quarta-feira, 4 de março de 2009

Rudolph Steiner sobre Nietzsche

"Mais tarde entrei em sérios conflitos com Elisabeth Foster-Nietzsche. Naquele tempo, seu espírito amável e ágil angariava minha profunda simpatia. Esses conflitos me causaram indizíveis sofrimentos, tendo sido suscitados por uma complicada situação; fui obrigado a defender-me de acusações. Sei que tudo isso foi necessário e que um véu de amargura veio encobrir a recordação de belas horas passadas no Arquivo Nietzsche em Naumburg e em Weimar; mesmo assim, sou grato à senhora Foster-Nietzsche por ter-me conduzido ao quarto de Friedrich Nietzsche na primeira das numerosas visitas que iria fazer a ela.

Totalmente alienado, lá estava ele – com sua testa maravilhosamente bela, que era ao mesmo tempo a de um pensador e de um artista – estendido num sofá. Eram as primeiras horas da tarde. Aqueles olhos, que apesar de ausentes ainda pareciam preenchidos de alma, captavam do ambiente apenas uma imagem que não tinha acesso algum à alma. Estando alguém lá, Nietzsche nada sabia a respeito. Mesmo assim, ainda se podia acreditar que seu rosto, impregnado de espírito, fosse a expressão de uma alma que tivesse formado pensamentos durante toda a manhã e apenas quisesse repousar um pouco.

Uma íntima comoção que se apoderou de minha alma levou-me a pensar que ela se transformaria em compreensão pelo gênio, cujo olhar me fitava mas não me atingia. A passividade desse demorado olhar provocou a compreensão do meu, que pôde entregar-se ao poder anímico da visão sem que algo se interpusesse em sua mira. E assim vi diante de minha alma: a alma de Nietzsche como que pairando acima de sua cabeça, infinitamente bela em sua luz espiritual, livremente entregue aos mundos espirituais que buscara antes da demência e não encontrara; porém ainda acorrentada ao corpo, que só soubera daquele mundo enquanto o mesmo ainda era anseio nostálgico. A alma de Nietzsche ainda estava presente, mas só podia segurar de fora aquele corpo, que lhe oferecera oposição para desabrochar em sua plena luz enquanto ela estava em seu interior.

Antes eu lera o Nietzsche que havia escrito; agora eu estava contemplando o Nietzsche que havia introduzido em seu corpo idéias trazidas de longínquas regiões espirituais, e que ainda reluziam em beleza, embora tivessem perdido no caminho seu fulgor original. Uma alma que trouxera de existências terrestres anteriores um tesouro dourado de luz, mas incapaz de fazer com que ele brilhasse plenamente nesta vida. Eu admirava o que Nietzsche escrevera; mas agora via, por detrás de minha admiração, uma imagem resplandecente.

Em meus pensamentos eu só era capaz de balbuciar a respeito do que vira; e esse balbuciar é o conteúdo de meu livro “Nietzsche, um lutador contra seu tempo”. Não passando de um balbuciar, esse livro encobre o verdadeiro fato de a imagem de Nietzsche tê-lo inspirado a mim.(…)

Para mim estava claro, naquele tempo: Nietzsche, com certos pensamentos que aspiravam ao mundo espiritual, era um prisioneiro da mentalidade naturalista. Por isso eu me opus fortemente à interpretação mística da sua idéia do eterno retorno; e concordei com Peter Gast, que em sua edição das obras de Nietzsche a conceituou como “a doutrina – a ser entendida de modo puramente mecanicista – da esgotabilidade, isto é, da repetição, das combinações moleculares cósmicas”. Nietzsche acreditava ter de buscar uma idéia das Alturas nos princípios básicos da visão naturalista. Essa foi maneira como teve de sofrer por causa de sua época.
Era assim que se me apresentava, na contemplação da alma de Nietzsche em 1896, o que uma pessoa tinha de padecer, em seu anseio pelo espírito, junto à mentalidade naturalista do final do século XIX”.

Um comentário:

Henrique Hemidio disse...

Não conhecia esse texto
Muito legal ver uma análise íntima de um pensador tão enigmático...
Abraço!