Novidade que permanece novidade – Parte 2
Por Micheliny Verunschk
O cotidiano sagrado da poética de Wilson Nanini
Conheci a poesia de Wilson Nanini nesse atropelado 2008. E posso dizer, sem sombra de dúvida, foi uma das melhores surpresas do ano. Talvez você não o conheça, pois como ele mesmo se intitula é “um poeta em fase de berçário”. Entretanto, quem já nasce assim, escrevendo como mestre, não precisa de adjetivos que o qualifiquem.
Sua poética oscila entre a delicadeza e a crueza. E ele maneja a palavra como Manolete toureava. Manolete (1917-1947) é aquele toureiro espanhol convertido em lenda, ao qual o poeta João Cabral, no poema Alguns Toureiros, transformou em metáfora para poetas precisos, elegantes e certeiros. E assim é que Nanini, brinca/luta com a palavra, conquista-a, desmembra-a, torce e retorce cada vocábulo como que para alcançar um céu inatingível. Tem a mão contida, não “poetiza o poema”. E para não fugir da tauromaquia, cabe ilustrar essa passagem com seu poema Boi:
I
Apenas a metafísica
de nossos mitos
explica-nos
– enquanto o boi ergue a cauda
e produz matéria
II
Solene,
com mãos transfiguradas,
afago na
(dele) face minha hoje
escassa identidade.
III
No meio-dia sem álibi...
Na meia-noite sem alento...
O boi (peso, pêlo e poesia
isenta) se indifere pois
intui que plenitude é
– rente ao prazer manufaturado –
deitar-se entre flores
na relva úmida
ao relento
e lamber apenas
as próprias narinas.
Sobre o desejo de alcançar o que não se alcança, vale dizer que seus poemas, quase que invariavelmente, são perpassados pelo Sagrado, um sentimento de transcendência que trafega desde o cotidiano mais mundano até os ideais mais elevados. E mais, costura mundo e espírito com linha forte, procurando tornar um e outro a mesma coisa, numa tentativa de superação da dicotomia corpo e alma que, por um triz, não se efetiva (daí, talvez a sua graça). Um poema exemplar do que descrevo, é Oh, São José!(por sua esposa casta) que transcrevo a seguir:
Perdoai-nos
o espelho
sem reflexo
o homicida (santo) em meu ventre
prestes
Perdoai-nos
o vôo
sem perícia
a nudez
sem delícia
Construído ao modo de uma prece, o poema dialoga, ao mesmo tempo, com a tradição cristã e com um dos mitos universais mais interessantes do ponto de vista do Sagrado, o mito do vampiro. No poema, o Cristo e o Drácula coexistem em seu desejo de eternidade e até na negação do prazer. Dirigido a São José por meio da voz poética da Virgem Maria, o poema se reporta à humanidade como se ambos, Cristo e Drácula, se penitenciassem pelas duras exigências e cobranças do Eterno. Essa trindade obscura, formada por Maria/Cristo/Drácula, ainda que peça perdão, tem a imagem do humano subjugada a seus pés.
Essa mesma imagem de subjugação, vamos encontrar em outro poema, chamado, sintomaticamente, Procissão:
Murmuro ladainhas
de neblina, enquanto um rio
de velas sobre paralelepípedos,
lento, segue esculpindo
rostos agônicos na penumbra.
Odor de incenso se me torna
alma além da que dentro trago
inata.
As rezas do padre,
pelas beatas (traídas) repetidas,
conclamam um cataclismo.
Tanto que se dá então
um reabrir, do deus menino,
as cinco chagas cicatrizadas.
E esse sangue escorrido
de que se esperava coagular toda a maldade
– tinta-vinho então que perdeu o dom –
tem por fim
afogar toda a humanidade.
O poema remete à ondulação, sensação que é construída por meio de imagens fortes e complementares, “o rio de velas”, “o sangue escorrido”, e, desse modo, não é demais dizer que remete também à serpente, ao Leviatã relatado no livro de Jó, monstro da água que ao menor movimento acabaria por “afogar toda a humanidade”. E mais uma vez podemos nos referir a um duplo divino/demoníaco na figura do deus menino/Leviatã. Nesse poema, ecoa algo do William Blake de O Casamento do Céu e do Inferno, na passagem em que surge o Leviatã, seja pelo duo fogo e sangue (comum aos dois escritos), seja pela arquitetura de uma cena cataclismática em andamento lento – o que faz da poesia de Nanini também uma poesia de extremo apelo visual, arriscando até que há um diálogo intenso com o cinema expressionista alemão.
Sobre esta, digamos, filiação expressionista de Nanini, um pequeno poema parece falar mais que mil palavras. Trata-se de Fantasma, no qual as fronteiras entre o mundo objetivo e subjetivo se diluem sem deixar espaço à razão:
Fui dormir carne (dor
e delícia) acordei
névoa (noite onírica).
Wilson Nanini é mineiro de Belo Horizonte e tem um livro, ainda inédito, Quebranto, relances e abismos ao relento. Para quem quiser conhecer melhor sua poesia, indico o blog homônimo ao livro no endereço http://wilsonnanini.blogspot.com/.
Micheliny Verunschk nasceu em Arcoverde e vive, atualmente, em Recife. Lançou Geografia Íntima do Deserto, Landy, 2003. Mantém o blog http://www.ovelhapop.blogspot.com/
Creative Commons License
Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
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sexta-feira, 16 de abril de 2010
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
do blog Ovelha Pop
Conheci os poemas da Micheliny, se não me engano, no Suplemento Literário de Minas Gerais. Gostei demais. Agora encontrei o blog dela, graças ao blog do Wilson Nanini. Aí vai um "novilho dela, retirado do Ovelha Pop:
O Espelho de Borges
Em uma jaula de vidro
repousa um homem
que não vê,
mas é visto.
O observam
as coisas inanimadas,
as trevas
a os móbiles
de onde pendem
transluminosas
palavras.
O trem
envolto na bruma azul
do calendário
confunde-se com o homem,
seu sono de mármore,
seu hálito.
Confunde-se com o homem
até a palavra em negro
Fevereiro
o musgo dos números
a pedra dos domingos
em vermelho.
Confunde-se com o homem
tudo o que não vê,
mas o cerca,
o que de fora da moldura
respira e observa.
(Micheliny Verunschk, in: Geografia Íntima do Deserto, Landy, 2003)
ovelhapop.blogspot.com
O Espelho de Borges
Em uma jaula de vidro
repousa um homem
que não vê,
mas é visto.
O observam
as coisas inanimadas,
as trevas
a os móbiles
de onde pendem
transluminosas
palavras.
O trem
envolto na bruma azul
do calendário
confunde-se com o homem,
seu sono de mármore,
seu hálito.
Confunde-se com o homem
até a palavra em negro
Fevereiro
o musgo dos números
a pedra dos domingos
em vermelho.
Confunde-se com o homem
tudo o que não vê,
mas o cerca,
o que de fora da moldura
respira e observa.
(Micheliny Verunschk, in: Geografia Íntima do Deserto, Landy, 2003)
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