quarta-feira, 28 de maio de 2008

Passando em Revista: Blitz com Rodrigo Contrera

Lúcio Jr.

Rodrigo Contrera, jornalista de origem chilena estabelecido no Brasil desde a infância. tenho 35 anos e sou casado. Estuda filosofia, política e religião. Como jornalista, possui experiência em assuntos rurais, reportagem geral e futebol. Traduziu 22 livros, mais alguns textos. Domina o inglês e o espanhol, e arranha o francês e o alemão. Gosta de rock instrumental, jazz contemporâneo, samba, rap, pagode e choros de primeira linha, além de música andina. Arranha o cavaquinho. Dos autores que mais aprecia, cita Weber, Isaiah Berlin, Emil Cioran e Paul Valery. Gosta das pequenas histórias e desconfia de toda teoria, por mais genial que ela for. Como ele próprio define: “Na dúvida, considero que todos somos hipócritas. Não tenho obras publicadas [pelo menos não no formato livro; possui textos em um blog na Internet]”.

1. Qual a sua visão sobre livros que falam sobre o Chile e o golpe de estado, tais como Uma Vida em Trânsito, de Ariel Dorfman?

O caráter simbólico do golpe de 1973 sempre pareceu, para mim, muito mais aglutinador de esperanças e descrenças entre os latino-americanos do que, por exemplo, a guerra civil espanhola entre os europeus e/ou a invasão soviética de Praga, em 1968 (a chamada Primavera). Isso fez com que os latino-americanos ditos pensantes sempre me aparecessem separando os chilenos, muito artificialmente, em partidários e opositores a Pinochet. Como se minha família, que morava em um bairro bom de Santiago na época do golpe, necessariamente caísse no estigma do "conservador safado" só por bater panelas em época de carestia. Como se meu pai, que sempre trabalhou em multinacionais mas que nem curso superior tinha, necessariamente fosse um burguês nojento em oposição a uma classe trabalhadora organizada. Para os brasileiros, ainda hoje chileno que emigra necessariamente é por motivo político. Como nós emigramos mesmo devido ao desemprego passamos então como se fôssemos gente menor, menos "importante" que qualquer partidário da esquerda. Isso também é o que derivo dos livros sobre o Chile ou de chilenos de antes e depois do golpe. Ler Isabel Allende é chique. Miguel Littín, herói. Skármeta, poesia. Acontece que Isabel nada seria se o seu pai não tivesse morrido assassinado no La Moneda. Littín quase nada seria sem a sombra de Pinochet. Skármeta nada seria sem Neruda, que por sua vez não cheirava tão bem assim (era stalinista convicto, não nos esqueçamos). Recuso-me a achar que o drama de minha família, que por diversos motivos quase implodiu, seja menor, sob qualquer aspecto, que qualquer dramazinho dessa gente comezinha. Eu viajei ao Chile, sim, em plena ditadura, passando pela cordilheira, escondido, em uma caravana por direitos humanos. Fiz isso por nenhuma política; foi só para reconhecer minha antiga pátria e dar um adeus àquela que havia sido minha babá e que estava morrendo, doente, em uma favela (callampa) de Santiago. Chegaram a me procurar, os militares safados, em pleno plebiscito pelo não, mas não me acharam, mesmo não me escondendo. A caravana não me é, hoje, motivo de orgulho. Mas só em meu gesto reconheço-me fazendo bem mais do que todos os hoje heróis da resistência. É isso, como exemplo, o que me afasta sobremaneira de relatos do tipo do Dorfman. O cara é hoje um certo tipo de celebridade. Trabalhou para o Allende, pré-golpe. Exilou-se. Dividiu-se, cindiu-se, ok. Até que seu relato é interessante. Mas tem algo de falso, de canhestro. Tem algo de gente que quer se mostrar algo mais do que é, do que foi, do que jamais será. Tem algo de intelectualidade boçal. Menos sofrimento que pose. Vaidade, em suma. Prefiro gente como um certo chileno que trabalhou comigo poucos meses na editora onde ainda trabalho como jornalista. Gente medíocre que mal consegue digerir o ódio acumulado durante todos aqueles anos de arbítrio e que pena para sobreviver dividida culturalmente de forma muito mais atroz que esse tal Dorfman. Gente que, apesar de causar-me certo mal-estar, tem comigo muito mais em comum do que essa intelectualidade boçal (e olha que venho me tornando um destes). Talvez seja isso o que me aproxima mais de um Cioran do que de um Ionesco, por exemplo, ambos romenos e expatriados.

É sobremaneira irritante, por outro lado, a facilidade com que essa intelectualidade boçal assume para si a autoridade de falar do golpe como se fosse um patrimônio pessoal. Isso não é típico apenas da classe média chilena, claro. Isso acontece aqui no Brasil, também. Hoje todo mundo é ex-exilado. Exílio, assim, é motivo de quase orgulho. Ser obrigado a cair fora, ser expulso por pensar, que maravilha. Aos olhos de todos, parece tão nobre isso, de exilar-se por não conseguir deixar de pensar. Acontece, meus caros, que isso não é exílio. O exílio, quando de fato acontece, é sempre motivo de consternação e vergonha. O exílio, para quem o experimenta seriamente, é uma espécie de queda no tempo, como diria Cioran, uma ausência absoluta de referência, algo que não diz respeito apenas a uma inadequação política qualquer. Basta ler algo de Joseph Brodsky, por exemplo, para começar a entender que o exílio é uma marca indelével que ninguém em sã consciência sai por aí a exibir impunemente. Pois o preço a pagar pelo sentimento do exílio é alto demais. Por motivos pessoais, eu sinto esse exílio, que sempre é uma perda, a tal ponto que recuso-me sequer a respeitar como pessoa quem quer que o transforme em marketing pessoal. Daí a incrível situação a que me vejo obrigado: marginal sem convicção, deslocado sabendo-me crente no sistema, à parte da situação e da oposição, aprimoro as ferramentas da tradição apenas para não fazê-lo com as da traição, que é como me sinto. Traído. Traído por gente que não merece dividir mesa alguma comigo ou com quem faz por merecer.

Pode-se verificar essa cisão a que me vi submetido no próprio estilo de fala e de escrita de pessoas "exiladas de si" como eu. Se por um lado esse tipo de gente costuma apreciar estilo e elegância ao falar e escrever, com freqüência vê-se tomada por lapsos de raiva ou irracionalidade difíceis de explicar.

Os séculos XIX e XX trouxeram à baila pela primeira vez o "homem comum" como protagonista da história. Como segundo passo nessa tendência, surgiu a figura do "anti-herói". Eu, de minha parte, vi-me com o tempo como que "obrigado" a compartilhar a maior validade das experiências do homem comum em relação às dos homens ditos notáveis (o Dorfman, a Allende, o Neruda, Littín, Skármeta dentre estes). Digo haver sido como que "obrigado" a isso porque de forma alguma eu me identifico, de forma genérica, com os ditos homens comuns. Prefiro infinitamente relatos de gente como o imperador romano Marco Aurélio a relatos de gente como eu. Mas o que posso fazer se, com respeito ao golpe e experiências vividas e importantes para mim, os ditos notáveis mostram-se uns bestas ou pusilânimes e, em oposição, encontro maior valor em homens comuns que dividem os espaços comigo de igual para igual (algo que em geral, admito, não me agrada)?

2. Como se deu o seu descobrimento do pensador romeno Emil Cioran? O que acha de um possível flerte dele com o fascismo romeno na juventude?

Cioran entrou em minha vida pela indicação de um então colega que soube de sua morte ao ler sobre ela no jornal. Digo então colega porque hoje considero esse colega um grande amigo. O nome dele é Renato Araújo e estuda filosofia na USP, como eu. Se por um lado conhecer minha esposa trouxe-me aos poucos de volta à vida - é como eu me sinto -, conhecer Cioran salvou-me da esterilidade sem volta do pensamento especulativo. Para mim, Cioran hoje não é um pensador apenas, é um amigo que leio como quem conversa com um amigo distante sobre o sem volta da vida e da morte. Visitei seu túmulo este ano em Paris (está em Montparnasse) e a ocasião, apesar de terrivelmente sem graça como qualquer visita a cemitérios, realmente me marcou. Cioran, que para muitos serve como consolo antidepressivo, a mim toca pela sensibilidade, finesse e lucidez. Mas, por incrível que possa parecer, não são seus escritos o que mais me toca em sua obra, mas suas poucas entrevistas, que sempre me resgatam da especulação vã e me mostram meu lugar em meio aos para sempre patéticos seres humanos. Você repara no cúmulo da preguiça? Cioran quase só escreve em aforismos, os últimos pedaços soltos do pensamento. Mas até estes me cansam, daí que acabe preferindo ouvi-lo. Hoje eu sinto como se a palavra me tivesse sido restituída pela própria morte do "romeno", como eu o chamo. Quem me devolveu a palavra? A indicação de um amigo. O falecimento de Cioran foi-me providencial, portanto. Tão providencial como a de uma pomba, que é como eu o imagino, simbolicamente falando. Ele morava na rua do Odeon, em Paris, no último andar de predios antigos que só têm pombas lá em cima.

Em poucas palavras, não acho nada. Assim como não ligo se alguém é ou foi de direita, de esquerda, a favor ou contra a luta armada, parlamentarista, presidencialista, politicamente engajado ou pateticamente servil. Qualquer que tenha sido seu envolvimento em movimentos fascistas ou comunistas a mim pouco interessa. Já vi fotos de Cioran, jovem, em uniforme de tipo militar ou fascista. Num primeiro instante, até que chocam. Mas, pensando bem, não sinto ter nada a comentar a respeito. Por quê? Porque sou da opinião de que movimentos como o nazismo ou o fascismo não necessariamente deveriam culpabilizar ou estigmatizar. Hoje vincula-se necessariamente o nazismo à matança sistemática de judeus antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Minha opinião é simples: o povo alemão ou qualquer forma de entender a civilização que perpetrou esses crimes está, a meu ver, indelevelmente condenada face os outros povos ou civilizações, e dessa pecha não poderá nunca mais se safar. Pouco importa se foram alguns, muitos ou todos os alemães que cometeram as atrocidades. Hoje, ser alemão é carregar esse estigma, assim como ser membro de uma família socialmente proscrita. Não tem volta. Por outro lado, cada um pensa o que quiser. Hoje, todo neonazista é criminoso socialmente falando. Para mim, neonazista é primeiro meio burro; suspeito, talvez; mas criminoso, até prova em contrário, ele não é. Deixemos cada um pensar ou se expressar como quiser. A sociedade deve sempre, contudo, estar atenta face a usurpadores de liberdades, que é como os neonazistas com freqüência se apresentam. Consideram-se acima dos consensos políticos? Pau neles.

3. Com sua viagem à Europa, você confirmou as idéias de Cioran a respeito da decadência do Velho Continente?

Viajei à Europa a trabalho. Trabalhei cinco dias e folguei dois. Nunca havia saído da América Latina. Não minto quando digo que não estava pessoalmente interessado em conhecer o Velho Continente. O que eu queria era mesmo confirmar ou não algo que Cioran devolveu aos meus sentimentos. Os dias que eu tive de folga em Paris deveram-se ao fato de que ficar uma semana por lá saiu, quanto ao preço do vôo, mais barato à editora do que se eu voltasse em quatro dias. Bom, para responder bem a esta pergunta, preciso explicar como eu sinto tudo aquilo a que ela se refere. Nasci no Chile em uma família de classe média. Meus tios, do lado paterno, têm ascendência escocesa e valorizam esse fato de forma quase ridícula. É como se eles não fossem chilenos. Convivi principalmente com eles uma infância regada a chá, tertúlias às cinco e conversas familiares de bom nível no bairro de Ñuñoa, de classe média alta. Meu pai adorava. Do lado materno, a convivência foi menor. Meus tios de parte de minha mãe sempre moraram no mesmo bairro de classe média (Las Condes) e possuem origens mais humildes. São pessoas comuns, que convivem com as dificuldades de forma prosaica como todo indivíduo não-privilegiado. A exceção é um de meus tios, que foi recentemente governador - nomeado - em uma província do Chile.

Fui criado em boas escolas. Estudei um ano - acho - em um liceu alemão e até a quarta série em uma escola do Estado. Toda segunda-feira a gente cantava o hino nacional chileno. O ensino no Chile em minha época era muito bom e exigente. Sempre fui bom aluno, estudioso e obediente. Cheguei a ser premiado um determinado ano, sei lá por quê (não me lembro).

Minha educação deu-se, portanto, de acordo com o modelo ocidental europeu clássico. Parte dos parentes fingindo não serem chilenos, a outra parte deles não me parecia muito peculiar. Santiago, como dizem, é uma cidade de clima mediterrâneo, e não tem muita coisa de indígena. Uma particularidade de minha criação, que ainda não compreendo muito bem em meu jeito de ser, é haver sido criado muito carinhosamente por uma babá (Justina) que tinha origens indígenas. Outro detalhe é que minhas lembranças de Santiago remetem quase todas ao bairro de Las Condes, de classe média alta, que na época estava em seu começo, sem prédios - até hoje são poucos - e extremamente planejado. Como exemplo, nós tínhamos três praças perto de casa, onde podíamos brincar.Chegar ao Brasil, em 1977, foi um choque. O Brasil é um mundo que não obedece necessariamente ao modelo educacional e civilizatório que no Chile adquire um verniz europeizante. O Brasil, em todos os sentidos, é para mim um enigma em que pessoas de minha criação não conseguem jamais seencaixar com perfeição. Mas identifico no Brasil uma pujança que não consigo identificar com o Chile. Lembro-me agora, por exemplo, de duas coisas. Quando a gente imigrou, surpreendeu-se com o fato de que aqui muitas coisas são as maiores e melhores do mundo. Isso jamais acontece no Chile. Outro detalhe: os chilenos participam de esportes, mas em geral perdem. Os brasileiros, não. Eles ganham, também. E não é raro. O futebol brasileiro é futebol de deuses. E não só o futebol. Podem parecer detalhes desimportantes, mas para quem vem de fora eles assumem grande relevância.

Pois bem. Tendo estudado, no Brasil, por mais de vinte anos, jornalismo e filosofia, mais ciência política e algo de marketing, aprendi a apreciar o valor do conhecimento humanístico clássico. Aprendi também a desmistificar o valor do conhecimento empírico. Tive a oportunidade de remontar à tradição grega e romana, mas felizmente voltei. Passei - ou passeei - pela língua alemã para melhor apreciar os seus frutos. Entrei na língua francesa. Hoje ainda permaneço nela, para melhor apreciá-la. Atrai-me também o italiano. Do inglês, algo me afasta, embora o entenda. Cioran reaproximou-me da convicção quanto ao espírito das línguas. É-se de várias formas quando se é poliglota. Sinto-me um Rodrigo em espanhol, outro em português, outro ainda em francês, em inglês não me sinto, quase incorporo-me com o alemão. Mas, ainda mais importante, Cioran reacendeu uma questão que carregava há tempos: apesar de minha criação e do modelo predominante europeu ocidental na educação e em todo o modelo cultural da América Latina, parece-me sempre

haver sentido que essa tradição, que nos formou - digo "nós" com respeito à América Latina, hispânica ou portuguesa -, atinge-nos quem sabe de maneira ainda mais forte em seus claros sintomas de decadência. Que decadência? Pois bem.

Vou tentar exemplificar com duas prosaicas vivências que experimentei com minha esposa este sábado, em São Paulo. Precisava ir de manhã ao Largo 13 de Maio, em Santo Amaro. Fomos os dois, de carro. Quem conhece sabe o que é esse Largo. Uma zona. Um mercado aberto enorme, espalhado em ruas confusas. Fizemos o que tínhamos de fazer rapidamente e fomos embora. À tarde resolvemos passar na praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde aos sábados funciona um mercado de antigüidades. Confesso haver ficado de certa forma surpreso com o bom nível do local. Bares bons, gente bonita, bons produtos etc. Parecia às vezes que estávamos em uma espécie de shopping. Pois bem. Que diferença que é visitar o Largo 13 e a praça Benedito Calixto. O Largo 13 é sujo, bagunçado, mal-cheiroso etc. Tirando porém as coisas que mais afetam os de estômago sensível, o Largo 13 pareceu-me mais que nunca vivo, animado, latejante de energia. Gente jovem vendendo a quem passa na rua. Carregadores jovens e fortes. Tem pouco velho na rua, inclusive. Já a praça Benedito Calixto tem também bastante jovem. Mas eles ficam nos bares. Ou vendem bugigangas bonitas, sim, mas inúteis. Camisetas com John Lennon, Che Guevara, dizeres engraçadinhos, esse tipo de coisa. Jovens em carros bons, bem-vestidos, alegres etc. Cachorros com pedigree, rapazes idem. Pois bem, o que é que eu prefiro? A pujança. Por que a pujança? Porque a vida, quando surge, é sempre pujante, e a vida é sempre "para a frente", afirmativa, declamadora. A vida é, sem nenhum trocadilho, viva. Pois esta vida eu a encontro com mais clareza e força em lugares como o Largo 13 ou a rua 25 de março do que em shoppings ou mercados do tipo da praça Benedito Calixto, freqüentada pela classe média alta paulistana. Pois bem, agora sim posso responder à pergunta. O que é que eu vi em Paris? Um museu ao ar livre freqüentado por uma imensidão de turistas, a maioria europeus ou norte-americanos (estes, em geral incultos), que não expressavam vida. O Champs Élysées, lembro-me, tinha muito a ver com barzinhos do tipo que hoje eu vi na praça Benedito Calixto. Alemães e alemãs, americanos, italianos etc. fortes e saudáveis, em geral bem-vestidos, animados, bem-humorados, nada fazendo em bares ao largo do Champs Élysées em frente ao Arco do Triunfo. Olhando o tempo passar. Confesso haver ficado bem entediado ao ver o que era o lugar - que visualmente, porém, é magnífico. Acontece que para mim um lugar, estritamente falando, depende em primeiro lugar do espírito da gente que lá vive, da sede de vida que a gente sente, do élan que faz as vontades surgirem, se mesclarem, serem impostas e/ou subjugadas. Nesses lugares míticos em primeiro lugar e turísticos em último (mas é nisto que eles se tornaram), não senti vida nenhuma. Nada mesmo.

Onde foi que eu senti vida em Paris? Infeliz ou felizmente, nos cemitérios. No Montparnasse, com meu Cioran, ou no Pantheon, com meu também amado Rousseau. Em frente a eles, senti-me, sim, em casa. Que casa, porém? Não sou francês, claro, mas sou humano. E todos nós sabemos o quanto a civilização ocidental deve à civilização francesa em quase todo aspecto. Escolha o que quiser. O que seríamos nós, em termos de política, sem a Revolução Francesa? E sem a literatura francesa? E sem a história francesa? Pois bem, se há algo que experimentei vivamente em Paris foi o tempo passado, a convicção de que a vida, lá, atingiu níveis inesperados mas já se foi, e que agora permanecem por lá os melancólicos ou os descrentes. Esse sentimento, que alguns reputarão ocidentais por natureza, não sinto no Brasil que pulsa e que vive, sempre forte, em rincões como o Largo 13, por exemplo. Em Paris, tudo é história. Todo prédio parece estar banhado por ela. É

como em Ouro Preto, onde por pouco sentimos Tiradentes passar na rua. Qual o espaço para os vivos em lugares como aqueles? Muito pouco. Deve ser difícil viver em Paris - não digo economicamente, pois isso é óbvio. Morrer, por outro lado, ou em outras palavras definhar, deve ser fácil. A decadência experimentada por Cioran na França deste século teve tudo a ver com a língua que ele adotou e com o histórico do lugar. Os franceses, ele sempre diz, fizeram por muito tempo a história e a isso se acostumaram; a Romênia, de onde ele imigrou, nunca a fez. Quanto à língua, Cioran sempre fala do romeno como língua bárbara, indomável; o francês, por outro lado, é para ele a civilização enrustida, domada ao extremo, esgotada pelos escrúpulos civilizatórios de toda sociedade avançada.

A decadência que eu experimentei em Paris foi mais prosaica - também, tive apenas dois dias para isso. A Paris oficial, eu a vi realmente como um museu; a Paris não-oficial, contudo, ou seja, aquilo que está de fora da Île-de-France, nos níveis 2 a 5 das linhas do metrô, por exemplo, experimentei como uma grande incógnita. Passei por esta de metrô várias vezes. É a Paris industrial, fervente de agitação e de trabalho. Lá se trabalha muito ou até mais do que em muito lugar por aqui. Mas isso não se reflete na Île-de-France, que vive para agradar os turistas. A Europa viva, ao que parece, também é suja e feia. É a Europa histórica que eu identifico com a decadência. Pois bem, é essa Europa que nós, latino-americanos, muitas vezes identificamos como modelo. É essa Europa que nós, latino-americanos sedentos por cultura, queremos copiar na Filosofia, nas ciências humanas, nas tradições humanísticas etc. Essa Europa é grandiosa, é certo, mas em geral nos é oferecida como se precisasse vir acompanhada por uma certa calcificação que dificulta os movimentos de quem quer ou precisa acima de tudo jogar sua vida ao mundo.

Em resumo, a decadência que o entediado Cioran me relembra remete a uma Europa cujos traços vejo também aqui entre nós, latino-americanos, decadência essa, por sua vez, que nada tem a ver com a tradição negra ou afro-americana, como se diz hoje, ou com a tradição indígena, abafada após tantos anos e gerações em todos os rincões deste continente. Foi em meio a sintomas dessa decadência que - eu percebi quase como quem se vê face a uma assombração - minha educação fora forjada o tempo todo, no Chile e na USP. Mas essa decadência não é necessariamente européia. Essa decadência a experimenta quem assim o deseja; é decadente quem não tenta, por exemplo, como fizeram os negros jazzista norte-americanos do século XX, superar os limites da música erudita por meio do vanguardismo do free jazz (se conseguiram ou não, isso eu não sei); é decadente quem prefere macaquear modismos estrangeiros a entender melhor o seu espírito para trazê-lo, hoje, à vida. Ou todo mundo esqueceu que os romanos tomavam os gregos como referência para superá-los? Claro que não o conseguiram, mas nesse intuito viraram os romanos que a gente conhece. Ou esquece-se que o renascimento é um re-nascimento?

Claro, remeter-se à tradição para reativá-la do nosso jeito particular parece démodé, ou seja, fora de moda. Claro, pois tudo virou expressão individual. A ordem é ser como se é. Pouco importa se Nietzsche, por exemplo, já falou mundos e fundos a respeito. Pouco importa se esse ato é no fundo revolucionário; como implica tradição e vida em estado bruto, é recusado pela simples fruição do "novedoso" (escrevo em espanhol por não encontrar equivalente em português), ou seja, do que parece novo sem querer ser nada. A vida se mostra, o que vejo na decadência é a completa vacuidade do que se mostra. A agitação de um Largo 13 é real; a de uma praça Benedito Calixto, aparente. Alguém pode negar que o Largo 13 é uma zona? Não o mesmo acontece para aqueles que freqüentam a praça do mercadinho de antigüidades. O evento será "agito" a depender daquilo que um ou outro ache. Para mim, eventos similares são sempre um tédio. Qual é, neste processo todo, meu único e grande mérito (desculpe-me, mas desse mérito eu não me abstenho)?

O de haver levado tal educação ilustrada ao seu abismo, qual seja, à sua própria negação. Pois não entendo como ilustrada uma educação meramente assimilatória, que é como nos acostumam desde crianças. Nem entendo como ilustrada uma educação que não se permite discutir os pontos-chave que embaralham os nós de qualquer ser vivente. Houve um momento - não sei bem qual - em que eu, ainda envolvido pela mística da educação ilustrada, passei a esboroar meus próprios fundamentos, ao ponto de perceber que muito do que me haviam dito não estava necessariamente errado, mas levava a uma postura inadequada, qual seja, a de quem não admite, por falsa humildade, ousar dar o passo além. Hoje percebo que nosso erro - nosso, de quem? nosso, latino-americano - é, mesmo sem base concreta ou ilustrada, castrarmos nossa vontade de dar esse passo além. Decadente, então, é quem, por comodismo ou covardia, prefere permanecer no meio do caminho. Que fique bem claro, porém, que eu também ainda faço parte deste grupo - se bem que contra minha vontade.

4. Você é contra ou a favor de Lula, o ex-operário que virou burguês?

Resposta: Os fatos: não votei no Lula; nunca votei nele; no PT, só me lembro de haver votado para vereador ou algo semelhante, nunca um cargo executivo; não faço parte nem participo de nenhum partido; não faço parte de movimento social organizado (não participo sequer das reuniões de condôminos de meu prédio); não voto em nada que me diga respeito (centro acadêmico, plebiscitos, etc.), mesmo que a pedidos; tenho votado nas eleições porque o voto é obrigatório, mas apesar do esforço não me lembro da maioria dos votos que dou. Em suma, na prática meu envolvimento político é mínimo, como aliás acontece com a grande maioria da população (ao menos é o que eu acho). Nos últimos meses, tenho lido os jornais raramente. Estou por fora da maioria dos assuntos relevantes (Previdência etc.). Irrita-me ler qualquer coisa que diga respeito à política atual, seja brasileira ou externa. Isso, apesar de adorar a política, tal como ela é, com seus desvios, absurdos etc. Sinto-me tão assoberbado por meus problemas pessoais que tudo o que vem de fora me afeta excessivamente, e por isso recuso de antemão.

Outro problema é a forma como as notícias chegam, por uma imprensa sempre viciada que por isso me entedia. Como presidente da República, respeito o Lula. Pela trajetória, invejo-o. Do PT e de todo partido brasileiro, desconfio. Não torço a favor ou contra nada do que vem sendo discutido. Já quanto ao fato de Lula haver virado burguês, considero tal tipo de observação simplória demais ou mesmo uma forma acanhada de ressentimento. Ninguém vira nada, e se vira virou erradamente. O que acontece é que as pessoas progridem ou regridem, e assumem novos comportamentos e posturas em função disso. O chamado comportamento burguês é apenas a cristalização (e portanto imobilização) cultural de seres humanos que se acostumaram a identificar poder com dinheiro e vice-versa. Quem teima em separar estes fatores é, em contraposição, ou aristocrata ou saudosista (predicados que costumam aparecer juntos). Em geral, encaro a política como a crônica pública do absurdo. Vou tentar explicar, o que já é ridículo. Sinto um infinito prazer ao acompanhar qualquer tipo de debate na tribuna (na Câmara Municipal, por exemplo), e busco com afinco identificar homens de virtú nesse ambiente. Quem desenvolveu mais a fundo essa idéia do homem de virtú é Maquiavel, claro. Meu homem de virtú, sob esse aspecto, é todo aquele participante que consegue prever resultados apenas a partir do jogo dos debates e se colocar vitoriosamente em função desses resultados. Em pequenos ambientes, eu me considero - é patético afirmá-lo, mas é verdade - um desses homens. O tempo todo faço previsões nos ambientes de que participo, e geralmente acerto, até porque me imponho tanto quanto posso, da maneira mais disfarçada que consigo.

Acontece que atualmente política não significa propriamente debate, mas puro jogo de forças por parte dos mais variados atores sociais. Não me engano mais ao acreditar que o jogo político, hoje, é apenas o mesmo jogo que eu aprecio em maior escala. O ganho de escala experimentado pela política moderna fez com que o melhor - em meu caso - se perdesse. Os cálculos políticos não sendo mais propriamente políticos, mas econômicos ou estratégicos, jogaram por terra todo o valor da palavra e do discurso, e o que resta agora é apenas a contabilidade do cafajeste que em nada mais se compromete. Hoje, todas as jogadas encaram os seres humanos concretos como variáveis, apenas; assim sendo, não vale mais a pena se comprometer com nada que seja humano. Estudei esse ponto de vista na pós em ciência política, na USP.

Pois então, como não me sinto no interior de nenhuma sociedade propriamente dita, sinto-me de fora de qualquer discussão política concreta. Como as discussões em geral são de bastidores, isso faz com que erca ainda mais o interesse - gosto do debate público, como disse. Tudo isso faz com que eu tenda a perder o gosto pela coisa. Por isso não torço a favor nem contra qualquer governo.

Reflito agora que esta minha postura tem algo a ver com o jeito de encarar qualquer jogo de futebol. Como não torço para ninguém, vejo apenas as jogadas. Mas como as jogadas políticas não querem dizer mais nada àquilo que me importa - o ser humano -, então não consigo sequer avaliá-las. Avaliar a política como simples estratégia, para mim, é o fim. No frigir dos ovos, porém, o que resta para quem, como eu, ainda tenta achar sentido nesse jogo de forças que nem tem como parâmetro o próprio discurso? Só mesmo o absurdo. Um absurdo peculiar, dado ser público.

Esse absurdo fica patente, por exemplo, no jogo de cena que todo político precisa começar a assumir como máscara tão logo é cobrado publicamente por suas opiniões ou posições. Falar o que de fato acontece torna-se proibido, a não ser que se corra o risco de levar ações sem conta nas costas ou ficar com a pecha de "polêmico". Falar o que se pensa torna-se patético face à real dimensão das coisas e a inexpressiva importância de qualquer opinião diante de fatos inelutáveis. Falar torna-se impeditivo. Como a política funda-se no discurso, instaurado está o absurdo. Político é aquele que não fala, quando foi posto onde quis para justamente fazer uso de seu poder de fala - ou pelo menos assim deveria ser na teoria. Restam os antigos, os fora-de-moda, à la Pedro Simon, patéticos representantes de uma época perdida. A política real ocorre às custas dessas figuras, geralmente homens que acabam ficando pelo meio do caminho, e que contra tudo e todos insistem em defender coerências inúteis que só guardam seu lugar na história por, durante breves instantes, tentarem atrapalhar os absurdos passos de Clio. Clio é a deusa da história, vc sabe.

Neste aspecto, História e Utopia, do Cioran, foi de grande ajuda para que eu saísse da menoridade a respeito da política. Ainda convivo com os efeitos do golpe de 1973 em minha família, e dado que, apesar de meus esforços continuados, recordo haver sempre sofrido a política, ao invés de nela participado, tendo a encarar a política atual como uma cruz que eu e todos nós, sempre ou quase sempre dela alijados, precisamos carregar apesar de todas as queixas. Qualquer ponto de vista participativo eu considero utópico, ou seja, invenção de desesperados ou criação de quem tem más intenções a respeito. Os antigos à la Pedro Simon estão dentre os desesperados; os outros, no clube dos cafajestes.

5. Fale da sua relação com a música e sua busca de novos sons assim como sua relação com os antigos (por exemplo Inti Ilimani).

Resposta: Acho que sem a música eu seria um homem morto. Alguém já disse que só quem consegue apreciar música pode ser considerado ser humano. Eu não iria tão longe ou, pensando bem, iria ainda mais longe: para mim, pode-se estar vivo sem gostar de música alguma, mas esse tipo de vida é aquela que nada tem em comum com a vida de mais ninguém. Em suma, é uma vida que não pode ser compartilhada. Uma pessoa dessas não sentiria prazer nem em fazer parte de uma torcida, por exemplo.

Bom, a gente sabe que viver é um peso solitário. Nesse sentido, quem vive e não consegue gostar de nenhum tipo de música não tem nada a dever, existencialmente, em relação a uma pessoa comum mas sensível ao poder da música. Acontece que viver assim, isolado, equivale a passar a vida como se fosse um autômato, sem nada a esperar. Para gente assim, todo real contato é bobagem. Em questão de sofrimento, ganha-se muito com isso, pois não se sofre mais, ou pelo menos não se entende o sofrimento como se fosse algo negativo. É a vantagem do psicopata. Pois bem, se até os mafiosos gostam de certo tipo de música, criminoso que consegue passar até sem música não deve poder, nem para eles, ser chamado propriamente de ser humano. No meu caso, é a ligação com a música que me salva, pois sem ela eu já teria caído longe de todo e qualquer semelhante. E creia-me, cheguei bem perto disso.

Não entendo propriamente de música. Sei distinguir os conceitos principais - harmonia, melodia, ritmo etc. -, e possuo uma cultura musical ampla, regada a muita audição de música erudita e popular de todo tipo. Mas minha relação com a música não é formal, mas introspectiva.

Um colega um dia me perguntou que tipo de música me agrada. Eu respondi, sem pestanejar, "todo tipo". Ele achou que eu estivesse brincando. Aí eu comecei a elencar gêneros eruditos, populares, tradicionais, folclóricos, sem parar, até que de repente parei e disse: "talvez eu não goste daquelas gaitas escocesas, lembram-me a falsidade de gente que não se enxerga" (eu estava pensando em meus familiares chilenos que se acham escoceses). Pois bem.

Quando eu morava com meus pais, não havia jeito de cantar como eu queria. Eu tenho uma voz bem forte, de tenor, e não havia espaço para eu jogar a voz para fora. Daí eu ouvia praticamente música instrumental. Com o tempo, dei-me espaço para um Paulinho da Viola, um Adoniran, ou um João Gilberto, que não precisam ser gritados. Isso me aproximou bastante do Brasil. Hoje canto-os razoavelmente bem. Mas, mais importante, sinto-os bem. Na verdade, sinto melhor um Adorinan do que um João Gilberto, por exemplo. Vivo em São Paulo, portanto isso não é coincidência.

Hoje, morando com minha esposa, aprendi a cantar jogando o vozeirão para fora. Quase toda noite, canto algumas músicas. É algo que para mim não beira a prazer, mas a desespero. Ocorre quase sempre meio ao acaso, mas sempre é com a intenção de entrar na música dominando-a em mim. Canto músicas fortes de Inti Illimani para reviver em mim o caráter trágico da matança hispânica. Veja, esta convicção não é algo que me vem a posteriori, mas algo que vivo naquele momento. Por mim, preferiria nem ter de explicar o que sinto, mas já que esta parece ser uma entrevista séria, é isso no fundo o que me acontece. Canto tangos como Volver, do Gardel, para introjetar em mim a tragédia do relacionamento sempre frustrado. Canto Cartola para chorar a voz do morro - pode parecer pouco, mas para mim, ocidentalóide como sou, isso é super importante. Canto músicas da Calábria, de tradição mafiosa, para trabalhar em mim o instinto da vingança - e veja, pode parecer ridículo, mas de fato não estou brincando.

Canto a Marselhesa no devido tom para recordar os mortos que descansam lá em Paris e em relação aos quais somos herdeiros mal-agradecidos. Canto também gente mais moderna, mas aí não tanto pelo que sinto mas pela forma como sinto. Uma vida regada a Cole Porter pela voz de Ella não é a mesma que uma vida regada a Roy Orbison, Raul Seixas, Lulu Santos etc. Trabalho minha voz para reviver a música em mim. Eu preciso disso para viver. Sem isso, não consigo imaginar os meus dias, a tal ponto cheguei em minha ausência íntima de esperança. Minha esposa tem sido responsável por me aproximar a determinados intérpretes e isso, mais que muitos outros fatores, parece-me uma grande e concreta prova de amor. Foi ela que me mostrou o Lulu, que me apresentou o Roy Orbison, que me destacou o caráter positivo do hino homossexual "Dancing Queen", do Abba. Mas um dia serei obrigado a ir além do que ela me mostra e do que posso cantar. Aí, creio, terei achado minha verdadeira voz, se é que isso existe (pode ser ilusão). Hoje eu entendo que tudo isso foi fruto de um processo lento e doloroso.

Quando era adolescente, ouvia heavy metal em tal volume que era como se eu quisesse que a música entrasse em mim. Eu não conseguia. Daí evoluí para heavy metal com tinturas de música erudita, via Malmsteen, Vinnie Moore etc, guitarristas hoje bem conhecidos mas na época apenas em começo de carreira. Queria a complexidade erudita com o linguajar do jovem. Acontece que eu era uma revolta ou um simples jogo de forças. Daí, após uma época progressiva, passei ao blues, country, jazz, mpb, samba, free jazz, música latina etc., não necessariamente nessa ordem. Todo contato musical experimentado por mim, recordo-me, sempre foi traumático, para compensar um contato fundamental irremediavelmente perdido.

Musicalmente, o heavy metal é mesmo pobre. Mas adequava-se ao meu perfil, de jovem sem rumo, em busca de referências, por mais fracas que pudessem ser. Nessa época, meus pais enfrentavam problemas e eu andava perdido pelo mundo. O heavy ajudava-me a entrar em contato com algo, o quê, eu não sei nem imagino. A ligação com a música erudita deu-se, logo depois, por buscar referências sérias, duradouras, reconhecidas pela tradição. Experimentei quase tudo, de Bach a Stravinsky ou Messiaen. Hoje até aprecio Varèse, que me foi apresentado pelo Frank Zappa. A música erudita foi, dessa forma, minha maneira de encarar a tradição em seu interior. O jazz veio como forma de assimilar o mundo negro, que sempre me foi muito estranho, e o blues e o country serviram-me para entender a solidão. O Inti Illimani, grupo chileno, veio-me pelas mãos da minha esposa, que me mostrou o cd em uma megastore, sendo que, às lágrimas embora meio contra a vontade, acabei retomando contato com minha antiga pátria. A música restabelece o contato, sempre. Hoje, eu não busco mais novos sons. Busco velhos sons. Sons que me aproximem daquilo que mais profundamente pode expressar o ser humano. Estou à cata, meio desesperado, de mais música mafiosa italiana, agora da Sicília, e logo quem sabe me aproxime de música folclórica bretã, em cantos a capella. Gosto muito da música folclórica romena, e arrependo-me de não haver comprado um belo e caro cd com música cigana também da Romênia. Em free jazz, meu deus é o pianista Cecil Taylor, tão formalista e tão livre como só os indômitos conseguem ser.

6. Qual a sua identificação com Milton Campos, um político que foi da UDN, partido tido

por seus opositores como reacionário e entreguista?

Resposta: O Milton Campos, pelo que sei, sempre primou pela decência. Pessimista convicto, era estóico no trato e audaz na palavra. Um político da antiga, portanto. Hoje os embates dificilmente dão margem à existência de pessoas como ele, mas isso não me impede de tomá-lo como referência.

Acho engraçado que, ainda hoje, exista gente que considera sério rotular alguém de reacionário. Eu sou reacionário, por exemplo. Sou amplamente favorável à tradição. Não há mesmo nada de novo abaixo do sol. O que é ser reacionário? Houve uma época em que ser contra as drogas era ser reacionário. Mas quem é, hoje, a favor delas? O Milton Campos era um sujeito introspectivo afeito à tradição. Não vejo nada de errado nisso.

Quanto ao entreguismo, devem referir-se ao seu papel nos governos militares. Deixe eu perguntar: algum civil teve algum papel real nos governos militares? Alguém por aí acha que, durante um bom tempo, digo, desde Castelo até Figueiredo, havia de fato alguma margem para agir nas mãos dos antigos gorilas? Vejamos: como foram os votos dos civis e militares na fatídica reunião que instaurou o AI-5, por exemplo? Cada um analise como quiser. Entreguista foi um sujeito como Roberto Campos, se bem que era um entreguista plenamente convicto, com argumentos etc. Um Milton

Campos foi mais um civil a dançar a dança dos generais. Em meio aos civis, enquanto teve tempo, foi um sujeito à antiga. Quem é que hoje agüentaria tanto tempo calado e humilde a traição de um Jânio, que pela frente puxava a candidatura Jânio-Milton, e por detrás alimentava a figura de um Jango, prestes a ser convenientemente enfraquecido? Acho patético que gente sem história se meta a julgar gente que fez algo desta nossa aliás patética história.

7. Como é trazer a grife USP no currículo? Que tais as aulas de Scarlet Marton, Marilena Chauí, Bento Prato Júnior e daquele professor mexicano, o Júlio?

Resposta: Antes de mais nada, o professor Júlio Groppa Aquino dá aulas na Faculdade de Educação, em Psicologia da Educação, e não é mexicano (está atualmente no México, em viagem de férias). Meu currículo tem Jornalismo na USP e cursos em pós na mesma universidade, e só. O curso de Filosofia ainda não concluí e infelizmente ainda vai levar algum tempo.

Dizer que se fez USP, no Brasil, parece equivaler a, nos Estados Unidos, fazer Harvard. Pode ser, mas por mim isso não me faz diferente. Houve uma época em que por causa disso eu me achava especial, e esse foi o meu grande erro. Não há nada de especial em passar na USP. Mas quando você descobre é tarde demais. Nesse momento, todos já te estigmatizaram. Você se torna o geniozinho fresco da USP, mesmo se você não for geniozinho nem fresco. No fundo, concordo com o professor Jaime Cordeiro, também da Educação, para quem universidade é apenas uma forma de ascensão social. Dos professores que você citou, tive aulas apenas com a Scarlet e o Júlio. Todos os professores da Filosofia são competentes, mesmo os menos competentes, e se isso é mérito então todos têm todos os méritos. Mas para mim isso - a capacidade - sempre foi um pré-requisito, não um mérito especial. Acontece que já fiz outra faculdade, esta paga - nego-me a dizer qual -, e de fato a distância entre USP e outras como aquela parece imensa. Nesse sentido, pode até ter cabimento toda essa mística criada em torno da USP. Eu não ligo muito hoje para ela, mas caberia vc perguntar também aos professores o que eles próprios acham dessa mística, porque eu mesmo ainda não me sinto muito à altura para meter-me a avaliar méritos ou deméritos alheios. Pelo que sei, os professores da Filosofia da USP são apenas, em geral, muito bons professores.

Meu contato com o Júlio foi diferente. Ocorreu no semestre passado. O Júlio ministra Psicologia da Educação. Desencanado com conteúdo e interessado na vivência do professorado, o Júlio provoca o tempo todo. Eu fui fazer o curso para conseguir licenciatura em Filosofia. Fui desanimado a todas as aulas, dele e dos outros professores. Mas as provocações do Júlio surtiram efeito. De alguma forma, o ensino passou a adquirir novamente vida para mim. Ele pedia fichamentos, na verdade ele pessoalmente diz nem ligar para isso, mas essa foi a forma rasteira de exigir leituras - o que para ele (e para mim) é o cúmulo; seja como for, não entreguei nenhum dos fichamentos, correndo o risco estúpido de não passar. O trabalho final, sendo uma entrevista, poderia haver sido feito meio nas coxas, dado que já tenho algum traquejo no assunto. Mas novamente me reanimei. Há muito tempo que eu não fazia uma entrevista realmente humana. O garoto que eu entrevistei também gostou do resultado. Em suma, o Júlio reaproximou-me do contato humano e da tradição, algo que ele, imagino, talvez nem consiga imaginar o que representou para mim, pois para mim o jogo já havia sido dado como perdido. Para mim, professor é apenas isso, como se fosse pouco. Aquele que aproxima afastando você de si mesmo e afasta aproximando você de si mesmo. Uma espécie de aprendizado pela auto-sedução. Considero o Júlio um grande professor, e pessoalmente considero-o responsável por atrair-me de volta à grandeza do saber. Mas, saber o quê? Aí, já era. Não há nada mesmo.

8. Vc falou no poema Caso do Vestido, de Carlos Drummond. Os poemas dele te agradam?

O Carlos Drummond me foi apresentado pelo Júlio. Eu não conheço suficientemente a obra de Drummond para opinar.

9. Soube que vc gosta de Nietzsche. Vc conhece o filme Os Últimos Dias de Nietzsche em Turim, de Júlio Bressane?

Resposta: Não sei se gosto de Nietzsche. Entenda bem, eu o leio e o aprecio como autor e estilista da língua. Só não sei ainda se de fato gosto dele. Gostar é para mim considerar como amigo. Não conheço o filme de Bressane.

10. Qual sua opinião sobre a união civil dos homossexuais e o direito feminino ao aborto?

Resposta: Publicamente, não acho nada a respeito e explico por quê. Há dois motivos pelos quais alguém pode se ver obrigado a opinar publicamente a respeito de qualquer assunto. Primeiro motivo, na medida em que se veja imbricado pessoalmente por tal assunto. Segundo motivo, na medida em que esse assunto obrigue-o, socialmente, a se colocar. Em outras palavras, precisa ter opinião pública quem luta por um direito e quem se sente socialmente obrigado a comentá-lo.

Eu não considero que o tema da união civil de homossexuais me afete pessoalmente nem que algo me obrigue, socialmente, a comentá-lo. O tema não me afeta pessoalmente porque não sou homossexual nem luto ou deixo de lutar pela causa deles.

Pessoalmente, acho lamentável que, no século XXI, duas pessoas livres, seja de qual sexo forem,

encontrem obstáculos para viverem juntas. Para mim, isso é realmente patético. Acontece que o
problema diz respeito, não a duas pessoas viverem juntas, mas aos direitos dessas pessoas enquanto vivendo juntas. Ou seja, diz respeito a problemas de herança, separação etc. Aí entra a cultura, como sempre. Por mim, pessoalmente, tudo ainda é muito patético. Quanto ao direito feminino ao aborto, repito que ele por enquanto não me afeta pessoalmente nem me obriga socialmente a comentá-lo. Portanto, publicamente nada tenho a dizer. Pessoalmente, porém, minha opinião é muito dura. Se minha mulher for um dia estuprada por um homem qualquer - que o diabo não me ouça - e ela não se opuser a ter o filho, eu não faria a menor questão de obrigar o aborto do rebento. Em minha opinião, será minha mulher, em primeiro lugar, antes mesmo da lei, quem deve determinar o que fazer. E por mim estará livre a fazer o que quiser, inclusive o aborto ou morrer, independentemente de lei ou qualquer outra coisa. Posso até submeter-me a ser preso, se isso vier a acontecer, mas por mim tudo bem. O mesmo pode acontecer com ela, que para mim, tirando o sofrimento, não ficaria sujeita à menor crítica de minha parte e eu a defenderia até o fim.


Mas veja bem: esta opinião é pessoal, diz respeito somente à minha esposa, e caso isso venha a

acontecer. Publicamente, não tenho opinião alguma a respeito. Se um dia for convidado não a
opinar mas a decidir, decidirei, é claro. Só acho lamentável que, no século XXI, as pessoas ainda
não consigam deixar de se apoiar nessa bobagem que é o sentimento diferenciado em relação aos próprios filhos. Nossos filhos não têm nada demais, não. São nossos, poderiam não ser. Se não o forem, paciência. Vivamos e deixemos viver. Matar, para quê? Agora, que deve ser uma merda sentir dentro de si o fruto de quem nos destruiu, isso deve ser. Para mim, contudo, é esse o preço literal de ser ser humano. Sentir-se imortal sabendo que isso é enganação. Deus nos trouxe aqui para nos enganar. Finalizo esta conversa dizendo que, em geral, aprecio muito mais quem apenas produz e, sobre si mesmo, fica calado. Pois no fundo, embora seja o compartilhar o que mais importa, são nossas obras que irão mostrar-nos ao mundo, e não nossos pretensos testemunhos. Esta entrevista apenas comprova a vacuidade do que sou, hoje, e a incapacidade de tornar concretos os meus atos introjetados. Acontece que é isto o que posso fazer, hoje. Preferiria simplesmente ter podido recusar a oportunidade de falar. Mas ando, nos dias de hoje, demasiado enfraquecido para dar-me a tal luxo. Pois sinto que, mesmo fraco, ainda preciso fazer alguma coisa. É para isso, afinal, que serve a palavra, não é? Morrem todos, ela permanece.

Um comentário:

Anonymous disse...

o Contrera é um cara fantástico. Criativo, perspicaz, e muito amigo. Suas reflexões não tartamudeiam: são afirmativas, mas isentas daquele ar arrogante típico da intelectualidade boçal.
o Contrera merece muita coisa boa.

abraços
Leonardo, Pirituba