INAL DA NOVELA DE MAU GOSTO BRILHANTEMENTE DESCRITA NO ZERO HORA Evento
Línguas sem fronteiras
Performances de Fernando Arrabal e Gerald Thomas no Fronteiras do Pensamento dividem opiniões e criam polêmica
Imagine uma peça chamada Vaidade sem Fronteiras. O enredo seria mais ou menos assim:
Cena 1
Restaurante classe A de uma grande cidade à beira de um lago que todos chamam de rio, domingo à noite. Reunidos em torno de uma mesa, dois artistas trocam idéias, se vangloriam dos grandes nomes que conheceram em suas andanças pelo mundo. Ao falarem de política internacional, um dos artistas, aquele de cabelos crespos e longos, diz algo como:
- O senhor não considera o general Franco um ditador?
O outro, baixinho e puxando de uma perna, reage com violência. Levanta-se intempestivamente, pega um livro de uma mochila e o joga no interlocutor, gritando algo como:
- Meu pai foi morto pelos franquistas.
Pano rápido.
Cena 2
Sala de conferências de um hotel, segunda-feira à tarde. Barulho de repórteres, máquinas fotográficas pipocando durante uma entrevista coletiva. Perguntado sobre o outro artista, o baixinho assume uma pose blasé e ressentida:
- Não sei, nunca ouvi falar.
Sai de cena o baixinho, entra o crespo. Que define seu colega de maneira acre:
- É um sujeito famoso por apenas uma peça, ainda por cima plagiada.
Pano rápido.
Cena 3
Um grande auditório lotado, segunda-feira à noite. Primeiro, o baixinho faz sua palestra, arrancando risadas ao acariciar um pequeno crocodilo de plástico. Depois, entra o crespo, arrancando vaias da platéia ao atacar minorias, ao proclamar que o teatro morreu.
O final da peça fica em aberto, restando apenas o risco de o crespo e o baixinho se encontrarem em algum aeroporto do mundo.
O que você achou deste roteiro? Original? Chato? Frustrante? Os personagens são canastrões? Ou gênios? Você pagaria para assistir? Você entenderia isso como uma provocação ou uma palhaçada? Uma coisa é certa: o argumento não é original, ele narra de maneira fragmentada como foram os poucos dias que os dramaturgos Fernando Arrabal e Gerald Thomas passaram em Porto Alegre, como palestrantes convidados pelo ciclo Fronteiras do Pensamento, no início desta semana.
Depois de segunda-feira passada à noite, a discussão se transferiu para blogs e páginas de jornais (inclusive neste Cultura), felizmente sem conclusão. Porque assim ganhamos mais tempo para tentar definir as fronteiras entre arte e vida. Tanto Arrabal, dramaturgo reconhecido internacionalmente por textos como Cemitério de Automóveis e O Arquiteto e o Imperador da Assíria, além de filmes como Viva la Muerte, quanto Gerald Thomas, responsável por boa parte da renovação que beneficiou o teatro brasileiro nos anos 80 e 90, em montagens como Eletra Com Creta e Carmen com Filtro, são artistas respeitáveis e reconhecidamente provocadores. Tudo certo para que estrelassem uma discussão pacífica e conseqüente sobre teatro, certo? Nada mais errado.
Thomas e Arrabal têm um traço em comum, que é explosivo - ambos parecem desconhecer fronteiras entre o indivíduo e o artista. As conseqüências disso são imprevisíveis. Por um lado, são artistas que se entregam a uma expressão essencialmente autobiográfica, visceral, que condiciona a transformação de si próprios à transformação do público. E isso é muito bom, e é pura arte. Mas também são artistas que se expõem de maneira deliberada e muitas vezes exagerada, parecendo interpretar personagens de si, prisioneiros de uma imagem pública que eles mesmos ajudaram a construir.
Na noite de segunda-feira, frente ao sisudo público do Fronteiras do Pensamento, eles foram fiéis a si mesmos, agiram de improviso e sem pensar nos resultados. Arrabal, eternamente convencido de que os paradoxos podem ser uma ferramenta da arte conseqüente, atuou como um artista que não tinha nada a dizer de importante. Não foi ele mesmo que disse que provocação e humor se confundem? Thomas, e isso é forçoso anotar, em confessa fase depressiva e de profundo autoquestionamento, apelou para o papel de enfant terrible, vestindo dolorosamente uma persona que talvez o ajudasse a enfrentar um compromisso público quando ele talvez desse a vida para estar só. O pacifista Thomas engatilhou sua metralhadora giratória e mandou bala. Mesmo sendo judeu, e tendo praticamente toda a família morta em campos de extermínio nazistas, criticou o Estado de Israel. Mesmo (ainda) artista, decretou a morte do teatro (e nisso ele não foi nada original).
Um dos efeitos colaterais mais nefastos da performance de Thomas e Arrabal foi atiçar uma acusação que paira sobre os artistas, tachados como pessoas que sobrevivem apenas pela exibição orgulhosa dos próprios egos. Bobagem: até para escrever uma coluna ou um comentário em um jornal é necessário que se exponha o ego - e que este esteja bem vitaminado, senão será destruído pelo primeiro pigarro na platéia.
Um dos melhores efeitos da performance foi a de constatar que a uma obra interessante e brilhante (caso dos dois artistas) não corresponde necessariamente um criador interessante e brilhante (pelo menos, não o tempo todo, pelo menos não com horário e local marcados). Na verdade, a dupla Arrabal/Thomas (xi, capaz de eles brigarem para inverter a ordem dos nomes) interpretou personagens que talvez todos nós quiséssemos interpretar: sarcásticos, irreverentes, infantis, onipotentes. Que inveja, né? Ser ator e interpretar a si mesmo.
Dá vontade de vaiar. Ou aplaudir.
RENATO MENDONÇA
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