Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
sexta-feira, 15 de maio de 2009
Carmen Miranda e Wittgenstein
Mas já aproximei Fidel de Cristiane F e achei direita e esquerda em Se eu fosse você II.
Agora (somente nessa postagem) aproximo dois antípodas que trabalham com teatro: Rodrigo Contrera e Maria Mariana.
Maria Mariana é atriz, escritora e mãe de quatro filhos:
http://confissoes10anosdepois.blogspot.com/
Eu entendo perfeitamente a volúpia de Maria Mariana de ser mãe: se minha memória não falha, em Confissões de Adolescente, a peça, a parte mais tensa e engraçada (segundo quem viu na época) era quando ela falava de seus abortos (foram três ou quatro?).
Já Rodrigo Contrera é casado e não tem filho algum. Há muito ele debate com a esposa se devem ter filhos. Ele fez um blog para a peça dele, Somente uma pequena prova de amor, apresentada ano passado. Confiram o blog dele e o da peça:
comentariosdocontrera.blogspot.com
somenteumapequenaprovadeamor.blogspot.com
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Blognovela Penetrália, Capítulo 5
Blognovela Penetrália, capítulo 5: O PONTO G, DE GERALD
(Lúcio recolhe todos os bonecos e recolhe-os dentro de sacos pretos de plástico, com destino ao lixo. Recolhe também os restos da Talk-box de Marcos Xavier. Ele está com um rosto sério, concentrado. Ele recolhe do lixo folhas soltas, com anotações de falas de um amigo como a que fechou o capítulo acima).
Francinny Chequer: Oi, eu queria dar um conto de Poe para o Corvo, você tem? Aliás, quem dirige essa blognovela, Gerald Thomas?
Lúcio (deixando os sacos plásticos a um canto e voltando-se para ela): Não, não tem diretor não. É um processo sem sujeito. Ela seria bem melhor se fosse dirigida pelo Gerald! Mas aqui cada um chega e se dirige. O blog é self-service. Aliás, soube que o grupo teatral dele abandonou-o em Trinidad e Tobago. Depois disso, ele despediu-se à
(De dentro de lixo, o boneco do Érico continua falando): Sampa de privada, bad trip...fumaça, poluição saindo da cuca do Lobo Prosa Sem Prozac...Seres humanos transformados em bonecos grotescos, estufados, quase informes, maquiados exageradamente, como que na antecipação de um solene funeral...Até mesmo seus olhos haviam sido substituídos por olhos de vidro, como se as vítimas fossem ursos pardos empalhados em um museu de história natural... O apelido medonho do assassino taxidermista invisível, “Assassino do Cofrinho de Porco”, surgiu com a vítima seguinte, um mês depois do segundo crime, quando o padrão das atrocidades se cristalizara; uma piada perversa que, de certa forma...Até te exclur do meu Orkut, Lúcio...
Lúcio (apertando o saco de lixo, voltando a sapatear): agora chega! Temos visita em casa!
Francinny: O que aconteceu?
Lúcio (sapateando, nervoso): Nada, nada, é só lixo, lixo. Velhos bonecos.
(O boneco de Érico): Gostaria de ensaiar, nessa pequena preleção, uma resposta às críticas que mentes obtusas e preconceituosas têm endereçado espalhafatosamente à minha pessoa. Notem bem: esses falastrões microcéfalos têm atacado antes a mim do que a minha obra, o que, de fato, comprova sua total incompetência argumentativa. Criticam-me por eu ser um cão. De fato, eu o sou...
Lúcio (dando uma vassourada no saco de lixo): Então, se é, pare de latir para a moça aqui!
(Francinny, no entanto, foi procurar um livro de Poe. Enquanto isso, entram em cena os personagens da propaganda do governo federal, mais Laerte Braga, Rio Maynart, Sandra, Guzik e Contrera, todos se limpando da lama que entrou no escritório):
Mário (personagem que tem uma abelha no ouvido): Me arruma um cigarro, porra!
João Paulo (chorando ao ouvir o celular): Estou irado com o governo do PT. Arrependi-me de ter votado em Lula, deveria ter votado no PSTU e não dado carta branca para o Lula fazer a política herdada de FHC. Rompi totalmente, rompi com tudo. Lula para mim é um ex-operário, atual burguês com mentalidade de novo rico mesmo, emergente. Não é à toa que Vera Loyola deu o colar de sua cachorra para o fome zero. Sua ascensão não quer dizer que o sistema de castas implodiu. Não. O sistema de classes continua, mas Lula o ignora, imerso em sua incompetência histórica e intelectual. Lula ignora que existem as perdas internacionais, está cego para o imperialismo no momento em que ele se faz mais claro. O que se pode esperar de alguém que autografa cartazes de protesto contra si mesmo e frangos de borracha? É o Mr. Magoo da esquerda. Quem dera essa falsa esquerda pelega ficasse cinqüenta anos fora do poder e em seu lugar nascesse uma esquerda trabalhista, nacionalista, intelectualizada, literária, varguista! (Chuif!) A invasão do Iraque foi um lance colonialista estilo século XIX. O motor foi o desejo do capital financeiro de se expandir, tendo como molas principais as empresas petrolíferas interessadas no butim. Com Saddam, nacionalista panarabista e nasserista, defensor da causa palestina, autoritário e guerreiro que fosse, as riquezas do Iraque permaneciam no país. Agora serão exportadas via remessa de lucro das multinacionais. Mas não tem grilo. Teremos mais quatro anos de paz e amor, dando vivas ao presidente da Volkswagen, não é bicho? Só que se depender de mim, vou lutar, protestar, criticar. Não vou deixar barato. E não me furto nem de criticar o PSTU, que lançou como candidato o repetitivo Zé Maria, um candidato com o perfil do Lula antigamente, no começo dos anos 80. Sabiam que Lênin detestava sindicalismo? O PT, já disse antes, é leninista sem Lênin. Eles fazem centralismo democrático, impedindo que militantes discordem da linha do comitê central, mas já não têm nada da capacidade teórica e prática do Lênin. O PT ficou com os defeitos do leninismo e sem as qualidades (chuif!). E outra. Zé Dirceu é um autoritário, equivocado desde sempre. No movimento estudantil de onde ele saiu acusavam Prestes e o PC de terem sido dos culpados pelo golpe de 64, atacavam Jango e rejeitavam a Frente Ampla, única possibilidade real de restaurar o poder civil no pós-64. Eles foram radicais e bem mais porraloucas que a Heloísa Helena, que é uma figura que só tenta manter uma coerência mínima para não se perder na geléia geral. Além do mais, Dirceu já está escolado nisso de ter duas caras, e isso seu auto-exílio já mostrou. Ele é uma das figuras de proa de um governo que também veio para acabar com a Era Vargas (chuif, chuif!).
Laerte Braga: Vargas, Vargas não. Ele foi o pai dos pobres e a mãe dos ricos. Concordo com quase tudo o que você disse, tá certo? Mas aqui em Juiz de Fora o PSOL está próximo do PTB. Existe um golpe em marcha contra Lula. Você precisa ser menos radical, olhar a correlação de forças. Precisamos criar as condições para fazer essas reivindicações.
O HEAUTONTIMOROUMENOS (um estranho fantasma que entra em cena, aparentemente saído dos bonecos dos sapatetas): Sou fantasma de mim sentado
No semblante sangüíneo que mostro,
Assusta-me passos postos
Ecoando horas de si.
Sinto-me assombrado de calma
De ser tantos e nenhum agora,
Empresto às almas que imploram
Longas asas de moscas mortas.
Decomponho a música posta
Em ossos que ao fim da festa
Sentirei talhados profundos, elefantes.
Mau Fonseca: Cá vim, em crises alérrgicas e renites e o diabo. Fui ler outros capitulos…Imaginei essa blognovela num palco, em dado momento juro que imaginei que Gerald faria uma releitura de Da Vinci -
Fantasma de Oswald de Andrade: vomite a própria cabeça! pense em raul! coma-a e vomite-a! seja realmente antropofágico! coma a si mesmo! e vomite-se!
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
Blognovela Penetrália: Capítulo 4
Capítulo 4: ANGELS IN AMERICA REZANDO CONTRA A CRUZ DO CRUZ & SOUSA
(Os bonecos dos sarapatetas e mais alguns participantes da blognovela flutuam em meio à lama. A Cruz do Cruz e Sousa parece muito à vontade naquela sala, na verdade o escritório de Lúcio, que tornou-se agora um mar de lama).
Lúcio (agora nadando, ao invés de sapatear, consegue acionar o boneco do Érico, que diz, com voz estranhamente mecânica): Você comprime seu abdômen contra a borda da mesa de escritório. Aspira o ar insalubre que nada lhe diz, graças à proteção de sua sinusite. Ajeita os óculos sobre as orelhas, as lentes refletindo o tumulto de pontos luminosos no enxame digital. Uma tomada liga sua espinha à caixa de abelhas do microcomputador: o choque, como uma chibatada seguida de um golpe de água fria, indica-lhe que o expediente se inicia.
(Fazendo o que o boneco lhe diz, Lúcio consegue abrir um ralo por onde sai a maior parte da lama).
Lúcio (sentado, segurando os pés, com a roupa suja): a solução para a Cruz do Cruz e Sousa é só uma: Elvis. E coloca uma gravação do roqueiro e crítico Sergei Chiodi: Os críticos nunca estiveram ao lado de Elvis Presley. Essa afirmação jogada assim ao vácuo das indagações pode parecer sem propósito. Será? Talvez o grande problema Elvis x críticos seja simplesmente o fato de que ele nunca se prendeu a um estilo: gravava os blues, da sua maneira sui generis, que ele tanto amava, os countries que o remetiam ao universo fosforescente dos festivais itinerantes de música do Tennessee e as baladonas pop de qualquer época que ouvia quando era criança. Tudo isso mostra que o afamado Rei do Rock era antes de tudo Rei do Pop. Sim, Rei do Pop porque sempre houve lugar na sua personalidade de grande intérprete e produtor (Sim! ele produzia seus discos) para todos os estilos de música, do gospel ao blues, do country a baladas de qualquer lugar do mundo.
Nos anos 50, Elvis não podia ter o apoio da crítica musical porque quem escrevia sobre música, na época, eram pessoas que tinham como referências musicais Nat “King” Cole, Sinatra e Bing Crosby; ou seja, pessoas que não podiam entender o porquê de um garoto branco de 19 anos, ainda por cima sulista, cantar blues. Sendo assim, os críticos não poderiam avaliar o trabalho de Presley como grande estilizador do blues urbano e do country, ou seja, o criador do que se convencionou chamar de rockabilly: ouça That’s All Right de 1954 (Toca-se a música bastante alta).
A Cruz do Cruz & Sousa: Ah, a vida antes da indústria cultural, antes de Adriana Calcanhoto e Arnaldo Antunes. Antes da revolução, como disse Talleyrand, a vida era doce. A vida antes de Elvis, como disse Francis...
Lúcio (volta a sapatear, mas põe os dedos em cruz): reacionário! Saudosista! Que bobagem é essa de antes da indústria cultural! A indústria cultural começou na Idade Média, quando surgiu a primeira ópera. Isso é uma desculpa sua, uma besteira. VADE RETRO, RETRÓGRADO!
A Cruz do Cruz & Sousa: Tudo bem, se você não me quer aqui, eu também não suporto essa sua mania chata de sapatear, tá bem? Sou poeta, editor dos maiores do Ocidente. Só não aceito que você fale da masculinidade do Hemingway. Aí é palhaçada e eu saio no braço, entendeu? Sou destemido e polêmico como Marcelo Mirisola e...
John Hemingway: Yes, he wrote a very long rebuttal of Calligaris' article, but I doubt that he has actually read my book, Strange Tribe, nor is he aware of the academic research that in the last 20 years (since the publication of the "garden of eden") has revolutionized academia's vision of my grandfather. Mind you, these are not people who "hate" Ernest or who wish in some way to denigrate him, quite the contrary. They consider him an extraordinarily complex and modern writer. Even the feminist scholars have changed their tune and now see Hemingway as a writer who was very much interested in women and in their realistic characterization. As I've said before, anyone who wishes to understand Ernest Hemingway and his writing has to be aware of his "other side."
Lúcio: John, I have this article contesting Calligaris on my blog: I guess it´s an example of a negative reaction of a young Hemingway´s fan. The title can be translated as something agressive: "The logic of the faggot catched on the dead-end". I don´t agree, it´s only a curiosity.
(A Cruz do Cruz e Sousa ergue-se e desaparece, levada por um dos anjos de Angels in America. Lúcio faz o nome-do-pai e retira uma caixa falante do boneco do Marcos Xavier, arrebentando a barriga do boneco todo sujo de lama. A caixa começa a falar sem parar, narrando um conto): Boa noite, meu nome é Talk Box. Por onde deseja começar? Neste conjunto de teclas que você vê em meu corpo, selecione o assunto desejado, pressionando a tecla correspondente. Pode me tocar, não seja tímido!
(Lúcio passou os olhos timidamente pelo corpo de Talk Box e, meio trêmulo, pressionou a tecla "História do Teatro", ao que a sofisticada máquina prontamente se manifestou):
Talk Box do Marcos Xavier-- Você escolheu um assunto muito interessante!
Lúcio-- Aposto que você diz isso para todos, pensou Malone.
Talk Box do Marcos Xavier-- Descreva-me, agora, qual a imagem que lhe vem à mente, a princípio, do teatro na antiga Grécia - murmurou, sedutora, Talk Box, silenciando-se por um minuto, para que ele pudesse falar.
Lúcio-- Bem, imagino-me no topo de um grande teatro de pedra. Ao fundo, um impressionante cenário natural. No palco, vejo uma encenação de Antígona, de Sófocles...
(Sem hesitar um segundo, tomado por uma ira incontrolável, Lúcio sacou de seu revólver calibre 38 e disparou cinco tiros contra a vagabunda...)
Uma série de pequenas explosões e faíscas iluminaram todo o escritório, enquanto frases desconexas começaram a ser emitidas desordenadamente pela Talk Box do Marcos Xavier, tais como "O Sendero Luminoso, de inspiração maoísta ... (cleng!) ... O Uruguai foi o vencedor da 1a. Copa do Mundo ... (cleng!) ... Boa noite, meu nome é Talk Box DO MARCOS XAVIER... (cleng!) ... Baudelaire criou uma nova técnica poética ... (cleng!) ... Pode me tocar, não seja tímido! ... (cleng!)". Aos poucos, entretanto, suas luzes foram-se apagando, ao passo que um denso óleo começou a escorrer de suas entranhas...
Fantasma do Pai de Hamlet: (aliviado pela saída do mar de lama): Um nariz de palhaço é muito mais do que apenas um nariz ou uma forma de esconder/revelar algo do/ao mundo. Este blog será minha tentativa de mostrar por que ser palhaço é uma forma de encarar definitivamente a liberdade de SER para os outr... puxa, pessoal.
descubro que deixo saudades.
será?
fico meio pasmo, sabem.
é como são as coisas, hoje.
ou apenas deixo uma espécie de vazio?
como um buraco negro?
não sei.
domingo, 24 de agosto de 2008
Blognovela Penetrália: Capítulo 3
Capítulo 3: A CRUZ DO CRUZ & SOUSA
(O Gugol Júlio Fantasma informa que a blognovela foi interrompida de forma abrupta na última sessão).
João Paulo: sou eu que tenho uma abelha na cabeça. O Mário é o que tem o celular que toca sempre Pour Elise e o faz chorar. É que ele leu Adorno e a regressão acústica. Ele lembra que para ele, Lukács, Hegel e Adorno, a arte morreu. E ele não sabe nada de Filosofia. Tem também o cara do trem e o do cometa.
Trem: eu só volto daqui a quatro anos.
Cometa: eu sou o Halley, só volto daqui a setenta anos.
Lúcio (sapateando): Trem? Eu deixo aqui uma sugestão para uma polêmica no blog: o gesto dos Kaiapós de passar o facão no engenheiro da Eletrobrás foi antropofágico? Para mim, foi.
Guzik: Nem é preciso ir atrás de teorias de historiadores e sociólogos. Bastam uma hora à noite sem energia ou vinte e quatro horas sem água (as duas carências rolaram aqui entre terça e quinta) para percebermos como são precárias todas as nossas "qualidades" de vida. que civilização frágil essa que construímos!
Contrera: no encontro entre a barbárie da civilização e a civilização da barbárie sempre há quem sirva de comida aos cortadores de cabeças. o que não significa que não deva existir porrete a demandar um limite entre as facas ou os canhões.
Rio Maynart: Caro Andrei, te sinto mais “Andrei” do que “escrava isaura”, assim como vejo o Vamp mais vampiro do que Odete ‘Róitman’, ele não é um vilão como ela. O Vamp, caro Andrei , é lindamente sensível!!! Ele até teve um surto só pq eu questionei uma frase meio non-sense sobre a mão num sapato ser o mesmo que uma mão no cadáver e parece que o Lúcio Jr. tb teve o mesmo questionamento q eu, (segundo o Gerald)… Para surtar c/ isso, é necessário ter muita sensibilidade (A Odete ‘Róitman’ nunca surtaria c/ essa pergunta. Ela é uma vilã fria, crua, cruel e durona), e olha que ele (mesmo surtado) ainda teve sensibilidade e tesão para agarrar alguém no escuro… Eu acho que ele agarrou foi a Dra. Paloma. Fábio, meu caro, não gosto de rótulos.
Sandra: SENSACIONAL! Ar-ra-sou!
Lúcio: Mas não tem nenhum Andrei aqui, só um boneco. Sarapateus e sarapatetas: sabe o q eu acho mais complicado nessa história do setember eleven? É que agora, um nacionalismo árabe pragmático não pode mais apoiar os USA nem aceitar um programa democrático liberal! Eles venceram, fecharam o sinal. Mesmo o Talibã e Saddam se aliaram aos USA em certos momentos. De agora em diante isso é impossível!
Laerte Braga: para quê apoiar o imperialismo americano?
Andrei Golemsky (o boneco volta a falar, aparentemente sem motivo, numa nova gravação): Ah, seu Laerte, a morte é uma divindade, a morte é uma festa! Certo dia, ouvi num noticiário que dez pubs londrinos, daqueles bem tradicionais, planejam oferecer um novo serviço no mercado gerado pela morte. O referido serviço consiste em, expressando o morto (com alguma antecedência, evidentemente) o desejo de que assim seja feito, ser o corpo e as cinzas depositadas numa urna funerária (até aqui não há novidade). E essa mesma urna contendo as cinzas do antigo cliente seria armazenada, ou exposta, no interior do próprio pub que o morto costumava freqüentar com seus amigos, acompanhada de uma placa convencional de lembranças eternas.
Cruz do Cruz e Sousa: Prezado Sr, estou realmente estarrecido com sua atitude, tanto no seu blog quanto aqui, revelando uma intimidade que jamais tive nem tenho com colegas, ex-colegas, amigos, ex-amigos, companheiros, ex-companheiros, aliados, ex-aliados, adversários, ex-adversários, e digo mais: nem mesmo com parentes de primeiro, segundo, terceiro graus etc.
Até onde me lembro - e estou vivo e lúcido o suficiente para me lembrar completamente de todos os meus atos - jamais o agredi, jamais o desqualifiquei, jamais encaminhei qualquer ação com objetivo de lhe causar danos de qualquer natureza. Todas as vezes em que conversamos, dentro e fora da UFMG, cumpri com minha obrigação elementar, enquanto humano (e certamente o Sr. é daqueles que duvidam da humanidade dos negros, dos pobres e outras minorias), de respeitar o outro.
Como tantos, escolhi o trabalho intelectual, desde o início da vida adulta, como "métier": penso, pesquiso, falo, escrevo, enfim, exponho-me. Evidente que esse tipo de trabalho, o conjunto de idéias que o caracteriza, freqüentemente desagrada a outras pessoas, grupos, facções, partidos, guetos, bairros, turminha da mônica e outras turmas, contraria seus princípios, sua etiqueta social etc. Entretanto, nada justifica o linchamento daquele que, com suas idéias, desagrada a qualquer grupo, o que significará sempre a velha e intolerável confusão de fronteiras que tantas tragédias já causaram à humanidade. Tive e tenho o direito a emitir as idéias que entendi e entendo que são mais plausíveis, direito que também lhe assiste, bem como a qualquer outro mortal. Neste momento em que o Sr., que tem idade suficiente para responder pelos seus atos, pavoneia-se debilmente com o meu nome, procurando, como outros, seus 15 minutos de fama (afinal, quem é o Sr.mesmo?), creio que esteja cônscio sobre as conseqüências de chutar um cachorro-não-morte, creio que conheça bem o ditado paranaense que Leminski gostava de recordar: quem come pedra, sabe...
Lúcio (sapateando cada vez mais, com as mãos na cintura): era só o que me faltava...Fala, minha cruz! Quem chamou você aqui nessa blognovela?
Cruz da Cruz e Sousa: Deixo bem claro, mais uma vez: não admito nem jamais admitirei que pessoas maledicentes, mesquinhas e autoritárias, em bom uso ou não de suas faculdades mentais, procedam a julgamento sumário da minha pessoa nem do empreendimento que, orgulhosamente, fundei há quase dez anos e é - para aumentar o ódio de figuras ridículas como o Sr., típicos remanenescentes do nosso nazionalismo merdavarelo - uma das referências de um tempo, de uma geração e de um lugar nos anos 90. Quanto a discutir meu ensaio "A Desarmonia da Harmonia" com o Sr., ensaio cuja importância o Sr. mesmo reconhece ao escrever todo um outro ensaio a respeito, considero uma proposta altamente indecente. Volto a lhe perguntar, com toda sinceridade: quem é o Sr. mesmo? Eu, como o Sr. bem sabe, sou A CRUZ DO CRUZ & SOUZA.
Lúcio (sentado, segurando o pé): Olha, eu não tenho nada a ver se o poeta do desterro foi recebido friamente. E você vem com essa velha frase: “Você sabe com quem está falando?” E que negócio é esse de nazionalismo. A Sra. Cruz é que ficou louca.
(Nesse momento, Lúcio observa que há outros bonecos, esses minúsculos, de sarapatetas pela sala. Mas primeiro, ele precisará resolver o problema da Cruz, que traz junto uma enxurrada de lama que ameaça encher a sala. Os bonecos dos sarapatetas flutuam juntamente com Rio Maynart, Laerte Braga, Contrera e Guzik, que gesticulam pedindo socorro).
domingo, 17 de agosto de 2008
Apenas Uma Prova de Amor -- O Texto
De Rodrigo Contrera (rodrigo_contrera2@hotmail.com)
Personagem: C
Ato 1
(música 01 Bless the Lord, O My Soul [Psalm 104], regida por Paul Hilier, até o fim. C aparece aos poucos, especialmente após pouco menos de metade da música)
(C mudo. não faz mímica)
Cheguei. Olha eu aqui.
(tempo)
Alguém me pôs aqui.
Alguém me disse: sobe lá e diz alguma coisa.
Sobe lá. Ocupa o teu lugar. O TEU lugar.
(tempo)
Eu me lembro.
Eu passava a minha vida onde vocês estão.
Foram anos assistindo, engolindo em seco e aplaudindo.
(lembra)
Uma vez eu saí no meio.
Só uma vez.
(tempo)
Dizem que é preciso coragem para pisar este palco.
Qualquer palco.
É o risco do ridículo.
O medo de errar.
Ficar mal na fita.
(tempo)
Muitos ficam onde vocês estão apenas por medo.
O mesmo medo de errar.
No fundo, eles gostariam de estar aqui.
Eu sei.
(tempo)
Mas muitos de vocês jamais vão pisar qualquer palco.
Por medo. Falta de oportunidade.
Vocês dizem que não, que não é isso.
Que só vêm aqui se divertir.
(tempo)
Dizem que preferem ver. Assistir.
Pagam para que os outros os divirtam.
(tempo. vira-se, fica de costas. toca 04 The sun will not strike you by day (Salmo 121), até o 26s. retomado o off)
Ninguém pediu para eu vir aqui.
Eu mesmo quis.
(continua virado)
Eu sou o autor desta peça.
Estas palavras que vocês ouvem fui eu que escrevi.
Nada demais.
(tempo)
É a segunda vez que escrevo uma peça.
A primeira foi há alguns meses.
(aparece o vídeo, ao fundo. 05 Hear my prayer, O Lord, direto, suave, baixo)
Aquele cara lá atrás sou eu.
(tempo. a peça continua, dá para ouvir. passa algum tempo. torna-se clara a intenção)
Era uma espécie de desabafo.
Comecei assim.
Eu estava lá na frente, vendo tudo.
Morrendo de vontade de rir.
De estragar tudo.
(tempo)
O Nélson Rodrigues era fissurado pelo buraco da fechadura.
Para mim o buraco é aqui.
(tempo)
Na frente de todos.
Para mim, é assim.
(tempo. deixa mais algum tempo aparecer a peça. abaixa aos poucos a cabeça)
Ninguém viu.
Podem rir.
(levanta a cabeça. tempo)
Mentira. Foram uns amigos.
Uns amigos sempre vão.
Outros, nunca.
(pára a música. levanta-se)
(dirige-se à platéia)
(dirige-se a um homem da platéia, mais velho)
(o texto continua em off)
O sr. é meu amigo?
(se a pessoa faz menção de responder, o palhaço coloca o dedo em sua boca, suavemente, ou faz o gesto de silêncio - mais fácil)
Está aqui porque é meu amigo?
(continua avançando em direção à platéia. dirige-se a outra pessoa)
Eu não me lembro de você.
Você é alguém?
É alguém importante?
(avança para outra pessoa)
Você me lembra uma pessoa.
Alguém. Não me lembro quem.
(olha uma pessoa no canto)
Sem você, minha vida seria diferente, sabia?
(olha todos e ninguém)
(música The Sicilian Clan [-], de John Zorn, de The Big Gundown, em >>> (rapidez))
(ao som dos poing, bolas caem em C, do nada. ele pega as bolas e tenta se vingar. depois, ele entra na dança e dança olhando para todos. ao final, ele vai embora, fugindo das bolas)
(fim do ato 1)
Ato 2
(música Köln Concert. Keith Jarrett. 01 Part I)
a
(joão hélio)
(palhaço carrega boneco destroçado, puxado por uma das pernas. precisa ser feito com extremo bom-gosto e educação. ele carrega o boneco como se estivesse carregando seus pecados. de vez em quando, ele volta-se para tentar reanimar o boneco.)
b
(isabela)
(aparece o palhaço embaixo de um prédio. caem rosas em cima dele. as rosas o distráem. impedem que ele durma. caem muitas e muitas rosas. afunda-se em rosas. não consegue dormir. descansar. quando todas caem, formam sobre ele um manto e ele descansa, por debaixo delas)
c
(menina estuprada em cadeia do pará)
(palhaço permanece num dos cantos do palco. no outro canto, um boneco de menina. com cabeça abaixada. nua. machucada. ao longe, gritos. gritos e mais gritos. o palhaço coloca os dedos nos ouvidos, não consegue aguentar. os sons desaparecem, mas o palhaço continua ouvindo-os)
d
(menina torturada em apartamento de classe média)
(boneco de criança em meio a muitos, muitos bens pendurados. seus braços estão presos. sua boca, amordaçada. o palhaço vê ela presa a essa situação, mas, distante por um espelho de água, não pode fazer nada)
e
(menino destroçado por balas em carro no Rio)
(palhaço brinca com garoto pequeno, 3 anos no máximo, de jogar balinhas um contra o outro. ao longe, sons extremamente fortes de tiroteio. sons aumentam. os dois continuam brincando)
f
(garoto entregue a traficantes)
g
(menino desaparecido - geral)
h
(casal de namorados morto por garoto e caseiro)
Ato 3
(música a escolher)
(ele e o nariz, no centro do palco)
(o nariz fala)
- Você gosta de chamar a atenção, não é?
Sempre gostei. Desde os cinco anos.
Eu dançava na frente dos meus tios. Eles riam e aplaudiam muito.
Eu devia me achar importante.
- Mas quando foi a primeira vez que você REALMENTE pisou no palco?
Foi numa peça. Eu disse um texto. A platéia estava lotada.
- O que você sentiu na hora?
As luzes estavam todas em mim.
As pessoas não pareciam elas mesmas.
Elas me olhavam.
Eu me sentia sendo dissecado.
Como se fosse um animal.
Como se eu estivesse sendo testado.
Diga a verdade, as pessoas pareciam pareciam dizer.
Voltei à coxia.
De repente entendi.
Até aquele momento eu havia sido ninguém.
- Você gostou, então?
Adorei.
Pensei: este lugar é MEU.
Nunca tive um lugar meu.
Passei a adotar o palco para mim.
- Você passou a sonhar cada vez mais em estar aqui.
Sim.
- Mesmo que isso te obrigasse a ser ridículo.
Isso.
- Como um palhaço? (tom de zombaria)
Um palhaço não é ridículo.
(diz o texto acima em tom de lamento. pega o nariz. vira-se. coloca-o)
(música 04 Faixa 4 do CD Moods Reflections Moods, de Fábio Caramuru)
(pega outra bola, deixada perto. começa a brincar com ela, sem se dar muito bem com os movimentos que ela exige)
(exibição de cenas de vídeo, ao fundo. pequena tela, mas com muita clareza. as cenas são simplesmente fatos. nada muito editado e que passe mensagem clara. simplesmente fatos. é como se o vídeo substituísse a realidade, e o palhaço, eu, estivesse como que passando o tempo, sem intenção definida, enquanto tudo passa. a idéia - se é que existe - está em mostrar o papel do ser humano particular nisso que é a realidade planetária dos dias de hoje: nenhum. mas o palhaço não assiste, ele só brinca. brinca e tenta chamar a atenção. faz número, tenta obrigar os espectadores a desviarem os olhos da tv. haverá um momento em que o rodrigo, o autor, irá assistir às cenas. as cenas do vídeo terão de ser exaustivamente editadas e devem ter a ver com meus recortes. pode, como opção, ser exibido um ppt de minhas fotos e meus textos recortados)
(a partir de certo momento, voz em off)
Para que serve um palhaço?
Um palhaço não serve para nada.
O palhaço olha e engole.
Toma tudo para si.
Você não ri, ele se deixa afetar.
Fica chateado.
Abaixa a cabeça.
Você ri, o palhaço adora.
Se você grita com ele, ele chora.
O palhaço expressa fragilidade.
Ri e chora.
Grita e lamenta.
O palhaço é uma espécie de criança.
(tempo. tira o nariz. fica de costas)
O palhaço não está nem aí para o mundo.
Como esse mundo aí.
Esse mundo que dói tanto.
Esse mundo tão difícil de aceitar.
Mas nem por isso o palhaço é ridículo.
Ridículo é aceitar e ficar calado.
O palhaço não aceita.
O palhaço sabe chorar.
O palhaço ri.
Nós, não mais.
Nós vemos e ficamos calados.
Guardamos a dor com a gente.
Abraçados ao nosso rancor.
(homem que jaz em cima de uma mesa. não se mexe. está morto)
(mensagem no vídeo: "João Antônio, obrigado". as imagens continuam)
(fim da música. as imagens continuam. o homem, eu, desapareço na escuridão)(tempo. fim do ato)
(música Köln Concert. Keith Jarrett. 03 Part III)
Exceto aqui no teatro.
Aqui não é lugar de bombas.
Aqui estamos todos juntos.
Vocês, com vocês.
Nós, conosco.
Vocês com a gente.
A gente com vocês.
Sim, é assim.
A todo momento, aqui, estamos todos juntos.
Sempre foi assim. O teatro é isso.
Ato 4
(Peteris Vasks - Dona nobis pacem in Baltic Voices 1)
Não dá mais para viver só de tristezas.
Ninguém agüenta.
Mas as bombas continuam.
(imagens de bombas)
Ah, se eu pudesse só lembrar do amor. De quando eu dançava na frente dos meus tios.
Seria tão legal.
(tempo)
Mas sou um homem.
Não sou mais uma criança.
E a gente precisa acabar com isso.
(surgem pessoas, que andam para lá e para cá, retomando a vida dura de cada dia. a luz começa a desaparecer gradualmente, acentuando-se a queda a partir de 6min30. em 7min10 nao há praticamente luz. espelho no palco, cobrindo todo o palco, de lado a outro. começa a surgir luz na platéia a partir de 8min. a luz aumenta gradativamente e em 9min15 torna-se forte o bastante
para mostrar a todos no grande espelho. em 10min20, os espelhos são desfeitos. surgindo um grande corredor feito de espelhos no palco. em 11min10, a música praticamente pára e nesse momento vem a expectativa quanto a o que vai surgir entre os espelhos. pessoas da platéia entram aos poucos no palco e vão até o fim, desaparecendo nas coxias. caso isso não aconteça,
casal combinado ou um palhaço entra no palco e avança, enquanto a luz cai)
(final 4 ato)
Créditos
(música: 09 Battle Hymn, de Judas Priest, em Painkiller. até o fim. várias vezes. o texto a seguir é dito a partir da segunda vez) (créditos: ___________)
quarta-feira, 28 de maio de 2008
Passando em Revista: Blitz com Rodrigo Contrera
Lúcio Jr.
Rodrigo Contrera, jornalista de origem chilena estabelecido no Brasil desde a infância. tenho 35 anos e sou casado. Estuda filosofia, política e religião. Como jornalista, possui experiência em assuntos rurais, reportagem geral e futebol. Traduziu 22 livros, mais alguns textos. Domina o inglês e o espanhol, e arranha o francês e o alemão. Gosta de rock instrumental, jazz contemporâneo, samba, rap, pagode e choros de primeira linha, além de música andina. Arranha o cavaquinho. Dos autores que mais aprecia, cita Weber, Isaiah Berlin, Emil Cioran e Paul Valery. Gosta das pequenas histórias e desconfia de toda teoria, por mais genial que ela for. Como ele próprio define: “Na dúvida, considero que todos somos hipócritas. Não tenho obras publicadas [pelo menos não no formato livro; possui textos em um blog na Internet]”.
1. Qual a sua visão sobre livros que falam sobre o Chile e o golpe de estado, tais como Uma Vida em Trânsito, de Ariel Dorfman?
O caráter simbólico do golpe de 1973 sempre pareceu, para mim, muito mais aglutinador de esperanças e descrenças entre os latino-americanos do que, por exemplo, a guerra civil espanhola entre os europeus e/ou a invasão soviética de Praga, em 1968 (a chamada Primavera). Isso fez com que os latino-americanos ditos pensantes sempre me aparecessem separando os chilenos, muito artificialmente, em partidários e opositores a Pinochet. Como se minha família, que morava em um bairro bom de Santiago na época do golpe, necessariamente caísse no estigma do "conservador safado" só por bater panelas em época de carestia. Como se meu pai, que sempre trabalhou em multinacionais mas que nem curso superior tinha, necessariamente fosse um burguês nojento em oposição a uma classe trabalhadora organizada. Para os brasileiros, ainda hoje chileno que emigra necessariamente é por motivo político. Como nós emigramos mesmo devido ao desemprego passamos então como se fôssemos gente menor, menos "importante" que qualquer partidário da esquerda. Isso também é o que derivo dos livros sobre o Chile ou de chilenos de antes e depois do golpe. Ler Isabel Allende é chique. Miguel Littín, herói. Skármeta, poesia. Acontece que Isabel nada seria se o seu pai não tivesse morrido assassinado no
É sobremaneira irritante, por outro lado, a facilidade com que essa intelectualidade boçal assume para si a autoridade de falar do golpe como se fosse um patrimônio pessoal. Isso não é típico apenas da classe média chilena, claro. Isso acontece aqui no Brasil, também. Hoje todo mundo é ex-exilado. Exílio, assim, é motivo de quase orgulho. Ser obrigado a cair fora, ser expulso por pensar, que maravilha. Aos olhos de todos, parece tão nobre isso, de exilar-se por não conseguir deixar de pensar. Acontece, meus caros, que isso não é exílio. O exílio, quando de fato acontece, é sempre motivo de consternação e vergonha. O exílio, para quem o experimenta seriamente, é uma espécie de queda no tempo, como diria Cioran, uma ausência absoluta de referência, algo que não diz respeito apenas a uma inadequação política qualquer. Basta ler algo de Joseph Brodsky, por exemplo, para começar a entender que o exílio é uma marca indelével que ninguém em sã consciência sai por aí a exibir impunemente. Pois o preço a pagar pelo sentimento do exílio é alto demais. Por motivos pessoais, eu sinto esse exílio, que sempre é uma perda, a tal ponto que recuso-me sequer a respeitar como pessoa quem quer que o transforme em marketing pessoal. Daí a incrível situação a que me vejo obrigado: marginal sem convicção, deslocado sabendo-me crente no sistema, à parte da situação e da oposição, aprimoro as ferramentas da tradição apenas para não fazê-lo com as da traição, que é como me sinto. Traído. Traído por gente que não merece dividir mesa alguma comigo ou com quem faz por merecer.
Pode-se verificar essa cisão a que me vi submetido no próprio estilo de fala e de escrita de pessoas "exiladas de si" como eu. Se por um lado esse tipo de gente costuma apreciar estilo e elegância ao falar e escrever, com freqüência vê-se tomada por lapsos de raiva ou irracionalidade difíceis de explicar.
Os séculos XIX e XX trouxeram à baila pela primeira vez o "homem comum" como protagonista da história. Como segundo passo nessa tendência, surgiu a figura do "anti-herói". Eu, de minha parte, vi-me com o tempo como que "obrigado" a compartilhar a maior validade das experiências do homem comum em relação às dos homens ditos notáveis (o Dorfman, a Allende, o Neruda, Littín, Skármeta dentre estes). Digo haver sido como que "obrigado" a isso porque de forma alguma eu me identifico, de forma genérica, com os ditos homens comuns. Prefiro infinitamente relatos de gente como o imperador romano Marco Aurélio a relatos de gente como eu. Mas o que posso fazer se, com respeito ao golpe e experiências vividas e importantes para mim, os ditos notáveis mostram-se uns bestas ou pusilânimes e, em oposição, encontro maior valor em homens comuns que dividem os espaços comigo de igual para igual (algo que em geral, admito, não me agrada)?
2. Como se deu o seu descobrimento do pensador romeno Emil Cioran? O que acha de um possível flerte dele com o fascismo romeno na juventude?
Cioran entrou em minha vida pela indicação de um então colega que soube de sua morte ao ler sobre ela no jornal. Digo então colega porque hoje considero esse colega um grande amigo. O nome dele é Renato Araújo e estuda filosofia na USP, como eu. Se por um lado conhecer minha esposa trouxe-me aos poucos de volta à vida - é como eu me sinto -, conhecer Cioran salvou-me da esterilidade sem volta do pensamento especulativo. Para mim, Cioran hoje não é um pensador apenas, é um amigo que leio como quem conversa com um amigo distante sobre o sem volta da vida e da morte. Visitei seu túmulo este ano em Paris (está em Montparnasse) e a ocasião, apesar de terrivelmente sem graça como qualquer visita a cemitérios, realmente me marcou. Cioran, que para muitos serve como consolo antidepressivo, a mim toca pela sensibilidade, finesse e lucidez. Mas, por incrível que possa parecer, não são seus escritos o que mais me toca em sua obra, mas suas poucas entrevistas, que sempre me resgatam da especulação vã e me mostram meu lugar em meio aos para sempre patéticos seres humanos. Você repara no cúmulo da preguiça? Cioran quase só escreve em aforismos, os últimos pedaços soltos do pensamento. Mas até estes me cansam, daí que acabe preferindo ouvi-lo. Hoje eu sinto como se a palavra me tivesse sido restituída pela própria morte do "romeno", como eu o chamo. Quem me devolveu a palavra? A indicação de um amigo. O falecimento de Cioran foi-me providencial, portanto. Tão providencial como a de uma pomba, que é como eu o imagino, simbolicamente falando. Ele morava na rua do Odeon, em Paris, no último andar de predios antigos que só têm pombas lá em cima.
Em poucas palavras, não acho nada. Assim como não ligo se alguém é ou foi de direita, de esquerda, a favor ou contra a luta armada, parlamentarista, presidencialista, politicamente engajado ou pateticamente servil. Qualquer que tenha sido seu envolvimento em movimentos fascistas ou comunistas a mim pouco interessa. Já vi fotos de Cioran, jovem, em uniforme de tipo militar ou fascista. Num primeiro instante, até que chocam. Mas, pensando bem, não sinto ter nada a comentar a respeito. Por quê? Porque sou da opinião de que movimentos como o nazismo ou o fascismo não necessariamente deveriam culpabilizar ou estigmatizar. Hoje vincula-se necessariamente o nazismo à matança sistemática de judeus antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Minha opinião é simples: o povo alemão ou qualquer forma de entender a civilização que perpetrou esses crimes está, a meu ver, indelevelmente condenada face os outros povos ou civilizações, e dessa pecha não poderá nunca mais se safar. Pouco importa se foram alguns, muitos ou todos os alemães que cometeram as atrocidades. Hoje, ser alemão é carregar esse estigma, assim como ser membro de uma família socialmente proscrita. Não tem volta. Por outro lado, cada um pensa o que quiser. Hoje, todo neonazista é criminoso socialmente falando. Para mim, neonazista é primeiro meio burro; suspeito, talvez; mas criminoso, até prova em contrário, ele não é. Deixemos cada um pensar ou se expressar como quiser. A sociedade deve sempre, contudo, estar atenta face a usurpadores de liberdades, que é como os neonazistas com freqüência se apresentam. Consideram-se acima dos consensos políticos? Pau neles.
3. Com sua viagem à Europa, você confirmou as idéias de Cioran a respeito da decadência do Velho Continente?
Viajei à Europa a trabalho. Trabalhei cinco dias e folguei dois. Nunca havia saído da América Latina. Não minto quando digo que não estava pessoalmente interessado em conhecer o Velho Continente. O que eu queria era mesmo confirmar ou não algo que Cioran devolveu aos meus sentimentos. Os dias que eu tive de folga em Paris deveram-se ao fato de que ficar uma semana por lá saiu, quanto ao preço do vôo, mais barato à editora do que se eu voltasse em quatro dias. Bom, para responder bem a esta pergunta, preciso explicar como eu sinto tudo aquilo a que ela se refere. Nasci no Chile em uma família de classe média. Meus tios, do lado paterno, têm ascendência escocesa e valorizam esse fato de forma quase ridícula. É como se eles não fossem chilenos. Convivi principalmente com eles uma infância regada a chá, tertúlias às cinco e conversas familiares de bom nível no bairro de Ñuñoa, de classe média alta. Meu pai adorava. Do lado materno, a convivência foi menor. Meus tios de parte de minha mãe sempre moraram no mesmo bairro de classe média (Las Condes) e possuem origens mais humildes. São pessoas comuns, que convivem com as dificuldades de forma prosaica como todo indivíduo não-privilegiado. A exceção é um de meus tios, que foi recentemente governador - nomeado - em uma província do Chile.
Fui criado em boas escolas. Estudei um ano - acho - em um liceu alemão e até a quarta série em uma escola do Estado. Toda segunda-feira a gente cantava o hino nacional chileno. O ensino no Chile em minha época era muito bom e exigente. Sempre fui bom aluno, estudioso e obediente. Cheguei a ser premiado um determinado ano, sei lá por quê (não me lembro).
Minha educação deu-se, portanto, de acordo com o modelo ocidental europeu clássico. Parte dos parentes fingindo não serem chilenos, a outra parte deles não me parecia muito peculiar. Santiago, como dizem, é uma cidade de clima mediterrâneo, e não tem muita coisa de indígena. Uma particularidade de minha criação, que ainda não compreendo muito bem em meu jeito de ser, é haver sido criado muito carinhosamente por uma babá (Justina) que tinha origens indígenas. Outro detalhe é que minhas lembranças de Santiago remetem quase todas ao bairro de Las Condes, de classe média alta, que na época estava em seu começo, sem prédios - até hoje são poucos - e extremamente planejado. Como exemplo, nós tínhamos três praças perto de casa, onde podíamos brincar.Chegar ao Brasil, em 1977, foi um choque. O Brasil é um mundo que não obedece necessariamente ao modelo educacional e civilizatório que no Chile adquire um verniz europeizante. O Brasil, em todos os sentidos, é para mim um enigma em que pessoas de minha criação não conseguem jamais seencaixar com perfeição. Mas identifico no Brasil uma pujança que não consigo identificar com o Chile. Lembro-me agora, por exemplo, de duas coisas. Quando a gente imigrou, surpreendeu-se com o fato de que aqui muitas coisas são as maiores e melhores do mundo. Isso jamais acontece no Chile. Outro detalhe: os chilenos participam de esportes, mas em geral perdem. Os brasileiros, não. Eles ganham, também. E não é raro. O futebol brasileiro é futebol de deuses. E não só o futebol. Podem parecer detalhes desimportantes, mas para quem vem de fora eles assumem grande relevância.
Pois bem. Tendo estudado, no Brasil, por mais de vinte anos, jornalismo e filosofia, mais ciência política e algo de marketing, aprendi a apreciar o valor do conhecimento humanístico clássico. Aprendi também a desmistificar o valor do conhecimento empírico. Tive a oportunidade de remontar à tradição grega e romana, mas felizmente voltei. Passei - ou passeei - pela língua alemã para melhor apreciar os seus frutos. Entrei na língua francesa. Hoje ainda permaneço nela, para melhor apreciá-la. Atrai-me também o italiano. Do inglês, algo me afasta, embora o entenda. Cioran reaproximou-me da convicção quanto ao espírito das línguas. É-se de várias formas quando se é poliglota. Sinto-me um Rodrigo em espanhol, outro em português, outro ainda em francês, em inglês não me sinto, quase incorporo-me com o alemão. Mas, ainda mais importante, Cioran reacendeu uma questão que carregava há tempos: apesar de minha criação e do modelo predominante europeu ocidental na educação e em todo o modelo cultural da América Latina, parece-me sempre
haver sentido que essa tradição, que nos formou - digo "nós" com respeito à América Latina, hispânica ou portuguesa -, atinge-nos quem sabe de maneira ainda mais forte em seus claros sintomas de decadência. Que decadência? Pois bem.
Vou tentar exemplificar com duas prosaicas vivências que experimentei com minha esposa este sábado,
Onde foi que eu senti vida em Paris? Infeliz ou felizmente, nos cemitérios. No Montparnasse, com meu Cioran, ou no Pantheon, com meu também amado Rousseau. Em frente a eles, senti-me, sim,
como
A decadência que eu experimentei em Paris foi mais prosaica - também, tive apenas dois dias para isso. A Paris oficial, eu a vi realmente como um museu; a Paris não-oficial, contudo, ou seja, aquilo que está de fora da Île-de-France, nos níveis
Em resumo, a decadência que o entediado Cioran me relembra remete a uma Europa cujos traços vejo também aqui entre nós, latino-americanos, decadência essa, por sua vez, que nada tem a ver com a tradição negra ou afro-americana, como se diz hoje, ou com a tradição indígena, abafada após tantos anos e gerações em todos os rincões deste continente. Foi em meio a sintomas dessa decadência que - eu percebi quase como quem se vê face a uma assombração - minha educação fora forjada o tempo todo, no Chile e na USP. Mas essa decadência não é necessariamente européia. Essa decadência a experimenta quem assim o deseja; é decadente quem não tenta, por exemplo, como fizeram os negros jazzista norte-americanos do século XX, superar os limites da música erudita por meio do vanguardismo do free jazz (se conseguiram ou não, isso eu não sei); é decadente quem prefere macaquear modismos estrangeiros a entender melhor o seu espírito para trazê-lo, hoje, à vida. Ou todo mundo esqueceu que os romanos tomavam os gregos como referência para superá-los? Claro que não o conseguiram, mas nesse intuito viraram os romanos que a gente conhece. Ou esquece-se que o renascimento é um re-nascimento?
Claro, remeter-se à tradição para reativá-la do nosso jeito particular parece démodé, ou seja, fora de moda. Claro, pois tudo virou expressão individual. A ordem é ser como se é. Pouco importa se Nietzsche, por exemplo, já falou mundos e fundos a respeito. Pouco importa se esse ato é no fundo revolucionário; como implica tradição e vida em estado bruto, é recusado pela simples fruição do "novedoso" (escrevo em espanhol por não encontrar equivalente em português), ou seja, do que parece novo sem querer ser nada. A vida se mostra, o que vejo na decadência é a completa vacuidade do que se mostra. A agitação de um Largo 13 é real; a de uma praça Benedito Calixto, aparente. Alguém pode negar que o Largo 13 é uma zona? Não o mesmo acontece para aqueles que freqüentam a praça do mercadinho de antigüidades. O evento será "agito" a depender daquilo que um ou outro ache. Para mim, eventos similares são sempre um tédio. Qual é, neste processo todo, meu único e grande mérito (desculpe-me, mas desse mérito eu não me abstenho)?
O de haver levado tal educação ilustrada ao seu abismo, qual seja, à sua própria negação. Pois não entendo como ilustrada uma educação meramente assimilatória, que é como nos acostumam desde crianças. Nem entendo como ilustrada uma educação que não se permite discutir os pontos-chave que embaralham os nós de qualquer ser vivente. Houve um momento - não sei bem qual - em que eu, ainda envolvido pela mística da educação ilustrada, passei a esboroar meus próprios fundamentos, ao ponto de perceber que muito do que me haviam dito não estava necessariamente errado, mas levava a uma postura inadequada, qual seja, a de quem não admite, por falsa humildade, ousar dar o passo além. Hoje percebo que nosso erro - nosso, de quem? nosso, latino-americano - é, mesmo sem base concreta ou ilustrada, castrarmos nossa vontade de dar esse passo além. Decadente, então, é quem, por comodismo ou covardia, prefere permanecer no meio do caminho. Que fique bem claro, porém, que eu também ainda faço parte deste grupo - se bem que contra minha vontade.
4. Você é contra ou a favor de Lula, o ex-operário que virou burguês?
Outro problema é a forma como as notícias chegam, por uma imprensa sempre viciada que por isso me entedia. Como presidente da República, respeito o Lula. Pela trajetória, invejo-o. Do PT e de todo partido brasileiro, desconfio. Não torço a favor ou contra nada do que vem sendo discutido. Já quanto ao fato de Lula haver virado burguês, considero tal tipo de observação simplória demais ou mesmo uma forma acanhada de ressentimento. Ninguém vira nada, e se vira virou erradamente. O que acontece é que as pessoas progridem ou regridem, e assumem novos comportamentos e posturas em função disso. O chamado comportamento burguês é apenas a cristalização (e portanto imobilização) cultural de seres humanos que se acostumaram a identificar poder com dinheiro e vice-versa. Quem teima em separar estes fatores é, em contraposição, ou aristocrata ou saudosista (predicados que costumam aparecer juntos). Em geral, encaro a política como a crônica pública do absurdo. Vou tentar explicar, o que já é ridículo. Sinto um infinito prazer ao acompanhar qualquer tipo de debate na tribuna (na Câmara Municipal, por exemplo), e busco com afinco identificar homens de virtú nesse ambiente. Quem desenvolveu mais a fundo essa idéia do homem de virtú é Maquiavel, claro. Meu homem de virtú, sob esse aspecto, é todo aquele participante que consegue prever resultados apenas a partir do jogo dos debates e se colocar vitoriosamente em função desses resultados. Em pequenos ambientes, eu me considero - é patético afirmá-lo, mas é verdade - um desses homens. O tempo todo faço previsões nos ambientes de que participo, e geralmente acerto, até porque me imponho tanto quanto posso, da maneira mais disfarçada que consigo.
Reflito agora que esta minha postura tem algo a ver com o jeito de encarar qualquer jogo de futebol. Como não torço para ninguém, vejo apenas as jogadas. Mas como as jogadas políticas não querem dizer mais nada àquilo que me importa - o ser humano -, então não consigo sequer avaliá-las. Avaliar a política como simples estratégia, para mim, é o fim. No frigir dos ovos, porém, o que resta para quem, como eu, ainda tenta achar sentido nesse jogo de forças que nem tem como parâmetro o próprio discurso? Só mesmo o absurdo. Um absurdo peculiar, dado ser público.
Esse absurdo fica patente, por exemplo, no jogo de cena que todo político precisa começar a assumir como máscara tão logo é cobrado publicamente por suas opiniões ou posições. Falar o que de fato acontece torna-se proibido, a não ser que se corra o risco de levar ações sem conta nas costas ou ficar com a pecha de "polêmico". Falar o que se pensa torna-se patético face à real dimensão das coisas e a inexpressiva importância de qualquer opinião diante de fatos inelutáveis. Falar torna-se impeditivo. Como a política funda-se no discurso, instaurado está o absurdo. Político é aquele que não fala, quando foi posto onde quis para justamente fazer uso de seu poder de fala - ou pelo menos assim deveria ser na teoria. Restam os antigos, os fora-de-moda, à
Resposta: Acho que sem a música eu seria um homem morto. Alguém já disse que só quem consegue apreciar música pode ser considerado ser humano. Eu não iria tão longe ou, pensando bem, iria ainda mais longe: para mim, pode-se estar vivo sem gostar de música alguma, mas esse tipo de vida é aquela que nada tem em comum com a vida de mais ninguém. Em suma, é uma vida que não pode ser compartilhada. Uma pessoa dessas não sentiria prazer nem em fazer parte de uma torcida, por exemplo.
Não entendo propriamente de música. Sei distinguir os conceitos principais - harmonia, melodia, ritmo etc. -, e possuo uma cultura musical ampla, regada a muita audição de música erudita e popular de todo tipo. Mas minha relação com a música não é formal, mas introspectiva.
Um colega um dia me perguntou que tipo de música me agrada. Eu respondi, sem pestanejar, "todo tipo". Ele achou que eu estivesse brincando. Aí eu comecei a elencar gêneros eruditos, populares, tradicionais, folclóricos, sem parar, até que de repente parei e disse: "talvez eu não goste daquelas gaitas escocesas, lembram-me a falsidade de gente que não se enxerga" (eu estava pensando em meus familiares chilenos que se acham escoceses). Pois bem.
Quando eu morava com meus pais, não havia jeito de cantar como eu queria. Eu tenho uma voz bem forte, de tenor, e não havia espaço para eu jogar a voz para fora. Daí eu ouvia praticamente música instrumental. Com o tempo, dei-me espaço para um Paulinho da Viola, um Adoniran, ou um João Gilberto, que não precisam ser gritados. Isso me aproximou bastante do Brasil. Hoje canto-os razoavelmente bem. Mas, mais importante, sinto-os bem. Na verdade, sinto melhor um Adorinan do que um João Gilberto, por exemplo. Vivo
Canto a Marselhesa no devido tom para recordar os mortos que descansam lá em Paris e em relação aos quais somos herdeiros mal-agradecidos. Canto também gente mais moderna, mas aí não tanto pelo que sinto mas pela forma como sinto. Uma vida regada a Cole Porter pela voz de Ella não é a mesma que uma vida regada a Roy Orbison, Raul Seixas, Lulu Santos etc. Trabalho minha voz para reviver a música
Musicalmente, o heavy metal é mesmo pobre. Mas adequava-se ao meu perfil, de jovem sem rumo, em busca de referências, por mais fracas que pudessem ser. Nessa época, meus pais enfrentavam problemas e eu andava perdido pelo mundo. O heavy ajudava-me a entrar em contato com algo, o quê, eu não sei nem imagino. A ligação com a música erudita deu-se, logo depois, por buscar referências sérias, duradouras, reconhecidas pela tradição. Experimentei quase tudo, de Bach a Stravinsky ou Messiaen. Hoje até aprecio Varèse, que me foi apresentado pelo Frank Zappa. A música erudita foi, dessa forma, minha maneira de encarar a tradição em seu interior. O jazz veio como forma de assimilar o mundo negro, que sempre me foi muito estranho, e o blues e o country serviram-me para entender a solidão. O Inti Illimani, grupo chileno, veio-me pelas mãos da minha esposa, que me mostrou o cd em uma megastore, sendo que, às lágrimas embora meio contra a vontade, acabei retomando contato com minha antiga pátria. A música restabelece o contato, sempre. Hoje, eu não busco mais novos sons. Busco velhos sons. Sons que me aproximem daquilo que mais profundamente pode expressar o ser humano. Estou à cata, meio desesperado, de mais música mafiosa italiana, agora da Sicília, e logo quem sabe me aproxime de música folclórica bretã, em cantos a capella. Gosto muito da música folclórica romena, e arrependo-me de não haver comprado um belo e caro cd com música cigana também da Romênia. Em free jazz, meu deus é o pianista Cecil Taylor, tão formalista e tão livre como só os indômitos conseguem ser.
6. Qual a sua identificação com Milton Campos, um político que foi da UDN, partido tido
por seus opositores como reacionário e entreguista?
Resposta: O Milton Campos, pelo que sei, sempre primou pela decência. Pessimista convicto, era estóico no trato e audaz na palavra. Um político da antiga, portanto. Hoje os embates dificilmente dão margem à existência de pessoas como ele, mas isso não me impede de tomá-lo como referência.
Acho engraçado que, ainda hoje, exista gente que considera sério rotular alguém de reacionário. Eu sou reacionário, por exemplo. Sou amplamente favorável à tradição. Não há mesmo nada de novo abaixo do sol. O que é ser reacionário? Houve uma época em que ser contra as drogas era ser reacionário. Mas quem é, hoje, a favor delas? O Milton Campos era um sujeito introspectivo afeito à tradição. Não vejo nada de errado nisso.
Quanto ao entreguismo, devem referir-se ao seu papel nos governos militares. Deixe eu perguntar: algum civil teve algum papel real nos governos militares? Alguém por aí acha que, durante um bom tempo, digo, desde Castelo até Figueiredo, havia de fato alguma margem para agir nas mãos dos antigos gorilas? Vejamos: como foram os votos dos civis e militares na fatídica reunião que instaurou o AI-5, por exemplo? Cada um analise como quiser. Entreguista foi um sujeito como Roberto Campos, se bem que era um entreguista plenamente convicto, com argumentos etc. Um Milton
7. Como é trazer a grife USP no currículo? Que tais as aulas de Scarlet Marton, Marilena Chauí, Bento Prato Júnior e daquele professor mexicano, o Júlio?
Resposta: Antes de mais nada, o professor Júlio Groppa Aquino dá aulas na Faculdade de Educação, em Psicologia da Educação, e não é mexicano (está atualmente no México, em viagem de férias). Meu currículo tem Jornalismo na USP e cursos em pós na mesma universidade, e só. O curso de Filosofia ainda não concluí e infelizmente ainda vai levar algum tempo.
Meu contato com o Júlio foi diferente. Ocorreu no semestre passado. O Júlio ministra Psicologia da Educação. Desencanado com conteúdo e interessado na vivência do professorado, o Júlio provoca o tempo todo. Eu fui fazer o curso para conseguir licenciatura
8. Vc falou no poema Caso do Vestido, de Carlos Drummond. Os poemas dele te agradam?
O Carlos Drummond me foi apresentado pelo Júlio. Eu não conheço suficientemente a obra de Drummond para opinar.
9. Soube que vc gosta de Nietzsche. Vc conhece o filme Os Últimos Dias de Nietzsche em Turim, de Júlio Bressane?
10. Qual sua opinião sobre a união civil dos homossexuais e o direito feminino ao aborto?
Eu não considero que o tema da união civil de homossexuais me afete pessoalmente nem que algo me obrigue, socialmente, a comentá-lo. O tema não me afeta pessoalmente porque não sou homossexual nem luto ou deixo de lutar pela causa deles.
Pessoalmente, acho lamentável que, no século XXI, duas pessoas livres, seja de qual sexo forem,
Mas veja bem: esta opinião é pessoal, diz respeito somente à minha esposa, e caso isso venha a
acontecer. Publicamente, não tenho opinião alguma a respeito. Se um dia for convidado não a
opinar mas a decidir, decidirei, é claro. Só acho lamentável que, no século XXI, as pessoas ainda
não consigam deixar de se apoiar nessa bobagem que é o sentimento diferenciado em relação aos próprios filhos. Nossos filhos não têm nada demais, não. São nossos, poderiam não ser. Se não o forem, paciência. Vivamos e deixemos viver. Matar, para quê? Agora, que deve ser uma merda sentir dentro de si o fruto de quem nos destruiu, isso deve ser. Para mim, contudo, é esse o preço literal de ser ser humano. Sentir-se imortal sabendo que isso é enganação. Deus nos trouxe aqui para nos enganar. Finalizo esta conversa dizendo que, em geral, aprecio muito mais quem apenas produz e, sobre si mesmo, fica calado. Pois no fundo, embora seja o compartilhar o que mais importa, são nossas obras que irão mostrar-nos ao mundo, e não nossos pretensos testemunhos. Esta entrevista apenas comprova a vacuidade do que sou, hoje, e a incapacidade de tornar concretos os meus atos introjetados. Acontece que é isto o que posso fazer, hoje. Preferiria simplesmente ter podido recusar a oportunidade de falar. Mas ando, nos dias de hoje, demasiado enfraquecido para dar-me a tal luxo. Pois sinto que, mesmo fraco, ainda preciso fazer alguma coisa. É para isso, afinal, que serve a palavra, não é? Morrem todos, ela permanece.