Lúcio Jr.
Rodrigo Contrera, jornalista de origem chilena estabelecido no Brasil desde a infância. tenho 35 anos e sou casado. Estuda filosofia, política e religião. Como jornalista, possui experiência em assuntos rurais, reportagem geral e futebol. Traduziu 22 livros, mais alguns textos. Domina o inglês e o espanhol, e arranha o francês e o alemão. Gosta de rock instrumental, jazz contemporâneo, samba, rap, pagode e choros de primeira linha, além de música andina. Arranha o cavaquinho. Dos autores que mais aprecia, cita Weber, Isaiah Berlin, Emil Cioran e Paul Valery. Gosta das pequenas histórias e desconfia de toda teoria, por mais genial que ela for. Como ele próprio define: “Na dúvida, considero que todos somos hipócritas. Não tenho obras publicadas [pelo menos não no formato livro; possui textos em um blog na Internet]”.
1. Qual a sua visão sobre livros que falam sobre o Chile e o golpe de estado, tais como Uma Vida em Trânsito, de Ariel Dorfman?
O caráter simbólico do golpe de 1973 sempre pareceu, para mim, muito mais aglutinador de esperanças e descrenças entre os latino-americanos do que, por exemplo, a guerra civil espanhola entre os europeus e/ou a invasão soviética de Praga, em 1968 (a chamada Primavera). Isso fez com que os latino-americanos ditos pensantes sempre me aparecessem separando os chilenos, muito artificialmente, em partidários e opositores a Pinochet. Como se minha família, que morava em um bairro bom de Santiago na época do golpe, necessariamente caísse no estigma do "conservador safado" só por bater panelas em época de carestia. Como se meu pai, que sempre trabalhou em multinacionais mas que nem curso superior tinha, necessariamente fosse um burguês nojento em oposição a uma classe trabalhadora organizada. Para os brasileiros, ainda hoje chileno que emigra necessariamente é por motivo político. Como nós emigramos mesmo devido ao desemprego passamos então como se fôssemos gente menor, menos "importante" que qualquer partidário da esquerda. Isso também é o que derivo dos livros sobre o Chile ou de chilenos de antes e depois do golpe. Ler Isabel Allende é chique. Miguel Littín, herói. Skármeta, poesia. Acontece que Isabel nada seria se o seu pai não tivesse morrido assassinado no
É sobremaneira irritante, por outro lado, a facilidade com que essa intelectualidade boçal assume para si a autoridade de falar do golpe como se fosse um patrimônio pessoal. Isso não é típico apenas da classe média chilena, claro. Isso acontece aqui no Brasil, também. Hoje todo mundo é ex-exilado. Exílio, assim, é motivo de quase orgulho. Ser obrigado a cair fora, ser expulso por pensar, que maravilha. Aos olhos de todos, parece tão nobre isso, de exilar-se por não conseguir deixar de pensar. Acontece, meus caros, que isso não é exílio. O exílio, quando de fato acontece, é sempre motivo de consternação e vergonha. O exílio, para quem o experimenta seriamente, é uma espécie de queda no tempo, como diria Cioran, uma ausência absoluta de referência, algo que não diz respeito apenas a uma inadequação política qualquer. Basta ler algo de Joseph Brodsky, por exemplo, para começar a entender que o exílio é uma marca indelével que ninguém em sã consciência sai por aí a exibir impunemente. Pois o preço a pagar pelo sentimento do exílio é alto demais. Por motivos pessoais, eu sinto esse exílio, que sempre é uma perda, a tal ponto que recuso-me sequer a respeitar como pessoa quem quer que o transforme em marketing pessoal. Daí a incrível situação a que me vejo obrigado: marginal sem convicção, deslocado sabendo-me crente no sistema, à parte da situação e da oposição, aprimoro as ferramentas da tradição apenas para não fazê-lo com as da traição, que é como me sinto. Traído. Traído por gente que não merece dividir mesa alguma comigo ou com quem faz por merecer.
Pode-se verificar essa cisão a que me vi submetido no próprio estilo de fala e de escrita de pessoas "exiladas de si" como eu. Se por um lado esse tipo de gente costuma apreciar estilo e elegância ao falar e escrever, com freqüência vê-se tomada por lapsos de raiva ou irracionalidade difíceis de explicar.
Os séculos XIX e XX trouxeram à baila pela primeira vez o "homem comum" como protagonista da história. Como segundo passo nessa tendência, surgiu a figura do "anti-herói". Eu, de minha parte, vi-me com o tempo como que "obrigado" a compartilhar a maior validade das experiências do homem comum em relação às dos homens ditos notáveis (o Dorfman, a Allende, o Neruda, Littín, Skármeta dentre estes). Digo haver sido como que "obrigado" a isso porque de forma alguma eu me identifico, de forma genérica, com os ditos homens comuns. Prefiro infinitamente relatos de gente como o imperador romano Marco Aurélio a relatos de gente como eu. Mas o que posso fazer se, com respeito ao golpe e experiências vividas e importantes para mim, os ditos notáveis mostram-se uns bestas ou pusilânimes e, em oposição, encontro maior valor em homens comuns que dividem os espaços comigo de igual para igual (algo que em geral, admito, não me agrada)?
2. Como se deu o seu descobrimento do pensador romeno Emil Cioran? O que acha de um possível flerte dele com o fascismo romeno na juventude?
Cioran entrou em minha vida pela indicação de um então colega que soube de sua morte ao ler sobre ela no jornal. Digo então colega porque hoje considero esse colega um grande amigo. O nome dele é Renato Araújo e estuda filosofia na USP, como eu. Se por um lado conhecer minha esposa trouxe-me aos poucos de volta à vida - é como eu me sinto -, conhecer Cioran salvou-me da esterilidade sem volta do pensamento especulativo. Para mim, Cioran hoje não é um pensador apenas, é um amigo que leio como quem conversa com um amigo distante sobre o sem volta da vida e da morte. Visitei seu túmulo este ano em Paris (está em Montparnasse) e a ocasião, apesar de terrivelmente sem graça como qualquer visita a cemitérios, realmente me marcou. Cioran, que para muitos serve como consolo antidepressivo, a mim toca pela sensibilidade, finesse e lucidez. Mas, por incrível que possa parecer, não são seus escritos o que mais me toca em sua obra, mas suas poucas entrevistas, que sempre me resgatam da especulação vã e me mostram meu lugar em meio aos para sempre patéticos seres humanos. Você repara no cúmulo da preguiça? Cioran quase só escreve em aforismos, os últimos pedaços soltos do pensamento. Mas até estes me cansam, daí que acabe preferindo ouvi-lo. Hoje eu sinto como se a palavra me tivesse sido restituída pela própria morte do "romeno", como eu o chamo. Quem me devolveu a palavra? A indicação de um amigo. O falecimento de Cioran foi-me providencial, portanto. Tão providencial como a de uma pomba, que é como eu o imagino, simbolicamente falando. Ele morava na rua do Odeon, em Paris, no último andar de predios antigos que só têm pombas lá em cima.
Em poucas palavras, não acho nada. Assim como não ligo se alguém é ou foi de direita, de esquerda, a favor ou contra a luta armada, parlamentarista, presidencialista, politicamente engajado ou pateticamente servil. Qualquer que tenha sido seu envolvimento em movimentos fascistas ou comunistas a mim pouco interessa. Já vi fotos de Cioran, jovem, em uniforme de tipo militar ou fascista. Num primeiro instante, até que chocam. Mas, pensando bem, não sinto ter nada a comentar a respeito. Por quê? Porque sou da opinião de que movimentos como o nazismo ou o fascismo não necessariamente deveriam culpabilizar ou estigmatizar. Hoje vincula-se necessariamente o nazismo à matança sistemática de judeus antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Minha opinião é simples: o povo alemão ou qualquer forma de entender a civilização que perpetrou esses crimes está, a meu ver, indelevelmente condenada face os outros povos ou civilizações, e dessa pecha não poderá nunca mais se safar. Pouco importa se foram alguns, muitos ou todos os alemães que cometeram as atrocidades. Hoje, ser alemão é carregar esse estigma, assim como ser membro de uma família socialmente proscrita. Não tem volta. Por outro lado, cada um pensa o que quiser. Hoje, todo neonazista é criminoso socialmente falando. Para mim, neonazista é primeiro meio burro; suspeito, talvez; mas criminoso, até prova em contrário, ele não é. Deixemos cada um pensar ou se expressar como quiser. A sociedade deve sempre, contudo, estar atenta face a usurpadores de liberdades, que é como os neonazistas com freqüência se apresentam. Consideram-se acima dos consensos políticos? Pau neles.
3. Com sua viagem à Europa, você confirmou as idéias de Cioran a respeito da decadência do Velho Continente?
Viajei à Europa a trabalho. Trabalhei cinco dias e folguei dois. Nunca havia saído da América Latina. Não minto quando digo que não estava pessoalmente interessado em conhecer o Velho Continente. O que eu queria era mesmo confirmar ou não algo que Cioran devolveu aos meus sentimentos. Os dias que eu tive de folga em Paris deveram-se ao fato de que ficar uma semana por lá saiu, quanto ao preço do vôo, mais barato à editora do que se eu voltasse em quatro dias. Bom, para responder bem a esta pergunta, preciso explicar como eu sinto tudo aquilo a que ela se refere. Nasci no Chile em uma família de classe média. Meus tios, do lado paterno, têm ascendência escocesa e valorizam esse fato de forma quase ridícula. É como se eles não fossem chilenos. Convivi principalmente com eles uma infância regada a chá, tertúlias às cinco e conversas familiares de bom nível no bairro de Ñuñoa, de classe média alta. Meu pai adorava. Do lado materno, a convivência foi menor. Meus tios de parte de minha mãe sempre moraram no mesmo bairro de classe média (Las Condes) e possuem origens mais humildes. São pessoas comuns, que convivem com as dificuldades de forma prosaica como todo indivíduo não-privilegiado. A exceção é um de meus tios, que foi recentemente governador - nomeado - em uma província do Chile.
Fui criado em boas escolas. Estudei um ano - acho - em um liceu alemão e até a quarta série em uma escola do Estado. Toda segunda-feira a gente cantava o hino nacional chileno. O ensino no Chile em minha época era muito bom e exigente. Sempre fui bom aluno, estudioso e obediente. Cheguei a ser premiado um determinado ano, sei lá por quê (não me lembro).
Minha educação deu-se, portanto, de acordo com o modelo ocidental europeu clássico. Parte dos parentes fingindo não serem chilenos, a outra parte deles não me parecia muito peculiar. Santiago, como dizem, é uma cidade de clima mediterrâneo, e não tem muita coisa de indígena. Uma particularidade de minha criação, que ainda não compreendo muito bem em meu jeito de ser, é haver sido criado muito carinhosamente por uma babá (Justina) que tinha origens indígenas. Outro detalhe é que minhas lembranças de Santiago remetem quase todas ao bairro de Las Condes, de classe média alta, que na época estava em seu começo, sem prédios - até hoje são poucos - e extremamente planejado. Como exemplo, nós tínhamos três praças perto de casa, onde podíamos brincar.Chegar ao Brasil, em 1977, foi um choque. O Brasil é um mundo que não obedece necessariamente ao modelo educacional e civilizatório que no Chile adquire um verniz europeizante. O Brasil, em todos os sentidos, é para mim um enigma em que pessoas de minha criação não conseguem jamais seencaixar com perfeição. Mas identifico no Brasil uma pujança que não consigo identificar com o Chile. Lembro-me agora, por exemplo, de duas coisas. Quando a gente imigrou, surpreendeu-se com o fato de que aqui muitas coisas são as maiores e melhores do mundo. Isso jamais acontece no Chile. Outro detalhe: os chilenos participam de esportes, mas em geral perdem. Os brasileiros, não. Eles ganham, também. E não é raro. O futebol brasileiro é futebol de deuses. E não só o futebol. Podem parecer detalhes desimportantes, mas para quem vem de fora eles assumem grande relevância.
Pois bem. Tendo estudado, no Brasil, por mais de vinte anos, jornalismo e filosofia, mais ciência política e algo de marketing, aprendi a apreciar o valor do conhecimento humanístico clássico. Aprendi também a desmistificar o valor do conhecimento empírico. Tive a oportunidade de remontar à tradição grega e romana, mas felizmente voltei. Passei - ou passeei - pela língua alemã para melhor apreciar os seus frutos. Entrei na língua francesa. Hoje ainda permaneço nela, para melhor apreciá-la. Atrai-me também o italiano. Do inglês, algo me afasta, embora o entenda. Cioran reaproximou-me da convicção quanto ao espírito das línguas. É-se de várias formas quando se é poliglota. Sinto-me um Rodrigo em espanhol, outro em português, outro ainda em francês, em inglês não me sinto, quase incorporo-me com o alemão. Mas, ainda mais importante, Cioran reacendeu uma questão que carregava há tempos: apesar de minha criação e do modelo predominante europeu ocidental na educação e em todo o modelo cultural da América Latina, parece-me sempre
haver sentido que essa tradição, que nos formou - digo "nós" com respeito à América Latina, hispânica ou portuguesa -, atinge-nos quem sabe de maneira ainda mais forte em seus claros sintomas de decadência. Que decadência? Pois bem.
Vou tentar exemplificar com duas prosaicas vivências que experimentei com minha esposa este sábado,
Onde foi que eu senti vida em Paris? Infeliz ou felizmente, nos cemitérios. No Montparnasse, com meu Cioran, ou no Pantheon, com meu também amado Rousseau. Em frente a eles, senti-me, sim,
como
A decadência que eu experimentei em Paris foi mais prosaica - também, tive apenas dois dias para isso. A Paris oficial, eu a vi realmente como um museu; a Paris não-oficial, contudo, ou seja, aquilo que está de fora da Île-de-France, nos níveis
Em resumo, a decadência que o entediado Cioran me relembra remete a uma Europa cujos traços vejo também aqui entre nós, latino-americanos, decadência essa, por sua vez, que nada tem a ver com a tradição negra ou afro-americana, como se diz hoje, ou com a tradição indígena, abafada após tantos anos e gerações em todos os rincões deste continente. Foi em meio a sintomas dessa decadência que - eu percebi quase como quem se vê face a uma assombração - minha educação fora forjada o tempo todo, no Chile e na USP. Mas essa decadência não é necessariamente européia. Essa decadência a experimenta quem assim o deseja; é decadente quem não tenta, por exemplo, como fizeram os negros jazzista norte-americanos do século XX, superar os limites da música erudita por meio do vanguardismo do free jazz (se conseguiram ou não, isso eu não sei); é decadente quem prefere macaquear modismos estrangeiros a entender melhor o seu espírito para trazê-lo, hoje, à vida. Ou todo mundo esqueceu que os romanos tomavam os gregos como referência para superá-los? Claro que não o conseguiram, mas nesse intuito viraram os romanos que a gente conhece. Ou esquece-se que o renascimento é um re-nascimento?
Claro, remeter-se à tradição para reativá-la do nosso jeito particular parece démodé, ou seja, fora de moda. Claro, pois tudo virou expressão individual. A ordem é ser como se é. Pouco importa se Nietzsche, por exemplo, já falou mundos e fundos a respeito. Pouco importa se esse ato é no fundo revolucionário; como implica tradição e vida em estado bruto, é recusado pela simples fruição do "novedoso" (escrevo em espanhol por não encontrar equivalente em português), ou seja, do que parece novo sem querer ser nada. A vida se mostra, o que vejo na decadência é a completa vacuidade do que se mostra. A agitação de um Largo 13 é real; a de uma praça Benedito Calixto, aparente. Alguém pode negar que o Largo 13 é uma zona? Não o mesmo acontece para aqueles que freqüentam a praça do mercadinho de antigüidades. O evento será "agito" a depender daquilo que um ou outro ache. Para mim, eventos similares são sempre um tédio. Qual é, neste processo todo, meu único e grande mérito (desculpe-me, mas desse mérito eu não me abstenho)?
O de haver levado tal educação ilustrada ao seu abismo, qual seja, à sua própria negação. Pois não entendo como ilustrada uma educação meramente assimilatória, que é como nos acostumam desde crianças. Nem entendo como ilustrada uma educação que não se permite discutir os pontos-chave que embaralham os nós de qualquer ser vivente. Houve um momento - não sei bem qual - em que eu, ainda envolvido pela mística da educação ilustrada, passei a esboroar meus próprios fundamentos, ao ponto de perceber que muito do que me haviam dito não estava necessariamente errado, mas levava a uma postura inadequada, qual seja, a de quem não admite, por falsa humildade, ousar dar o passo além. Hoje percebo que nosso erro - nosso, de quem? nosso, latino-americano - é, mesmo sem base concreta ou ilustrada, castrarmos nossa vontade de dar esse passo além. Decadente, então, é quem, por comodismo ou covardia, prefere permanecer no meio do caminho. Que fique bem claro, porém, que eu também ainda faço parte deste grupo - se bem que contra minha vontade.
4. Você é contra ou a favor de Lula, o ex-operário que virou burguês?
Outro problema é a forma como as notícias chegam, por uma imprensa sempre viciada que por isso me entedia. Como presidente da República, respeito o Lula. Pela trajetória, invejo-o. Do PT e de todo partido brasileiro, desconfio. Não torço a favor ou contra nada do que vem sendo discutido. Já quanto ao fato de Lula haver virado burguês, considero tal tipo de observação simplória demais ou mesmo uma forma acanhada de ressentimento. Ninguém vira nada, e se vira virou erradamente. O que acontece é que as pessoas progridem ou regridem, e assumem novos comportamentos e posturas em função disso. O chamado comportamento burguês é apenas a cristalização (e portanto imobilização) cultural de seres humanos que se acostumaram a identificar poder com dinheiro e vice-versa. Quem teima em separar estes fatores é, em contraposição, ou aristocrata ou saudosista (predicados que costumam aparecer juntos). Em geral, encaro a política como a crônica pública do absurdo. Vou tentar explicar, o que já é ridículo. Sinto um infinito prazer ao acompanhar qualquer tipo de debate na tribuna (na Câmara Municipal, por exemplo), e busco com afinco identificar homens de virtú nesse ambiente. Quem desenvolveu mais a fundo essa idéia do homem de virtú é Maquiavel, claro. Meu homem de virtú, sob esse aspecto, é todo aquele participante que consegue prever resultados apenas a partir do jogo dos debates e se colocar vitoriosamente em função desses resultados. Em pequenos ambientes, eu me considero - é patético afirmá-lo, mas é verdade - um desses homens. O tempo todo faço previsões nos ambientes de que participo, e geralmente acerto, até porque me imponho tanto quanto posso, da maneira mais disfarçada que consigo.
Reflito agora que esta minha postura tem algo a ver com o jeito de encarar qualquer jogo de futebol. Como não torço para ninguém, vejo apenas as jogadas. Mas como as jogadas políticas não querem dizer mais nada àquilo que me importa - o ser humano -, então não consigo sequer avaliá-las. Avaliar a política como simples estratégia, para mim, é o fim. No frigir dos ovos, porém, o que resta para quem, como eu, ainda tenta achar sentido nesse jogo de forças que nem tem como parâmetro o próprio discurso? Só mesmo o absurdo. Um absurdo peculiar, dado ser público.
Esse absurdo fica patente, por exemplo, no jogo de cena que todo político precisa começar a assumir como máscara tão logo é cobrado publicamente por suas opiniões ou posições. Falar o que de fato acontece torna-se proibido, a não ser que se corra o risco de levar ações sem conta nas costas ou ficar com a pecha de "polêmico". Falar o que se pensa torna-se patético face à real dimensão das coisas e a inexpressiva importância de qualquer opinião diante de fatos inelutáveis. Falar torna-se impeditivo. Como a política funda-se no discurso, instaurado está o absurdo. Político é aquele que não fala, quando foi posto onde quis para justamente fazer uso de seu poder de fala - ou pelo menos assim deveria ser na teoria. Restam os antigos, os fora-de-moda, à
Resposta: Acho que sem a música eu seria um homem morto. Alguém já disse que só quem consegue apreciar música pode ser considerado ser humano. Eu não iria tão longe ou, pensando bem, iria ainda mais longe: para mim, pode-se estar vivo sem gostar de música alguma, mas esse tipo de vida é aquela que nada tem em comum com a vida de mais ninguém. Em suma, é uma vida que não pode ser compartilhada. Uma pessoa dessas não sentiria prazer nem em fazer parte de uma torcida, por exemplo.
Não entendo propriamente de música. Sei distinguir os conceitos principais - harmonia, melodia, ritmo etc. -, e possuo uma cultura musical ampla, regada a muita audição de música erudita e popular de todo tipo. Mas minha relação com a música não é formal, mas introspectiva.
Um colega um dia me perguntou que tipo de música me agrada. Eu respondi, sem pestanejar, "todo tipo". Ele achou que eu estivesse brincando. Aí eu comecei a elencar gêneros eruditos, populares, tradicionais, folclóricos, sem parar, até que de repente parei e disse: "talvez eu não goste daquelas gaitas escocesas, lembram-me a falsidade de gente que não se enxerga" (eu estava pensando em meus familiares chilenos que se acham escoceses). Pois bem.
Quando eu morava com meus pais, não havia jeito de cantar como eu queria. Eu tenho uma voz bem forte, de tenor, e não havia espaço para eu jogar a voz para fora. Daí eu ouvia praticamente música instrumental. Com o tempo, dei-me espaço para um Paulinho da Viola, um Adoniran, ou um João Gilberto, que não precisam ser gritados. Isso me aproximou bastante do Brasil. Hoje canto-os razoavelmente bem. Mas, mais importante, sinto-os bem. Na verdade, sinto melhor um Adorinan do que um João Gilberto, por exemplo. Vivo
Canto a Marselhesa no devido tom para recordar os mortos que descansam lá em Paris e em relação aos quais somos herdeiros mal-agradecidos. Canto também gente mais moderna, mas aí não tanto pelo que sinto mas pela forma como sinto. Uma vida regada a Cole Porter pela voz de Ella não é a mesma que uma vida regada a Roy Orbison, Raul Seixas, Lulu Santos etc. Trabalho minha voz para reviver a música
Musicalmente, o heavy metal é mesmo pobre. Mas adequava-se ao meu perfil, de jovem sem rumo, em busca de referências, por mais fracas que pudessem ser. Nessa época, meus pais enfrentavam problemas e eu andava perdido pelo mundo. O heavy ajudava-me a entrar em contato com algo, o quê, eu não sei nem imagino. A ligação com a música erudita deu-se, logo depois, por buscar referências sérias, duradouras, reconhecidas pela tradição. Experimentei quase tudo, de Bach a Stravinsky ou Messiaen. Hoje até aprecio Varèse, que me foi apresentado pelo Frank Zappa. A música erudita foi, dessa forma, minha maneira de encarar a tradição em seu interior. O jazz veio como forma de assimilar o mundo negro, que sempre me foi muito estranho, e o blues e o country serviram-me para entender a solidão. O Inti Illimani, grupo chileno, veio-me pelas mãos da minha esposa, que me mostrou o cd em uma megastore, sendo que, às lágrimas embora meio contra a vontade, acabei retomando contato com minha antiga pátria. A música restabelece o contato, sempre. Hoje, eu não busco mais novos sons. Busco velhos sons. Sons que me aproximem daquilo que mais profundamente pode expressar o ser humano. Estou à cata, meio desesperado, de mais música mafiosa italiana, agora da Sicília, e logo quem sabe me aproxime de música folclórica bretã, em cantos a capella. Gosto muito da música folclórica romena, e arrependo-me de não haver comprado um belo e caro cd com música cigana também da Romênia. Em free jazz, meu deus é o pianista Cecil Taylor, tão formalista e tão livre como só os indômitos conseguem ser.
6. Qual a sua identificação com Milton Campos, um político que foi da UDN, partido tido
por seus opositores como reacionário e entreguista?
Resposta: O Milton Campos, pelo que sei, sempre primou pela decência. Pessimista convicto, era estóico no trato e audaz na palavra. Um político da antiga, portanto. Hoje os embates dificilmente dão margem à existência de pessoas como ele, mas isso não me impede de tomá-lo como referência.
Acho engraçado que, ainda hoje, exista gente que considera sério rotular alguém de reacionário. Eu sou reacionário, por exemplo. Sou amplamente favorável à tradição. Não há mesmo nada de novo abaixo do sol. O que é ser reacionário? Houve uma época em que ser contra as drogas era ser reacionário. Mas quem é, hoje, a favor delas? O Milton Campos era um sujeito introspectivo afeito à tradição. Não vejo nada de errado nisso.
Quanto ao entreguismo, devem referir-se ao seu papel nos governos militares. Deixe eu perguntar: algum civil teve algum papel real nos governos militares? Alguém por aí acha que, durante um bom tempo, digo, desde Castelo até Figueiredo, havia de fato alguma margem para agir nas mãos dos antigos gorilas? Vejamos: como foram os votos dos civis e militares na fatídica reunião que instaurou o AI-5, por exemplo? Cada um analise como quiser. Entreguista foi um sujeito como Roberto Campos, se bem que era um entreguista plenamente convicto, com argumentos etc. Um Milton
7. Como é trazer a grife USP no currículo? Que tais as aulas de Scarlet Marton, Marilena Chauí, Bento Prato Júnior e daquele professor mexicano, o Júlio?
Resposta: Antes de mais nada, o professor Júlio Groppa Aquino dá aulas na Faculdade de Educação, em Psicologia da Educação, e não é mexicano (está atualmente no México, em viagem de férias). Meu currículo tem Jornalismo na USP e cursos em pós na mesma universidade, e só. O curso de Filosofia ainda não concluí e infelizmente ainda vai levar algum tempo.
Meu contato com o Júlio foi diferente. Ocorreu no semestre passado. O Júlio ministra Psicologia da Educação. Desencanado com conteúdo e interessado na vivência do professorado, o Júlio provoca o tempo todo. Eu fui fazer o curso para conseguir licenciatura
8. Vc falou no poema Caso do Vestido, de Carlos Drummond. Os poemas dele te agradam?
O Carlos Drummond me foi apresentado pelo Júlio. Eu não conheço suficientemente a obra de Drummond para opinar.
9. Soube que vc gosta de Nietzsche. Vc conhece o filme Os Últimos Dias de Nietzsche em Turim, de Júlio Bressane?
10. Qual sua opinião sobre a união civil dos homossexuais e o direito feminino ao aborto?
Eu não considero que o tema da união civil de homossexuais me afete pessoalmente nem que algo me obrigue, socialmente, a comentá-lo. O tema não me afeta pessoalmente porque não sou homossexual nem luto ou deixo de lutar pela causa deles.
Pessoalmente, acho lamentável que, no século XXI, duas pessoas livres, seja de qual sexo forem,
Mas veja bem: esta opinião é pessoal, diz respeito somente à minha esposa, e caso isso venha a
acontecer. Publicamente, não tenho opinião alguma a respeito. Se um dia for convidado não a
opinar mas a decidir, decidirei, é claro. Só acho lamentável que, no século XXI, as pessoas ainda
não consigam deixar de se apoiar nessa bobagem que é o sentimento diferenciado em relação aos próprios filhos. Nossos filhos não têm nada demais, não. São nossos, poderiam não ser. Se não o forem, paciência. Vivamos e deixemos viver. Matar, para quê? Agora, que deve ser uma merda sentir dentro de si o fruto de quem nos destruiu, isso deve ser. Para mim, contudo, é esse o preço literal de ser ser humano. Sentir-se imortal sabendo que isso é enganação. Deus nos trouxe aqui para nos enganar. Finalizo esta conversa dizendo que, em geral, aprecio muito mais quem apenas produz e, sobre si mesmo, fica calado. Pois no fundo, embora seja o compartilhar o que mais importa, são nossas obras que irão mostrar-nos ao mundo, e não nossos pretensos testemunhos. Esta entrevista apenas comprova a vacuidade do que sou, hoje, e a incapacidade de tornar concretos os meus atos introjetados. Acontece que é isto o que posso fazer, hoje. Preferiria simplesmente ter podido recusar a oportunidade de falar. Mas ando, nos dias de hoje, demasiado enfraquecido para dar-me a tal luxo. Pois sinto que, mesmo fraco, ainda preciso fazer alguma coisa. É para isso, afinal, que serve a palavra, não é? Morrem todos, ela permanece.
Um comentário:
o Contrera é um cara fantástico. Criativo, perspicaz, e muito amigo. Suas reflexões não tartamudeiam: são afirmativas, mas isentas daquele ar arrogante típico da intelectualidade boçal.
o Contrera merece muita coisa boa.
abraços
Leonardo, Pirituba
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