Pacheco: um exemplo da crítica que se faz por aí. Foi publicada no Digestivo Cultural. Só faltou o crítico lembrar que Gerald não fez uma exposição de bunda e sim uma montagem de Tristão e Isolda, né?
Quarta-feira, 3/9/2003
A bunda do Gerald Thomas
Alessandro Silva
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A bunda do Gerald Thomas é uma bunda branca de passarinho.
Ela apareceu quando o público protestou contra a adaptação de Tristão e Isolda no Teatro Municipal do Rio de Janeiro pelo diretor teatral.
Agora está sendo processado por “ato obsceno”.
O diretor defende-se alegando que vai processar quem o processou por “desconhecer a lei e por falta de mobral”.
Em entrevista, citou o Nelson Rodrigues:
– O mesmo público que vaiou “Vestido de Noiva” ( 1953 ) é o público que agora me vaia. Só que antes eles jogavam tomates. Pena não terem jogado nenhum, pois assim eu poderia ter garantido a janta.
Ele prosseguiu:
– Em Londres, eu seria vaiado por uma apresentação convencional. Esse país ( o nosso Brasil ) é de uma cafonice sem tamanho. Já foi em festa da alta sociedade? Usam prata falsa; com coisas de segunda. Isso aqui é o México, a Venezuela.
E:
– E o que tem de mais mostrar a bunda? O Brasil não é o país das bundas? Não é o país que vende e exporta bundas? Isso é de uma hipocrisia sem tamanho!
Quem for assistir à Art Revolution, mostra de arte moderna da galeria Tate de Londres acontecendo no pavilhão da Oca dará razão ao Gerald Thomas.
Não se trata de mera excentricidade. As obras da Tate chegam a ser esquizofrenicamente ofensivas em relação ao público.
Exemplos?
Humpty Fucking Dumpty, do artista plástico Bill Wodroow, onde o mecanicismo e a vulgaridade do sexo é representado por uma espécie de carroça formada por caixas de madeira empilhadas e atadas por uma roda a uma ferramenta de arar.
As obras livremente críticas em relação à indústria farmacêutica do artista plástico Damien Hirst, compostas por vitrines comerciais contendo rótulos ampliados de frascos de remédio – ao invés do nome do medicamento, o nome de uma comida típica pertencente a uma dada região, como por exemplo “charque”, ou “chucrute”.
E a arte descrente de Barry Flanagan, que contesta até a si mesma, como em Casb 2´67 ( 1967 ), obra que recria uma paisagem com quatro cones como montanhas e uma corda muito grossa como rio.
Flanagan que certa vez disse para seu mestre, Anthony Carro:
“Eu poderia alegar ser escultor e fazer tudo menos escultura”.
Gerald Thomas, na verdade, pôs em prática uma idéia do Morissey, cabeça dos Smiths, que na canção "Nowhere Fast" ( 1985 ) diz:
I’d like to drop my trousers to the world (...)
I´d like to drop my trousers to the Queen.
Mas não é justo comparar o público brasileiro com o público londrino.
Como exigir discernimento de um povo que forma opinião através do “Jornal Nacional”?
De um Brasil cujo Ministro da Cultura não passa de um violeiro simplório?
Com a palavra Wilson Martins:
– Somos imaginados pelos estrangeiros como um bando de índios desfilando de tanga pela avenida Rio Branco. ( Revista República, fevereiro/98 )
Ou Bruno Tolentino:
- Não é a toa que até em Portugal os brasileiros viraram piada. Ouvi uma que provocava gargalhadas logo à primeira frase. Um intelectual brasileiro ia começar a ler Camões quando a banda passou e... ( Revista Veja, 20/03/96 )
Mas o público de Londres teve um poeta como T.S.Eliot para lançar-lhe na cara seu fracasso social:
Unreal City
Under the brown fog of a winter dawn
A crowd flowed over London Bridge, so many,
I had not thought deat head undone so many
Sighs, short and infrequent, were exhaled
And eahch man fixed his eyes before his feet.
O público de Londres teve En Attendant a Godott ( 1952 ) em casa para denunciar-lhe o absurdo da existência.
No Brasil, Esperando Godot não provocou reação nenhuma, como no caso de Art Revolution, onde durante as duas horas e meia em que permaneci na exposição, o único comentário que ouvi foi:
- Que horror!
Proveniente de uma Penélope Charmosa - daquelas que tem nojo até de dar bom dia - depois de deparar-se com uma obra composta pela fotografia de uma minúscula casa feita com a pele do próprio artista plástico que sofria de uma doença do gênero.
Se estivesse em Londres, ou Paris, talvez a Penélope teria levado o seu.
Certa feita, durante uma exposição sua, Picasso respondeu a uma senhora bisbilhoteira:
- O que significa esse quadro? Esse quadro, minha senhora, significa cinqüenta mil dólares.
Picasso respondendo a um general francês atônito com “Guernica”:
- O que eu fiz não; o que vocês fizeram.
Mas estamos falando do Brasil, da telenovela, do rock chinfrim, do cinema insolitamente sádico, e da literatura de auto-ajuda.
Oscar Wilde sabia ser a arte imoral por natureza – indo além, algo mau. Mas o que explicar para os homens de cultura geral, aqueles para quem foi preparada a cartilha Flaubert de idéias feitas?
A arte não parece desejar compreensão.
Tristan Tzara gostou de ser vaiado em Paris durante a primeira guerra à leitura de seus Sete Manifestos Dada.
Como seria compreendido pelo público alguém como o poeta francês Tristan Corbière que em Paris, lá por 1880, protestando contra uma lei estúpida que obrigava aos donos de cães mantê-los na coleira durante os passeios, adquiriu uma corrente de quarenta metros para passear com o seu?
Como foi compreendido o silêncio de John Cage ou as buzinas e hélices de avião com função instrumental durante as apresentações sinfônicas de Georg Antheil?
Como foi compreendido Ferreira Gullar quando vestiu-se como um maloqueiro para assistir a uma exposição do Museu de Arte de São Paulo?
E, finalmente, como seria compreendida a bunda de Gerald Thomas?
Alessandro Silva
São Paulo, 3/9/2003
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