula para os trabalhadores já são insuportavelmente severas. O desmonte do serviço público, por meio do arrocho de verbas e salários e do ataque aos direitos trabalhistas, como a Reforma da Previdência, cria obstáculos ainda mais ásperos aos milhões de brasileiros que necessitam da escola, da saúde e das políticas públicas. A política econômica, ao beneficiar exclusivamente o núcleo sólido da coalizão de classes, elevou ainda mais o desemprego. De acordo com o Dieese/Seade, a taxa alcançou dramáticos 20% em junho último, a maior desde 1985. Dos 500 mil novos desempregados de 2003, 270 mil têm pelo menos 11 anos de escolaridade. A renda dos trabalhadores caiu 27% desde 99, sendo 13% nos últimos 12 meses.



As lutas de classes assumem novos desafios

Frente à coalizão dominante, potencialmente mais forte – pois reúne os setores mais internacionalizados do capital, as oligarquias regionais e operadores recrutados no seio das organizações das classes subalternas – é preciso inventar novas formas de organização da classe que vive de seu próprio trabalho. Não é possível subestimar a grande capacidade de governabilidade da coalizão dominante: os maiores empreendimentos da mídia apóiam decididamente o governo; as forças repressoras permanecem a postos; as políticas sociais para os miseráveis podem ter alguma efetividade aqui-e-ali; as lutas anti-capitalistas no seio da CUT serão sistematicamente combatidas por sua direção majoritária; a coerção econômica prosseguirá, por um bom tempo, a restringir a luta do MST contra a política geral de Lula da Silva; parte significativa dos intelectuais seguirá colocando os seus cérebros a serviço da nova ordem etc.

Entretanto, a opção neoliberal é agora ainda mais dura do que fora no primeiro mandato de FHC, pois não há margem para ampliar os modestíssimos dispositivos de inclusão social. O desemprego segue numa curva ascendente em um quadro de quase nulo crescimento econômico e de forte redução dos investimentos. Ademais, os melhores empregos, particularmente no setor industrial, desmoronam em sintonia com a condição de país em processo de desindustrialização, conforme o Relatório da UNCTAD de 2003. Nesse quadro, não está descartado o recrudescimento dos conflitos sociais, tendência já verificada neste ano, em particular nas lutas pela moradia, pela terra e pela reforma agrária e na grande greve dos servidores contra a reforma neoliberal da previdência. Um indicador importante, quase ocultado pela grande imprensa, veio da última pesquisa de popularidade de Lula, realizada pelo IBOPE: somente 52% voltariam a sufragar Lula presidente. Devemos avaliar tais potencialidades sem exageros, pois não é possível extrair daí a conclusão de que teremos de pronto um movimento anti-capitalista de massa, visto o caráter fragmentado e imediatista de muitos desses embates. No plano ideológico, não é possível negligenciar a eficácia da atuação da CUT e, sobretudo, do próprio PT na manutenção da ordem. Existem vínculos duradouros que não são fáceis de serem rompidos. Destarte, para avançar na discussão dos desafios que se colocam para a perspectiva de construção do novo partido, é preciso pensar a trajetória do PT e como esse partido pode ser hoje um instrumento decisivo da governabilidade do capital, iniciativa que terá o apoio dos “Novos Senhores do Mundo”.





A trajetória do PT

Embora setores significativos que estão dispostos a discutir a proposta do novo partido, organizados em correntes políticas ou não, já tenham se desligado da referência ao Partido dos Trabalhadores – há mais ou menos tempo -, é inegável que a experiência recente do PT ainda é o ponto de partida para avaliarmos como surgem hoje mais e mais militantes dispostos a discutir uma nova alternativa. Também é fundamental que avaliemos a trajetória do PT para que possamos dela tirar os ensinamentos necessários a um salto de qualidade no instrumento político que queremos construir.

Os que estudaram a trajetória da esquerda, em especial da social-democracia e dos partidos comunistas sob o stalinismo, costumam partir de algumas interpretações mais clássicas que podem servir como referência para o processo vivido pelo PT. Uma dessas interpretações é a de que os partidos social-democratas precisam fazer uma opção: ou mantêm sua base social original (na classe trabalhadora) e os seus programas originais que apontam para mudança social (o socialismo) e não conseguem aquilo que eles dizem querer, que é ganhar o poder através do voto, ou flexibilizam os seus programas, fazem alianças para além da sua base social e chegam ao poder através do voto. Só que ao chegar ao poder através do voto, através dessa decolagem eleitoral, eles já não têm mais o mesmo compromisso com a mudança que tinham antes. (Ver por exemplo as idéias de Adam Przeworski, no livro Capitalismo e social-democracia).

Isso é de certa forma o que ocorreu com o PT, embora o partido, até bem pouco tempo, recusasse o rótulo de social-democrata. Desde as primeiras eleições em que o partido tomou parte, em 1982, e principalmente após a campanha presidencial de Lula em 1989, levantaram-se vozes cada vez mais fortes no interior do PT, defendendo uma flexibilização da sua política de alianças e de seu programa para conquistar vitórias eleitorais. Nos anos 1990 essa foi a prioridade política do partido, que acabou por assumir uma estratégia centrada no marketing eleitoral no melhor estilo dos partidos de direita, como saltou aos olhos em 2002, com Duda Mendonça ocupando o lugar de Tzar da campanha. A opção do PT por aderir a essa estratégia política e não tentar outra via de mobilização da sua base social para o projeto político do partido indica que esse projeto passou a ser cada vez mais eleitoral, ou seja, a tentativa de mobilização que o PT faz de suas bases é uma mobilização de bases eleitorais e não mobilização de bases sociais para um projeto de mudança social. Não é mais um projeto de, nas eleições, mobilizar a sua base social para participar do processo com o seu projeto social; o que se apresenta para garantir votos é o que se acredita que possa conquistar eleitores e não um projeto que ao mesmo tempo seja educativo, conscientizador, mobilizador para a mudança.

Outra forma de interpretação clássica de transformações em partidos de esquerda é a que se centra na idéia da burocratização. Na medida em que os espaços institucionais vão sendo ocupados e que o próprio partido se transforma num partido grande, em que a cada mandato conquistado amplia-se também a cadeia de assessores ligados a esse mandato, de verbas públicas utilizadas, a ocupação do espaço institucional passa a ser uma questão de sobrevivência para aqueles que ali estão colocados e para todos que estão a reboque deles. Então, a estratégia política passa muito mais por ganhar a próxima eleição para continuar ocupando aqueles espaços do que pelos compromissos programáticos ou com as bases sociais. Essa tese da burocratização tem uma versão conservadora, centrada na teoria das elites, para estudar a social-democracia (Ver Robert Michels e sua Sociologia dos partidos políticos). Mas há também a versão de Leon Trotski para interpretar o caso soviético e dos partidos nele inspirados, que envolve idéias como a de uma “crise de direção” oriunda de um grupo dirigente do Estado ou do partido que se burocratizou e por isso rompeu com o projeto revolucionário original se transformando em gestor de um Estado ou de um partido burocrático (ver a esse respeito, entre outros textos de Trotski, A revolução traída). Tais idéias também ajudam a iluminar a questão do Partido dos Trabalhadores, bastando para constatá-lo analisar os números e perfil de participantes dos congressos e encontros do PT, que definem os rumos partidários, em que ao longo dos anos 1990, passaram a predominar os ocupantes de mandatos, cargos públicos nas administrações municipais, estaduais e assessorias parlamentares ou executivas, escasseando cada vez mais o percentual de militantes sem vínculo com a institucionalidade nos espaços de decisão e nas direções do partido.

Todas essas teses, porém, dão conta do perfil e das opções das direções, mas é preciso entender também como se explica a trajetória do PT, pelo vínculo de classe de origem do partido. O PT surgiu como um partido representativo das lutas da classe trabalhadora brasileira. E se, nos anos 1980, essas lutas viviam uma fase de ascensão e isso explica a diferença do PT em relação aos outros partidos social-democratas ou mesmo comunistas e socialistas do mundo ocidental na época; nos anos 1990, por uma série de fatores, essas lutas viveram um declínio. O fato de haver uma base social do PT mais fluida hoje, mais eleitoral do que social, somado ao fato de haver uma organização dirigente da base social de trabalhadores original do partido, como a Central Única dos Trabalhadores, que já fez opção pela “consertação social” (nome novo para a velha conciliação de classes), pela burocratização – num processo de fôlego um pouco mais longo –, nos ajuda também a entender o que aconteceu com o partido. Há um recuo das lutas da classe trabalhadora no Brasil que contribui como contexto, como moldura geral. para que avaliemos como o Partido dos Trabalhadores tomou o rumo que tomou.

No governo, tais contradições do PT tornaram-se apenas mais evidentes para setores mais amplos e a ruptura com o projeto original de sua formação ficou nítida demais para que dúvidas ainda possam ser levantadas sobre o fato de que o Partido dos Trabalhadores transformou-se em um partido da ordem, morrendo como alternativa política para a luta da classe trabalhadora pela emancipação social. As propostas de reforma até aqui apresentadas, retirando direitos dos trabalhadores, são o melhor exemplo disso. O PT surgiu com uma proposta de ser um partido de esquerda, com horizonte socialista, mas de “novo tipo”: um novo partido em relação à experiência brasileira, isto é, em relação ao PCB e às organizações de esquerda dos anos 60, e um novo partido em relação à experiência internacional. Nem partido stalinista, comunista típico, nem partido social-democrata.

Pode-se dizer que o PT exagerou na afirmação de sua novidade. Partidos surgidos do meio do movimento sindical, em um momento de ascensão das lutas dos trabalhadores, no quadro internacional há muitos. A história do Partido Trabalhista Inglês ou do Partido Social-Democrata alemão é uma história que tem muitos pontos de contato com a história do Partido dos Trabalhadores. Mesmo no Brasil, o ressurgimento do PCB na redemocratização de 1945 tem muitas semelhanças com o surgimento do PT e sua trajetória no início dos anos 80. Porém, havia sim certas diferenças: o PT buscou manter nas suas origens um vínculo com os movimentos sociais diferente daquele da “correia de transmissão” e buscou alicerçar-se em uma democracia interna, que teoricamente deveria alimentar-se da participação ativa dos militantes nos núcleos de base e espaços de decisão do partido.

O PT tinha um projeto de se distanciar do modelo do partido comunista e da social-democracia, anunciando um socialismo pouco definido, mas aos poucos isso se diluiu, só que de uma forma muito particular. O PT era diferente do ponto de vista internacional porque as lutas sociais dos trabalhadores no Brasil viviam uma fase ascendente que empurrava o partido para uma política mais ofensiva, no contexto do fim da ditadura militar, enquanto no plano internacional os partidos de base trabalhadora viviam uma fase de refluxo, tanto os partidos social-democratas quanto os partidos de origem comunista. Os partidos comunistas viveram a crise do “socialismo real” e a social-democracia viveu a ascensão do neoliberalismo, ao longo dos anos 1980. Com isso, esses partidos perderam o espaço político conquistado no pós-guerra. Naquela época, a principal especificidade do PT era essa e não um horizonte socialista pouco definido.

A situação atual é que os partidos social-democratas voltaram a encontrar algum espaço, na Europa em especial, se adaptando à perspectiva neoliberal e rompendo com o modelo de “Estado de bem-estar social”, com aquelas políticas públicas de universalização de direitos sociais e redistribuição mínima de rendas, que eles mesmos tinham protagonizado nas décadas anteriores. Quanto aos partidos comunistas, estes desapareceram ou se adaptaram à lógica da social-democracia. Em poucos casos temos resistências importantes de núcleos originados de partidos comunistas, como a Refundação Comunista italiana, mas em geral o que temos são pequenos agrupamentos. Com o governo Lula, ficou claro que o movimento feito pelo PT foi saltar do seu projeto original, que era socialista – embora esse socialismo fosse difuso, mal definido – para a linha que hoje tem a social-democracia da “terceira via” do novo trabalhismo inglês de Tony Blair, sem ter passado pela experiência de lutar pelo Estado de bem-estar social, calcado em políticas públicas redistributivas. Sendo assim, hoje o PT não apresenta nada de novo ou específico em relação aos partidos que estão colocados, nada de diferente em relação aos partidos que estão no poder ou que têm forte participação política no mundo ocidental.

Esse deslocamento à direita do PT foi facilitado porque, desde a sua origem, defendendo uma via alternativa para fugir do dogmatismo dos partidos comunistas tradicionais, acabou adotando aquela idéia de que ele era “partido movimento”, quer dizer, que se fazia na sua própria prática. “Qual o socialismo que o PT defende?” perguntavam algumas pessoas, e Lula respondia: “O socialismo que os trabalhadores brasileiros vão inventar.” Isso era bonito, uma proposta construída a partir dos próprios trabalhadores, mas também dizia muito pouco sobre qual era o projeto estratégico do partido. O PT, em vários momentos, fugiu a esse debate, sobre projeto estratégico, sobre qual era a natureza do próprio partido, facilitando os deslizamentos da direção, pois afinal de contas, se o PT é uma coisa que se constrói a partir do próprio movimento, os dirigentes podem dizer: “o movimento hoje nos levou para essas posições”, “somos os mesmos, só que a conjuntura mudou e embora tenhamos os mesmos princípios, temos que adequar as nossas idéias”. Embora fique claro para nós que não foi isso que aconteceu, essa é a justificativa do partido, e uma das formas de entender isso é a fuga do debate de concepção, que se manifesta em muitos momentos, em nome da idéia de que seria o movimento que daria a dimensão política fundamental do PT.

Tomando um exemplo de deslizamento mais sensível no debate atual, uma das características da proposta nova do PT era a ênfase na democracia interna. A democracia interna do PT significava, pelo menos, espaço para duas coisas: a organização pela base, os núcleos de filiados deveriam ter poder de decisão no partido; e o direito de tendência, o que também seria uma novidade em relação aos partidos da esquerda comunista tradicional, que viam sempre a tendência como uma fração, como uma ameaça.

Embora a discussão sobre “centralismo democrático” possua muitas variantes, a perspectiva leninista clássica sobre “centralismo democrático”, em teoria, é uma perspectiva que acentua a democracia interna, no sentido de que os espaços de discussão são espaços valorizados, as diretrizes políticas são construídas por debate e decisão coletiva para, depois de definidas, serem implementadas pela direção, coordenação efetiva do partido. Então todo o debate é feito e, quando se fecha posição, todos caminham juntos em relação às decisões coletivas, coordenados pela direção partidária. Mas na trajetória da esquerda tradicional foi comum relevar-se esse aspecto de debate democrático, através de um certo substitucionismo, quer dizer, após o momento em que as decisões são tomadas em congresso, quando a direção responde por encaminhar a execução dessas decisões, o centralismo que deveria se dar em relação à ação unificada de respeito à linha política, acabava por ser entendido como concentração de poderes na direção, que muitas vezes substituía a decisão coletiva pelas leituras que fazia da linha política, enquadrando a partir daí as dissidências à linha da direção, ainda que conformes às definições da linha política, como traições aos princípios centralistas. Por conta do balanço dessas experiências e pelo fato de incorporar em sua fundação grupamentos que tinham certa organicidade própria, o PT nunca se definiu como um partido de “centralismo democrático”.

Muito ao contrário, José Genoino por exemplo, quando era minoria no partido, fazia questão de ir aos jornais da grande imprensa e dizer: “Eu não concordo com o que foi aprovado”. Isto acontecia tanto quando era parte da minoria de esquerda (na fase do PRC), quando após 1989, passou de forma muito ligeira a ser minoria (ao menos nos primeiros anos a seguir) de direita no partido. A experiência do atual presidente do PT é a prova maior de que nunca existiu o “centralismo democrático”, nem existiram grandes problemas no PT em manifestação de divergência de opinião. Mas o que se observa em relação ao caso dos parlamentares hoje prestes a serem expulsos do PT é que se não há “centralismo democrático”, há o pior da tradição da esquerda ortodoxa do século XX, que é o expurgo, no estilo stalinista mesmo. A matriz formativa de muitos desses dirigentes do PT é uma matriz stalinista, não há nenhuma dúvida quanto a isso; o que espanta, é que eles exercitem no poder com tanta desenvoltura essa idéia de expurgo como saída para lidar com a posição minoritária do partido – como a dos parlamentares que insistem em votar conforme o horizonte das resoluções históricas do partido - anulando de vez qualquer ilusão de democracia interna.

Em síntese, o Partido dos Trabalhadores hoje já não busca mais uma base social da classe trabalhadora, mas sim uma base eleitoral que passe pela classe trabalhadora, mas não só por ela. É um partido que se afina com a linha da social-democracia européia,em sua fase de “terceira via”, ou seja, uma linha em que o passado de compromisso com a base social dos trabalhadores é para eles evocado como um elemento de confiança política, de respaldo histórico. Porém, na prática de governo, o que se tem é o sinal de pólo inverso, na busca da confiança da classe dominante e do “mercado” (rótulo para o sistema do capital em sua atual fase imperialista), através da adesão à idéia de que o se papel no poder é tocar a política no campo que o neoliberalismo definiu.



O Novo Partido

A partir da caracterização da conjuntura que explicita a necessidade e a possibilidade de construirmos um novo partido da esquerda socialista brasileira e de um balanço da trajetória do Partido dos Trabalhadores que possa contribuir para uma avaliação dos motivos que levaram e continuam levando setores organizados e milhares de militantes a romper com o PT, chegamos ao ponto para onde converge o debate e, por isso mesmo, o ponto em que as divergências emergem: a natureza e o caráter do novo partido ou, em outros termos, que outro partido pretendemos fundar? Evidentemente, o ponto de partida do debate são os grandes problemas que devemos enfrentar para construir o novo partido.

Considerando a diversidade dos setores que estão se propondo a forjar a nova organização, compreendemos que um primeiro passo é a definição de métodos e encaminhamentos que viabilizem a construção da nova organização. Não devemos apresentar definições prévias fechadas, o que não quer dizer que seja possível fugir das questões de conteúdo mais importantes. Passemos então aos desafios.



1) Construindo a unidade a partir das rupturas

O desafio maior que temos pela frente no processo de criação de um novo partido é manter a unidade dos setores que hoje discutem essa alternativa, respeitando as diversas temporalidades e experiências das rupturas com o Partido dos Trabalhadores. Será uma grande perda, não apenas em quantitativo de militantes, mas em termos de qualidade da discussão, se não conseguirmos unificar neste processo as correntes nacionais organizadas que estão em processo de ruptura/expulsão com o PT (como o MES e a CST), as correntes que não possuem a mesma visibilidade, por não estarem representadas no parlamento, mas que possuem enraizamento em certos setores da classe ou em certas regiões e aqueles setores organizados a mais tempo fora do PT, mas que se dispõem a construir uma organização superior, como é o caso do PSTU. A perda deste referencial unificador pode levar-nos à triste situação de confirmação, no interior da consciência da militância, da visão de senso comum de que quanto mais à esquerda no espectro das forças políticas estão determinadas organizações e militantes, mais fragmentação encontramos.

A fratura na unidade dessas forças seria um péssimo patamar para iniciarmos um processo, em especial porque tenderia a afastar aquele amplo conjunto de militantes que, decepcionados com a trajetória do PT, não apostariam numa alternativa que fosse marcada desde a origem pela incapacidade de construção unitária, entre setores que, no dia-a-dia do movimento sindical e popular, são identificados como verdadeiros companheiros de luta, pois não abandonaram a combatividade classista. Tal disposição para a construção unitária exigirá das organizações um elevado grau de responsabilidade política, responsabilidade diretamente proporcional às dimensões de cada fração.

O objetivo da unidade, porém, não dependerá apenas da boa vontade das correntes organizadas, dos seus parlamentares e das direções. Ao contrário, a unidade somente será efetiva e concreta se formos capazes de envolver no processo de construção do novo partido toda a militância dos movimentos sociais que não se referencia nas organizações hoje existentes, embora já tenha vivido ou esteja vivendo a ruptura com o PT. Esse envolvimento exigirá das organizações, além da responsabilidade acima comentada, a sabedoria do reconhecimento de que nenhuma das organizações hoje existentes é capaz de, por si só, aglutinar essa militância em torno de um novo partido. Não haverá novo partido se ele for projetado apenas como ampliação das organizações hoje existentes por adesão de outros militantes. Trata-se realmente de um desafio de construção de algo novo.

Por isso, desde os primeiros debates dos quais participamos, temos insistido que o novo partido não surgirá, ou não surgirá com capacidade de responder aos desafios que lhe são colocados, se for construído com base simplesmente em acordos de cúpulas. A realização deste seminário de 11 de outubro representa um triplo avanço no sentido do que temos defendido: 1o. Trata-se de uma construção unitária dos diversos segmentos que estão elaborando politicamente sobre o novo partido; 2o. Reuniu desde o primeiro momento de sua discussão, militantes dos movimentos sociais que não estão identificados com nenhuma das organizações hoje existentes, mas que estão investindo na discussão do novo partido; 3o. Foi projetado com uma metodologia de envolver a militância nas discussões, através dos Grupos de Trabalho e plenárias, de forma a destacar que, para enfrentarmos os desafios que nos são lançados, será necessário que, desde a origem, os protagonistas do novo partido sejam as bases militantes nas principais lutas sociais deste país.

Assim, defendemos que todos os desdobramentos deste seminário e os diversos processos que convergem para a criação do novo partido, sejam pautados pelo princípio da construção pela base, a partir do protagonismo dos militantes. Insistimos que o método de construção será decisivo para a representatividade, a legitimidade e a força da nova organização.

2) O segundo desafio que devemos enfrentar é o da concepção estratégica

Partimos das convergências: estamos todos envolvidos nas mesmas lutas centrais da conjuntura, porque enxergamos a realidade a partir da ótica das classes e da luta de classes e porque tomamos partido da classe trabalhadora, ou seja, compartilhamos de uma perspectiva classista como referência para o novo partido. Assumir o ponto de vista classista, numa sociedade em que a classe trabalhadora é explorada pelo capital, é defender a superação da sociedade de classes e, portanto, defender o socialismo.

Se temos convergência em defender um partido com referencial classista e horizonte socialista, para atuar nas principais lutas sociais da atualidade em favor da transformação social, nem sempre as formas de atuação para alcançar tal objetivo são as mesmas, nem na definição de quem serão os protagonistas dessa transformação.

Queremos defender aqui que não se chega ao socialismo pela via do acúmulo eleitoral. Essa é uma constatação centenária, que os setores mais conseqüentes do movimento socialista internacional fizeram ainda no início do século XX, no debate que colocou um fim a II Internacional. A proposta socialista requer a ruptura com o poder econômico do capital que se reproduz por meio da exploração do trabalhador e, por conseguinte, não será construída sem rupturas políticas e sociais. E a dimensão atual do domínio do capital, que mercantilizou não apenas os produtos do trabalho humano, avançando a ponto de converter a própria natureza a condição de mercadoria (das águas aos genes dos seres vivos), exigirá rupturas ainda mais profundas do que aquelas previstas pelos fundadores do socialismo.

O exame da história dos partidos de esquerda nos permite extrair várias lições. A primeira, característica da experiência petista de muita discussão e de parca definição estratégica, é a forma como se tornou etérea a perspectiva socialista. Deve ser destacado que, do ponto de vista da classe trabalhadora, a democracia representativa burguesa é hoje o melhor espaço para acumularmos e atuarmos em favor do projeto de transformação (e sabemos quanto foi importante superar ditaduras, em um país que viveu cerca de 50 anos dos seus últimos 100 sob regimes ditatoriais). Porém, chamamos tal democracia de burguesa, justamente porque ela não comporta efetivamente a idéia do governo pelo povo, que teria como conseqüência a possibilidade de um governo contra o capital. Não será através dos processos eleitorais que chegaremos ao poder, no sentido de conquistarmos as condições para o início da transformação socialista, embora siga sendo importante ocupar os espaços parlamentares e, particularmente, o debate eleitoral.

Em segundo lugar, no quadro atual da luta de classes, não será possível defender a ruptura socialista com conseqüência sem assumir que o protagonismo da mudança cabe à classe dos que vivem do próprio trabalho, aos trabalhadores, e não ao partido, que deve ser o seu instrumento, não seu motor. Definir o melhor instrumento partidário para desafios dessa magnitude significa, antes de mais nada, ter clareza do grau de heterogeneidade atual da classe trabalhadora, de forma a construir os mecanismos através dos quais ela possa atuar de forma unitária e consciente pela transformação. Faz-se necessário resgatar o sentido revolucionário da expressão “construir a hegemonia da classe trabalhadora”, tão corrompida pela proposital confusão entre hegemonia e vitórias eleitorais que a experiência petista nos quis impor.

Defendemos, portanto, como ponto de partida para um debate que exigirá aprofundamento de todos nós, que o novo partido, com referencial classista, horizonte socialista, pautado pela concepção de que o socialismo só se alcança pela ruptura com o domínio do capital, tenha como centro da sua atuação as lutas sociais que confrontam com o capital em suas várias dimensões, procurando conferir-lhes unidade de classe e um projeto estratégico de transformação. Um partido constituído pelos que estão inseridos nessas lutas e se dispõem a imprimir-lhes uma dimensão transformadora. Para nós, tal desafio não será conquistado com uma organização que se baste por aglutinar quadros revolucionários bem formados, capazes de aguardar o melhor momento revolucionário para guiar a classe. Outra perspectiva a combater é a crença de que o caminho para o socialismo passa pela conversão da base em apoio eleitoral de massa.

3) Um terceiro desafio diz respeito ao modo de organização e funcionamento do novo partido.

A experiência histórica de longo termo dos partidos socialistas e a trajetória recente do PT devem nos servir de referencial para pensar o tamanho das dificuldades que temos pela frente quando tratamos do funcionamento partidário. A deformação stalinista impôs aos partidos de tradição comunista uma lógica de autocracia do núcleo dirigente que provocou o rompimento de variados segmentos da esquerda socialista com a idéia do partido único. O substitucionismo da direção que se impõe às bases partidárias, reivindicando o centralismo para reprimir e rotular de traição a divergência interna, secundarizando o aspecto democrático na definição da linha política da organização, gerou posicionamentos críticos como os presentes na origem do PT que enfatizaram a necessidade de uma organização partidária com espaço para divergências (e direito de tendência) e garantia de democracia interna (respaldada por uma política de nucleação e de construção coletiva da linha partidária em encontros e congressos representativos, mecanismos de escolha de direções e de candidatos a partir das bases, etc.). Porém, como já comentamos, o que se viu no PT com o decorrer dos anos foi uma prática de tolerar o discurso divergente da linha construída coletivamente, quando isto interessava à direção e de aplicação do mais rígido centralismo autoritário para punir os divergentes da direção, ainda que coerentes com as definições partidárias coletivamente construídas. Por outro lado, os núcleos e as instâncias de construção coletiva da política partidária foram cada vez mais abandonados.

Não nos basta a simples afirmação do princípio tradicional do centralismo democrático, pois que temos que enfrentar o debate sobre as tragédias que sua aplicação gerou em diversos momentos e circunstâncias. Também não nos satisfará a forma tendenciosa como a liberdade de manifestação de divergências de opinião foi manipulada pelo PT. O desafio dos que constroem o novo partido é combinar o mais absoluto respeito pelos princípios de construção democrática interna da linha política da organização – exercício fundamental para a construção da democracia dos trabalhadores contra o domínio do capital – com a ação efetivamente unitária em torno dessa linha política nas lutas da classe trabalhadora.

Na definição dos mecanismos que garantam tal funcionamento partidário, devemos começar, desde já, a exercitar a prática da construção democrática pela base. Por isso insistimos que, como em todos os outros desafios aqui listados, e em muitos outros que temos pela frente, o método democrático de constituição do partido a partir do debate e posicionamento da base militante será decisivo para o perfil que ele terá.

4) O quarto desafio é o da definição do caráter do internacionalismo necessário à nova organização.

É possível constatar que a conjuntura atual difere da de alguns anos atrás, pelo pipocar de lutas sociais de grandes dimensões em diversas regiões do globo e em particular na América Latina. São lutas, entretanto, como já sinalizamos, que possuem forte dimensão anti-neoliberal e mesmo anti-capitalista, mas que não afirmam necessariamente a alternativa socialista e não se articulam no plano internacional. Por outro lado, vivemos uma fase de aglutinações internacionais em torno de bandeiras e movimentos anti-globalização (embora nem sempre assumidamente anti-imperialistas e, portanto, anti-capitalistas), como as que se materializam no Fórum Social Mundial e na sua bandeira de que “Um outro mundo é possível”. Para nós, tal bandeira precisa ser melhor definida, pois trata-se de um novo mundo, socialista, que não só é possível como necessário e para cuja construção, o ator fundamental continua sendo a classe trabalhadora. Essa definição, pela qual devemos trabalhar, não significa, no entanto, que possamos desprezar o potencial desse nível de articulação internacional.

Por outro lado, é necessário reconhecer que as diversas correntes que se dispõem hoje a construir um novo partido possuem vínculos e/ou referência política em organizações internacionais. Muitas delas, inclusive, oriundas de cisões internas a troncos de origem comum do movimento socialista internacional, o que obviamente gera dificuldades e problemas de confiança mútua. Um desafio do novo partido será superar tais dificuldades, respeitando os vínculos e referências políticas internacionais hoje existentes, o que exigirá das correntes organizadas a responsabilidade de não procurar impor suas referências sobre o conjunto da nova organização, da mesma forma que exigirá do conjunto do partido o desafio de uma prática internacionalista que procure garantir o mais elevado grau possível de articulação e a maior coerência possível na definição estratégica de todas as lutas internacionais das quais participaremos ou com as quais seremos solidários.

5) O quinto desafio é a relação com os movimentos sociais.

Não será possível, como já insistimos aqui em vários momentos, construir o novo partido sem partir das bases militantes que hoje efetivamente enfrentam o capital e o governo nas lutas sociais. Para tanto, o processo de construção partidária deverá envolver a todos os segmentos que nessas lutas chegam à conclusão de que é necessário construir uma alternativa organizativa superior. Mas, isso significa, também, que será necessário aprofundar o debate sobre a relação do partido com os movimentos sociais, superando a experiência recente de um PT que buscou romper com os compromissos históricos das bases sociais que o constituíram, mas insiste em apresentar-se como referência para tentar sustentar a partir dessas bases sociais uma base eleitoral para seu projeto de ocupação do governo.

Para tanto, o novo partido deverá apresentar-se sempre como parte das lutas sociais, mas terá que encontrar os mecanismos adequados para evitar que seu objetivo de conferir uma direção classista e socialista (nos termos aqui definidos) para essas lutas seja confundido com qualquer perspectiva de subordinação dos movimentos sociais aos ditames partidários, respeitando a autonomia própria a esses movimentos, raiz de sua força e representatividade.

6) O Programa

Por fim, ao menos entre os pontos que aqui podemos abordar, é necessário incluir entre os nossos desafios o da construção do programa para apresentar à classe trabalhadora como forma de enfrentar a conjuntura, coerentemente com o horizonte de transformação socialista que defendemos.

Há razoável acúmulo em torno de pontos comuns a uma pauta programática mínima pela qual possamos pautar nossa intervenção desde já, combinando a perspectiva do confronto à lógica capitalista em sua fase de reestruturação produtiva neoliberal e em seu desenho imperialista atual, com as bandeiras concretas que possam mobilizar a classe trabalhadora para as lutas que traduzam esse confronto. Aí se inscrevem: a ruptura com o FMI, com as negociações da ALCA e o não pagamento da dívida externa; a revisão das privatizações e da abertura de setores estratégicos para o capital internacional; a redução da jornada de trabalho sem redução de salários; a garantia e ampliação dos direitos trabalhistas hoje existentes, revisando as reformas que retiraram direitos; programas de ações inclusivas universalizantes, para garantirem a superação das condições sub-humanas em que vivem os (as) dezenas de milhões de brasileiros (as) miseráveis, como a criação de frentes de emprego formal em obras públicas, como saneamento e construção de moradias (atacando a questão do emprego, da saúde coletiva e da moradia); e a reforma agrária sobre controle dos trabalhadores, combatendo o processo de criminalização da luta pela terra no Brasil.

O aprofundamento da discussão de programa, como os demais desafios aqui listados dependerão, insistimos mais uma vez, da nossa capacidade de ampliar a experiência atual em direção a um processo consistente de envolvimento da militância e construção pela base do novo partido.



Para tanto, indicamos os seguintes encaminhamentos, que não são formulações apenas nossas, pois apoiamos os pontos levantados até aqui nas discussões preparatórias deste seminário entre os diversos segmentos que se propuseram a organizá-lo:



1) Socialização da experiência e dos debates do seminário de 11 de outubro de 2003, através da divulgação de um relatório com os principais pontos discutidos e eventuais encaminhamentos, em forma impressa e através de um sítio a ser criado na internet,que abriria espaço também para a divulgação de elaborações de correntes ou militantes interessados na discussão e para a aglutinação de um maior número de pessoas de todo o país em torno das propostas em discussão;

2) Intervenções comuns nas campanhas e lutas da conjuntura- As correntes e militantes participantes do seminário devem mobilizar-se para intervir conjuntamente nas seguintes frentes:

a) calendário de lutas próximas, como: manifestação pelo passe livre dia 10 em Niterói; manifestação contra o descalabro educacional do governo estadual (contratação de professores concursados, fim das fusões de turmas, etc.), dia 14, no Palácio; manifestações no dia nacional da consciência negra (20/11); e tantas outras indicadas pelos movimentos sociais;

b) participação nas campanhas nacionais, entre as quais: pela libertação dos presos políticos da luta pela terra; não pagamento da dívida externa; contra a ALCA; contra os transgênicos; além das campanhas de âmbito regional;

3) Desdobramentos no plano estadual do seminário:

a) realização de uma reunião de avaliação com os setores que organizaram o seminário, em data próxima;

b) realização de debate com os setores que organizaram o seminário, em outras cidades, a começar por Niterói;

d) seminários temáticos sobre alguns dos temas que serão abordados no seminário (como concepções de socialismo; partidos socialistas; políticas setoriais, etc.), de forma a manter o debate e ampliar o envolvimento dos participantes no Rio de Janeiro;

4) Indicações de desdobramentos nacionais do seminário:

a) repetição de seminários no mesmo modelo (envolvendo as correntes nacionalmente estruturadas que discutem o novo partido e militantes dos movimentos sociais; e com modelo de grupos de trabalho/plenária) nos outros estados;

b) realização de uma reunião sobre novo partido na ocasião do Fórum Social Brasileiro, em Belo Horizonte (1a. quinzena de novembro);

c) realização de um encontro nacional, nos primeiros meses de 2004, para iniciar o processo de formação do novo partido (a ser encaminhado à reunião de BH);



É importante ressaltar que todas as indicações no plano nacional dependem de fóruns mais amplos do que este seminário de 11/10, que embora possa contar com participações de outros estados, teve uma convocação local, para ganharem a legitimidade necessária. Daí a importância da realização de uma reunião com caráter nacional, na oportunidade aberta pelo Fórum Social Brasileiro. Também queremos destacar que nenhuma dessas propostas tem a intenção de fechar questão em torno de quem está dentro ou quem está fora da construção do partido, ao menos nessa primeira etapa. Defendemos, por fim, que o calendário das discussões obedecerá ao ritmo imposto pelo movimento, não devendo se submeter a datas fechadas por opções de determinados setores que participam da construção, nem a calendários institucionais.