Em 84 viramos multidão. Inundamos as ruas. Somamos nosso grito ao grito de todos. Depois gritamos sozinhos. E choramos a derrota sob nossas bandeiras. 88: como aprender a governar e desenhar em cada passo, em cada gesto, a cada dia, a vida nova que nossa boca anunciou? 89: Encarnamos a tempestade. Assombrados pela vertigem dos ventos que desatamos. Venceu a solidez da mentira, do pré-conceito.
Pedro Tierra
Em fins do ano de 1998, creio que nós, filiados ou simpatizantes do PT, encerramos um ciclo. Foi o ciclo de Lula candidato a presidente, que se iniciou em 89 e terminou em 1998, melancolicamente. Mas, quando cai a noite é que sai a ave de Minerva. Agora é preciso refletir.A obra de Martha Honecker, O Sonho Era Possível (São Paulo, Casa América Livre, 1994) mostra uma curiosa situação: uma intelectual nascida no Chile e radicada em Cuba é que organiza a história do Partido dos Trabalhadores. Martha Honecker é autora de um livro chamado Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico, manual que vendeu um milhão de exemplares pelo mundo afora. Louis Althusser refere-se elogiosamente a esse livro em sua autobiografia O Futuro Dura Muito Tempo, afirmando que ele foi baseado em suas idéias. O marxismo de Althusser é uma interpretação peculiar, anti-historicista, anti-humanista e escrito num jargão só acessível a iniciados, e que precisa ser explicado em termos claros. Sua principal característica foi o obsessivo rigor lógico-metodológico, fixação que impediu que os dogmas marxistas e leninistas fossem repensados. Seu conceito mais proveitoso a meu ver é o dos aparelhos ideológicos do estado, que explica como a ideologia burguesa é impingida a todas as classes através das escolas, televisões, jornais, etc.
O prefácio do livro da (althusseriana?) Martha Honecker, escrito por Frei Betto, destaca o papel das Comunidades Eclesiais de Base:
Após o golpe militar, em março de 1964, elas se tornaram praticamente o único espaço no qual se podia rearticular as forças populares (...). Nenhum dos partidos históricos ou organizações de esquerda podia reivindicar a paternidade desse movimento social que emergia de baixo para cima, colado às necessidades e aspirações mais imediatas das populações dos bairros e da roça, desprovido de teorias e literaturas, porém dotado de uma linguagem ética e utópica, calcada na Bíblia, de forte ressonância conscientizadora e mobilizadora. (BETTO, 1992: p.18)
Neste trecho observo que Quarup (1967) de Antonio Callado fala justamente desses movimentos sociais e de uma reinvenção esquerdista do Cristianismo, e que aqui foi injustamente omitido.
Martha Honecker preferiu coletar depoimentos, deixando de fazer uma intermediação, não assumindo a responsabilidade de autora que seria de dar uma versão. Assim, o livro é uma “obra aberta”. Os depoimentos, cobrindo o período 1978-80, contam a participação de Francisco Weffort, ministro da cultura a partir de 1994, e de Paul Singer, um dos participantes do seminário de leitura do capital na USP no final dos anos 50, seminário do qual participou o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
A revisão do movimento sindical pré-79 é feito sob a luz de um triunfalismo anti-varguista e anti-populista. Marco Aurélio Garcia pontua:
No caso brasileiro, a única forma pela qual a classe operária tinha aparecido na política brasileira tinha sido através do mecanismo do populismo, muito submissa ao Estado. Alguém poderá dizer que na Argentina também houve populismo, mas na Argentina surgiu através de um movimento operário já muito organizado e forte, que tem uma certa capacidade de negociação com o líder, o Perón. O presidente argentino tem que fazer mais concessões aos sindicatos e, por isso, o peronismo é muito mais radical que o varguismo. No caso brasileiro, o varguismo tem uma inspiração fascista muito mais pronunciada, a idéia de paz social, de equilíbrio, de modelo corporativo. (Garcia, Marco Aurélio. Apud: HONECKER, 1992: p. 28)
Garcia não consegue situar historicamente o peronismo, que foi posterior ao varguismo e se inspirou neste último. Outro detalhe significativo é que Getúlio Vargas volta em 1951 com uma disposição nacionalista e passa a ser combatido pelo imperialismo norte-americano. Já Perón dá uma guinada para a direita quando volta em 1973.
Francisco de Oliveira anota um contexto importante para a compreensão do momento e do lugar onde surgiu o PT:
Ele surgiu no interior de uma contradição intraburguesa. O setor onde o PT nasceu é o setor das empresas multinacionais com uma capacidade de negociação maior do que a burguesia nacional. (Oliveira, Francisco de. Apud: HONECKER, 1992: p.28)
Oliveira detalha mais adiante que essa contradição é entre os oligopólios internacionais e a burguesia nacional: “o grosso da burguesia apoiava o regime militar, mas já havia setores que se colocavam em oposição.” (Oliveira, Francisco. Apud: HONECKER, 1994: p. 29). Oliveira também ressalta o conflito de gerações que se processa dentro da burguesia. Os primeiros empresários eram “gente que ascendeu socialmente, com origem de emigração”. Mas os filhos dessa geração eram gente com curso superior, com mestrado nos Estados Unidos e na Europa. É essa nova geração de empresários que passa a negociar com os operários do ABC paulista, pois essa facção da burguesia desejava reinstalar o liberalismo. A base real do PT está, portanto, na minoria operária integrada e nas pequenas burguesias radicalizadas do centro industrial do País. Reflete, como diz Mangabeira Unger, “partes do operariado organizado na grande indústria e da pequena burguesia radicalizada. Essa esquerda prefere o vocabulário e as práticas das velhas e novas esquerdas da Europa.” (MANGABEIRA UNGER, 1990: p.57)
O PT, quando surge como uma nova opção de esquerda, renega a esquerda trabalhista anterior. O corte que dá origem a dois tipos distintos de trabalhismo ocorre nesse momento. Ocorre em decorrência de um dualismo econômico, em que a esquerda trabalhista, que permanece representando um País excluído, com pequenas burguesias e trabalhadores do Brasil mais pobre, diverge da esquerda “dos trabalhadores”, que se concentra nas regiões mais industrializadas da nação. O partido dos trabalhadores já surge com o nome influenciado pelo Labor Party britânico, e há quem diga, como Paulo Skromov que: “a Convergência queria que o PT fosse igual ao Labor Party inglês”(Skromov, apud: HONECKER, 1992: p. 66). Afirmação curiosa, pois a Convergência abandonou o PT para formar o PSTU, partido marxista-leninista centrado no trostquismo. E a “esquerda literária” de estudantes e intelectuais, com maior fundamentação teórica, marcadamente presente no período 1964-68, passa a criticada como representante do pré-64, e esta acusação tem uma carga injusta de rompimento com as experiências anteriores de mobilização popular. O pioneirismo que marcou a experiência dos CPCs e do ISEB é abandonado, em vez de revisto. Em lugar dele surge uma vontade de se comunicar com o povo de qualquer maneira, mesmo que empobrecendo a discussão, como faz Alcides Modesto:
Na linguagem deles, você não ia falar de luta de classes, você comparava...Você começava a dizer: “Olha, o óleo não se une com a água. Patrão é patrão e trabalhador é trabalhador. Trabalhador só se une com trabalhador. Água só se une com água. Água com óleo se mistura, mas não se une. (Modesto. Apud: HONECKER, 1994: p.42)
Note-se aí que o papel do intelectual e do estudante que se alia com os trabalhadores foi repudiado. O poema de Pedro Tierra é um exemplo dessa “arte engajada”: embora tão pobre esteticamente quanto os textos produzidos pelo cepecismo, não esboça nem a questão do subdesenvolvimento, nem a dominação norte-americana e pior, pontua 1989 sem citar a queda do Leste Europeu.
A esquerda renovada representada pelo PT demonstra um avanço ao absorver novas teorias, como a da hegemonia formulada por Gramsci, mas recomeça do zero, negando a herança nacionalista e desenvolvimentista. E há um desejo explícito de partir da prática sem teorizar anteriormente. Lula tem esse pragmatismo que dá resultados práticos, mas avança num voô cego. A confusão ideológica fica patente em algumas frases:
Foi a primeira greve geral depois de 1968. Essa greve resultou, possivelmente, em um dos movimentos que mais solidariedade recebeu. Ou seja, guardadas as proporções, acho que a nossa greve em 78 representou para a sociedade brasileira representou o que representou a greve de Gdansk para os polacos. (Lula, apud: HONECKER, 1992, p.43)
A aproximação paradoxal entre a situação polonesa e a brasileira é fruto de uma análise desprovida de qualquer ferramenta teórica. Ela surge como resultado do paralelo estabelecido entre as duas situações históricas, entre as quais existe um abismo. O paralelo foi estabelecido pelos meios de comunicação de massa e mais grave é que um líder operário brasileiro o repetiu mecanicamente. Sabemos da simpatia dos norte-americanos e do Papa Karol Wojtyla em relação aos operários poloneses – esta não era uma simpatia desinteressada. Consta que existiram encontros entre Ronald Reagan e o Papa João Paulo II, resultando numa aliança em que até satélites foram utilizados no sentido de investigar a possibilidade de uma invasão russa na Polônia. Por fim, Lech Walesa e os dez mil operários foram usados por Karol Wojtyla para retomar o prestígio da Igreja Católica em seu país natal. O conservadorismo e deslumbramento com a mídia são fatos hoje evidentes no comportamento político do Vaticano.
Outras frases de Lula que a imprensa de direita trombeteou foram as seguintes: “Não quero saber de estudantes, de padres nem de intelectuais”. E ele também repetiu uma frase de Joãozinho Trinta: “Quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta de luxo”. Os estudantes, padres e intelectuais e a miséria são o cerne da “estética da fome” de Glauber Rocha, e estão presentes em vários de seus filmes. Estava também impossibilitada a interlocução com Glauber devido ao momento histórico: Glauber apoiava decididamente a política de abertura de Geisel, no momento em que os operários do ABC se insurgiram contra o governo militar. Advogava também ser basicamente nacionalista, acreditando na possibilidade dos militares nacionalistas assumirem um papel revolucionário no Terceiro Mundo. Já Lula é basicamente um pragmático, um intuitivo, como ele mesmo define:
Muitas vezes, eu prefiro trabalhar com a minha intuição do que com a coisa mais ou menos elaborada na cabeça. Acho que, às vezes, a intuição permite que você coloque um pouco o coração nas coisas e eu acho que fazer política sem o coração deixa a gente muito duro, deixa a gente muito realista, acho que isso não é legal para a política. (Lula, apud: HONECKER, 1992: p. 98)
Essas e outras características do partido dos trabalhadores serão muito úteis no combate da ditadura em seus últimos dias, mas se tornarão questionáveis no contexto de democracia capitalista. O PT em seus primórdios convive com a esquerda do MDB, é envolvido por Fernando Henrique Cardoso, que o partido chegou a apoiar em sua campanha para senador em 1978, o que teria “aumentado a base eleitoral do PT”. Consta que no fim dos anos 70, Lula, Paulo Skromov e outros sindicalistas encontravam-se com os intelectuais de “centro-esquerda” José Serra e Fernando Henrique Cardoso em “reuniões no escritório de Fernando Henrique nos Jardins”. (Skromov, apud: HONECKER, 1992, p.82) Esses encontros, Leonel Brizola definiu em entrevista à Rede Globo em setembro de 1979: “os intelectuais de São Paulo estão botando minhoca na cabeça do Lula”.
Esse contexto será adverso a uma política cultural petista. O contexto em que o partido surge é o da retomada da experiência da democracia capitalista internacionalizante. O partido dos trabalhadores nunca propôs algo como o projeto nacional-popular do PCB, muito pelo contrário. Talvez devido ao fato de que o PCB se aliou com uma tradição trabalhista com a qual o PT estabeleceu uma relação de “continuidade e ruptura”. No entanto, a ruptura com a linha trabalhista Getúlio-Jango-Brizola é mais marcante. O marxismo também entra na “frente” que compõe o partido, mas é apenas mais um componente de sua maionese ideológica. O PT não tem uma filiação estabelecida. Não obstante, vários pais simbólicos são vítimas de críticas: Karl Marx, Luiz Carlos Prestes, Getúlio Vargas. O próprio funcionamento do partido extrapola quaisquer teorias marxistas, como diz Weffort:
O PT tem marxistas dentro, mas certamente não é um partido marxista. Não é um partido marxista no sentido leninista. Obviamente não é. E não é um partido marxista num padrão social-democrata original. Também não é. O PT não é um partido marxista em nenhuma acepção do termo (...) . É um partido onde os marxistas têm influência, mas não se orienta segundo os critérios que se pode deduzir de uma teoria política do partido dentro do marxismo nessa variante ou naquela outra. Não se consegue encontrar isso. (Weffort, apud: HONECKER, 1992)
O que resulta dessa desorientação é que o trabalhismo petista se espelha no trabalhismo dos países desenvolvidos, o norte-americano e o britânico. Só que os ganhos da elite do proletariado do Primeiro Mundo não são possíveis na periferia do capitalismo, e o pensamento de esquerda nos Estados Unidos e na Europa pós-1989 é minoritário e quase sempre anarquista, ecológico, de “nova esquerda”. Isso é determinado pela própria situação colonial do País e sua postura na divisão internacional do trabalho.
A dificuldade do PT em produzir fatos materiais no campo da cultura está na ruptura com o projeto nacional-popular, acompanhando os marxistas da USP, que nem sequer aceitam começar uma discussão usando esse conceito, como prova a coleção O Nacional e Popular na Cultura Brasileira: nessa coleção, o nacional-popular aparece representado por um nó. Por outro lado, o tropicalismo, pioneiro em aproveitar o espaço na mídia aberto pela derrocada do populismo de esquerda e seu projeto estético, propõe muito pouco e se satisfaz em desconstruir com bom humor, senão sarcasmo, as propostas do período 1961-64 à luz de modas internacionais. O grupo baiano não está acessível pois desde sempre demonstrou descompromisso com a esquerda. Resta ao PT ser um herdeiro que não é continuador. Outro elemento que devemos assinalar neste período (anos 80-90) é que a padronização elaborada pela cultura de massa de origem norte-americana e inglesa é encarada com naturalidade até pelos intelectuais brasileiros. Com a queda do Muro de Berlim, esta situação se agravou e o triunfo do liberalismo, o fim da história e outras explicações retrógradas passam a circular amplamente em toda a sociedade brasileira, via televisão, principalmente. O equívoco do PT fica então evidente: os petistas gastaram tempo discutindo que modelo de socialismo seria aconselhável seguir, e não imaginaram que só lhes restaria a reforma do capitalismo. E pior: o partido teve de enfrentar um ex-aliado, Fernando Henrique Cardoso, agora liderando um grupo de centro-direita apoiado por um condomínio de oligarquias, propondo justamente a reforma do capitalismo, mas para consolidar a sociedade burguesa.
A maior parte das novidades circulantes na imprensa no final dos anos 70 é comentada nos depoimentos de Martha Honecker. Mas inexiste, no entanto, a palavra contracultura. Há um comentário a respeito de como Gabeira era visto, através da mídia, como o paradigma do exilado: voltando com tanguinha de crochê para fazer política na Zona Sul do Rio de Janeiro. A esquerda concentrada nos sindicatos aparenta certa dificuldade em levantar questões como ecologia, homossexualismo e feminismo, movimento Black, etc. A discussão fermentava no meio cultural e artístico, como atesta o livro Patrulhas Ideológicas: Arte e Engajamento em Debate (1979), entrevistas organizadas por Heloísa Buarque de Holanda. As pessoas que foram de esquerda nos anos 60 foram marcadas pela contracultura, que tinha de início uma proposta de New Left.
Embora o PT tenha recebido militantes de variadas correntes formadas antes de 1979, e intelectuais importantes como Hélio Pellegrino e Mário Pedrosa tenham entrado no partido, as experiências trabalhistas foram descartadas ou negadas. Posteriormente, o seu desconhecimento gerou distorções, impossibilitando a aliança Lula-Brizola no primeiro turno de 1989 e gerando grupos minoritários dentro do PT e na esquerda em geral que simplesmente importaram a problemática politicamente correta dos Estados Unidos, guiando-se pela esquerda liberal norte-americana, que busca principalmente a mudança comportamental e atua com base na formação de lobbies junto aos republicanos e democratas.
O abandono dos termos usados pela esquerda pré-64 se faz notar nos documentos petistas. Na Plataforma Política do PT (13 de outubro de 1979), há cuidadosas paráfrases do discurso da esquerda pré-64. No lugar de combate ao imperialismo estrangeiro e do processo da colonização norte-americano através do nacionalismo desenvolvimentista, está dito “política externa independente” e “nacionalização e estatização de todas as empresas estrangeiras”. A dialética de “continuidade e ruptura” anunciada não vai além da paráfrase, não supera uma atualização de vocabulário, uma mutação terminológica, por assim dizer. A ruptura do PT com o pré-64 é patente em textos como o seguinte:
Repudiando toda forma de manipulação das massas exploradas, incluindo sobretudo as manipulações próprias do regime pré-64, o PT recusa-se a aceitar em seu interior representantes das classes exploradoras. Vale dizer: O PARTIDO DOS TRABALHADORES É UM PARTIDO SEM PATRÕES!
A tentativa de reviver o velho PTB de Vargas, ainda que hoje seja anunciada “sem erros do passado” ou de “baixo para cima”, não passa de uma proposta de arregimentação dos trabalhadores para defesa de interesses de “setores do empresariado nacional”. Se o empresariado nacional quer construir seu próprio partido político, apelando para sua própria clientela, nada temos a opor, porém, denunciamos suas tentativas de iludir os trabalhadores brasileiros com seus rótulos e apelos demagógicos, e de querer transformá-los em massa de manobra para seus objetivos. (Plataforma Política do PT. Apud: HONECKER, 1992)
O momento em que surge o PT é de cisões múltiplas: a esquerda se dilacera, em nível político-cultural, diante da possibilidade de poder que lhe abre a volta da democracia liberal-burguesa. O PT demonstra, diante desse dilaceramento, uma postura ambígua, na qual ele se beneficia em ser novo, em não definir uma filiação a nenhum dos pais simbólicos, sejam eles Marx, Lênin, Stálin, Trostsky, Rosa Luxemburgo, Luiz Carlos Prestes, ou Brizola, Getúlio ou Jango. No entanto, com o passar de vinte anos, essa insistência na indefinição colocou o partido na situação de róseo arco-íris de facções que se unem numa “frente”, mas cujas divergências vão se centrando mais e mais em meras questões pessoais, mais do que ideológicas.
A origem deste problema com os pais simbólicos não é clara. Posso listar duas das possíveis causas: A desconfiança com o PCB e sua aspiração ao monopólio dos clássicos do marxismo; uma tendência existente no País, por sua condição dependente, que leva todos a recomeçarem do zero, refletindo não o momento anterior da vida nacional, mas o que está acontecendo nos centros do capitalismo, situados na Europa e Estados Unidos. Outro motivo é o atoleiro histórico em que afundou entre 1956 e 1991 o comunismo internacional, enfraquecido pelos atritos entre a linha chinesa e a soviética, e se vendo às voltas com a virada da Igreja Católica, que foi de uma postura de contato com as realidades sociais para a acomodada postura de partidária de uma ordem estabelecida que é de um materialismo raso, diferente do materialismo marxista, que é especulativo e filosófico. Essa ordem propõe o hedonismo consumista ainda quando se oculta com o manto do misticismo da Nova Era.
A terceira causa demanda uma análise à parte. Trata-se do contexto em que foi feita a leitura de O Capital na USP dos anos 50 e os traços que essa leitura passou adiante, e que transmite intocados para gerações inteiras de intelectuais de São Paulo e de outros estados, principalmente depois que a USP ganhou a posição de centro disseminador de modernidade acadêmica, obtendo repercussão nacional. O marxismo uspiano é definido por Roberto Schwarz:
Quando os jovens professores se puseram a estudar “O Capital” pensavam em mexer com a faculdade (...). O Brasil entrava por um processo de radicalização, e a reflexão sobre a dialética e a luta de classes parecia sintonizar com a realidade, ao contrário das outras grandes teorias sociais, mais voltadas para a ordem e o equilíbrio do que para a transformação. Entretanto, a conseqüência principal do seminário pode ter sido a inversa: através dele, a Faculdade é que iria influir de forma decisiva sobre o marxismo local. (SCHWARZ, 1994)
Mais adiante, Schwarz, intelectual filiado no PT, comenta que o marxismo paulista estava até então afastado da cultura do País e da normalidade dos estudos; com o clima liberal do governo JK foi possível trazê-lo para a universidade. Os melhores frutos do marxismo paulista estavam dispersos na obra de Oswald e Mário de Andrade. A única ressalva que Schwarz faz é a Caio Prado Júnior, capaz de uma obra densa e conhecedor sóbrio das realidades locais.
Nos anos 50, a USP rivalizava com o ISEB, instituto onde comunistas conviviam com ex-integralistas, e que prosperava pensando o desenvolvimento econômico no governo de JK e radicalizando à esquerda no governo Jango. O marxismo uspiano, como no caso do grupo do seminário de leitura de O Capital, preferia ficar distante da correlação real de forças que opunha nacionalismo e trabalhismo de esquerda ao udenismo liberal que teimava em querer atrelar o País aos EUA. Essa esterilizante postura de não-intervenção intelectual, no entanto, ainda permitiu que os marxistas uspianos culpassem os derrotados de 64 pelas suas alianças. As derrotas posteriores levaram de roldão tanto experiências mais amadurecidas de reformismo esquerdista (o Chile de Allende em 73), quanto o socialismo autoritário da União Soviética e Leste Europeu em 89. A distância mostra que a vitória da direita em 64 era reflexo de uma retomada de vigor do capitalismo, que deixava de ser o capitalismo clássico e se tornava uma forma mais sofisticada e versátil, um neocapitalismo.
A aliança do PCB com o nacional-populismo é criticada por Schwarz como “conjunto de teses duramente desmentido pela história”. Jaguaribe afirmou o seguinte, sobre essa possível avaliação feita por alguns:
Quanto ao segundo ponto, que se terá a oportunidade de melhor ventilar na subseqüente seção deste estudo, é necessário ter em conta o fato de que o nacional-desenvolvimentismo era o único projeto realisticamente possível, para os setores progressistas do Brasil, no período em que apreço e que o malogro do populismo, nos anos 1963-64, não decorreu de vícios inerentes a tal projeto, por inconsistência analítica, mas de circunstâncias que dizem respeito, precisamente, ao insuficiente grau que se logrou atingir na mobilização nacional-desenvolvimentista do país. (JAGUARIBE, 1979: p.101)
Convertido ao neocapitalismo entreguista e kennediano de periferia, Fernando Henrique Cardoso em pessoa encarrega-se de denegrir o marxismo e a Era Vargas. Mais importante que avaliar o seu gorduroso discurso atual é sua prática política, que associa tecnocracia paulista e oligarquias nordestinas. Em última análise, a política adotada pelo ex-marxista uspiano, uma vez no poder, é semelhante àquela preconizada pelos udenistas. Talvez por isso, Schwarz ressalte que nem o marxismo nem o seminário de leitura de O Capital chegaram ao poder com FHC. Schwarz atribuiu a FHC uma clareza que o sociólogo nunca teve, ao “prever” 64. Qual teria sido a saída, senão a aliança com Jango? Schwarz, além de não apontar o papel da CIA e dos norte-americanos na derrubada do governo constitucional, dá a FHC uma lucidez que ele não teve:
O parágrafo final (do livro Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico) redigido às vésperas e sob a pressão do desfecho de 64, concluía por uma alternativa inesperada para a esquerda. No que dependesse da burguesia industrial, que eram quem pesava mais na balança, o rumo estava tomado: ‘satisfeita já com a condição de sócio menor do capitalismo ocidental e de guarda avançada da agricultura’, ela renunciara a tentar a ‘hegemonia plena da sociedade’. A incógnita, se houvesse, vinha do campo oposto. Qual seria ‘a reação das massas urbanas e dos grupos populares’? Teriam capacidade de organização e decisão para levar mais adiante a modernização política e o processo de desenvolvimento econômico do País?’, ‘No limite, a pergunta será: subcapitalismo ou socialismo?’ (SCHWARZ, 1994)
Pelo que o texto de Schwarz indica, a tese pecebista de que a burguesia industrial poderia se aliar com os operários visando a industrialização do País fora apenas parcialmente desmentida por FHC, graças ao estilo conciliador que o presidente desde sempre demonstrou, os “dribles do meio-campista” que ele sempre foi. No caso, o apetite de consenso lesou o rigor científico. Permanecem em seu texto idéias conflitantes: a idéia de que a burguesia industrial não conquistou a hegemonia sobre a sociedade e a constatação da postura de sócia menor do capitalismo internacional aceita por essa mesma burguesia. Parece que o texto Dependência e Desenvolvimento (1966) tem como objetivo resolver esse paradoxo, explicando como pode uma economia industrializar-se dentro do capitalismo dependente. Mas no mesmo texto citado acima, onde Jaguaribe reavalia o ISEB, há também a afirmação de que, na fase final do instituto, entre 1961-64, os intelectuais que o compunham já estavam apostando na possibilidade do populismo levar ao socialismo, e tinham descrentado da burguesia industrial.
A pergunta sobre a opção entre subcapitalismo ou socialismo, colocada para a esquerda no final do livro de FHC, deve portanto ser colocada para todos os intelectuais naquele momento histórico. De início a expectativa do ISEB e do PCB fora a seguinte: a chance do socialismo emergir no Brasil viria através da consolidação da burguesia nacional com uma reviravolta desta contra o imperialismo internacional. Com os desdobramentos sucessivos dessa revolução burguesa e nacionalista, seria possível radicalizar e tomar o poder instalando uma modalidade de socialismo. Frustrada essa expectativa, restaria persistir no apoio às causas populares, compondo com lideranças representativas de setores descontentes da burguesia uma frente para o restabelecimento da democracia liberal. A tese reformista perderia espaço a partir de 1964 para luta armada e os “meninos de Marcuse” que se ligavam na esquerda americana. O principal motivo é que estava em curso uma virada mundial do capitalismo, que passa de sua forma clássica para o capitalismo tecnocrático. A ditadura militar é a nossa entrada nesse neocapitalismo, que nas décadas seguintes avançará em formas de alienação e dominação cada vez mais sofisticadas e sutis.
O PCB esteve, em 1964 e 68, rigorosamente atento para o movimento geral da sociedade brasileira, atenção que se perderia a partir de 1985, quando a crise final do socialismo faria o partidão se esfacelar em grupamentos de diversas colorações: o PCB continua com a herança marxista-leninista, enquanto o PPS adere ao neocapitalismo americanizado do PSDB. Quanto à burguesia industrial, a mesma questão não se coloca, pois a opção pelo “subcapitalismo” já fora feita. Mas essa burguesia tomaria para si a tarefa de instalar o neocapitalismo no Brasil, em aliança simultânea com o latifúndio e as multinacionais. O marxismo brasileiro, e o uspiano inclusive, tem alguns traços de provincianismo, como avalia o sociólogo Gilberto Vasconcellos:
Eu tenho esperança em Leonel Brizola porque ele é um candidato que se situa ideologicamente mais próximo do folclore. O marxismo Made in Brazil, tão repercutido pelos teóricos do PT, carece de um enquadramento regional da cultura brasileira, por conseguinte não se mostra capaz de perceber a potencialidade culturalmente revolucionário dessa inserção regional. O imperialismo, via Rede Globo, seqüestra a vocação regional do marxismo no Brasil. Em princípio, o intelectual marxista brasileiro se coloca numa posição hostil ao regionalismo e avesso à sua própria região. É nula a contribuição do materialismo histórico para o conhecimento regional da cultura popular. (...) Regiões não hegemônicas carecem do poder de consagrar ou desconsagrar culturalmente quem quer que seja. O marxismo brasileiro reveste-se de um traço inequivocamente provinciano, a despeito de sua pretensão cosmopolita e internacionalizante. (...) O ideal provinciano do materialismo histórico seria vivenciar em Piancó o modelo do ABC paulista, sonhando com o delírio de ver implantada uma fábrica multinacional de automóveis na periferia da cidade. (VASCONCELLOS, 1989: p.50)
Em outro momento, Vasconcellos aponta que o PT nega a paternidade ideológica de Getúlio Vargas e João Goulart; tal negação é explicável pelos avanços da comunicação de massa e do sistema capitalista como um todo, nas décadas de 70 e 80. Ela não tem muita razão de ser, no entanto: a esquerda européia, na qual o PT tem se inspirado, perdeu qualquer interesse no marxismo e no terceiro-mundismo. Sua perspectiva é a do reformismo social-democrata na melhor das hipóteses, e na pior, o “thatcherismo de face humana”. Daí o beco sem saída sócio-político em que se meteu o PT.
A negação do populismo e do nacionalismo ganha uma dimensão essencial para Schwarz. Ao lembrar o seminário de Marx, afirma que a política de alianças do PCB era mal vista pelos paulistas. Depois se refere à queda de Jango como “a Queda”, como uma revelação estética:
Depois de 1964 a visão amena, ligada ao populismo e às suas promessas, acabou. Daí a atualidade de Machado de Assis quando mostra que não é para acreditar em nada que as pessoas bem postas dizem, mesmo se as palavras forem sumamente elegantes. (...) Ouvi coisas engraçadas a respeito, vindas do Glauber Rocha. Eu era machadiano convicto e ele tinha raiva de Machado. Os escritores preferidos dele eram Euclides e Alencar, os autores épicos, entusiastas, sofredores retumbantes, nacionalistas, enfim tudo que a partir da crise do populismo aprendemos a considerar empulhação. (SCHWARZ, 1998: p.13)
Daí o fato de que está ausente do texto sobre cultura e política nos anos 1964-69 brasileiros, publicado por Schwarz na revista Temps Modernes em 1970, uma constatação do papel da pressão norte-americana sobre um governo trabalhista sem aliados internacionais. Schwarz viu a derrubada do governo Jango como confirmação de arcaísmo do ideário nacional-popular – estou aqui tomando Schwarz como paradigma de intelectual petista. Seu olhar sobre a “Queda” foi marcado pelo ceticismo e cinismo em relação ao PCB e ao ISEB. É esse um dos principais traços do marxismo universitário a influenciar o marxismo local, passando para as novas gerações uma explicação insuficiente de que quem levou o golpe fez por merecer. Uma ruptura que atrapalhou muito a aliança da esquerda trabalhista no pós-79, e que, depois de suas sucessivas derrotas em 1989, 94 e 98, precisamos repensar.
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