Sobre a Supremacia da Água Doce e a Palavra da Água em Água e os Sonhos, Gaston Bachelard
Gaston Bachelard (1884-1962), nascido em Bar-sur-Aube, Champagne, França. O próprio nome de sua cidade já significa que ela está situada sobre o rio Aube. Esta região do leste da França é cortada por muitos rios: Sena, Meuse, Aube, Marne, Aisne, Semois, Moselle e o Reno. Próximo do rio Aube há também o lago Madine, com mais de 1.100 hectares. Esse tema da água tem, portanto, uma ressonância autobiográfica que ele mesmo assumiu: “Nasci numa região de riachos e rios, num canto da Champagne povoado de várzeas, no Vallage, assim chamado por causa do grande número de seus vales. A mais bela das moradas estaria para mim na concavidade de um pequeno vale, às margens da água corrente, à sombra curta dos salgueiros e dos vimeiros. E, quando outubro chegasse, com suas brumas sobre o rio...” (BACHELARD, 1998, p.8)
Nos capítulos que analisamos, assim como em todo o texto, ele toma o simbolismo como um universo autônomo, e não o referindo o tempo à realidade como faz Freud. Embora utilize –de forma bastante pessoal, diga-se de passagem – o termo “materialismo”, Bachelard se afasta do realismo. Neste estudo ele faz, basicamente, observações psicológicas sobre a imaginação material, tomando, das narrativas mitológicas, apenas os exemplos que pudessem ser reavivados presentemente em devaneios naturais e vivos.
Tendo se tornado mais conhecido por sua contribuição à filosofia da ciência, Bachelard desenvolveu uma epistemologia própria, o “aproximacionalismo”, ou seja, a idéia de que a abordagem do objeto científico deve ser feita através do uso sucessivo de diversos métodos. Em torno do tema do materialismo, em seu pensamento se cruzam ciência e poesia, razão e devaneio. Ele também se utiliza de uma fenomenologia. Para ele, pelo que pude observar, a percepção é uma vivência. A consciência possui uma essência diferente da essência dos fenômenos, pois ela é doadora de sentido às coisas e estas são receptadoras de sentido. Os fenômenos seriam, além das coisas materiais, naturais e ideais, os resultados da vida e ação humanas. Os sonhos, por exemplo, seriam fenômenos: significações ou essências que aparecem à consciência e que são constituídos pela própria consciência.
Na página 5, o filósofo afirma: “Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho.”
O tema do sonho, presente na passagem acima, é recorrente na obra de Bachelard: para ele, a razão não pode andar senão de mãos dadas com outras formas de conhecimento, tais como o sonho e a imaginação. Ele diz na página 24: “A nosso ver, a experiência poética deve ser posta sob a dependência da experiência onírica.” Já a razão, o sonho e a imaginação estariam no mesmo patamar.
Falando da água, Bachelard dá primazia para a água doce, e acaba por falar mal do mar. Para ele, a primeira experiência do mar seria da ordem da narração. A viagem distante, e as aventuras marinhas são antes de tudo aventuras e viagens contadas. A divisão entre conto e mito não seria tão bem feita, no tocante à mitologia do mar. O inconsciente marítimo é portanto um inconsciente falado, um inconsciente que se dispersa em narrativa de aventuras, um inconsciente que não dorme. Talvez imaginando que poderiam lhe colocar a objeção de que as grandes narrativas da mitologia grega, mitologia mais influentes da civilização ocidental, são em geral poemas do mar, Bachelard encontrou um autor chamado Charles Ploix que postula a origem celeste de Poseidon. E também esse mesmo autor completa, a respeito do fato de Poseidon ter sido chamado de deus do mar: “deve entender-se não o mar, mas o grande reservatório de água doce (potamos) situado nas extremidades do mundo”(PLOIX, apud Bachelard, 1998, p.162). A esta altura, Bachelard emite uma explicação que mais parece um devaneio: “foi uma perversão que salgou os mares”. Para ele, a água doce é feminina, a água violenta, colérica, é associada ao temperamento masculino.
Para falar da água colérica, Bachelard cita Swinburne e Edgar Poe. Cria até um complexo de Swinburne, inspirado na disposição aquática desse poeta inglês, criado na ilha de Wight, e tendo um rio como limite da propriedade da família. Swinburne se tornou um nadador intrépido, depois de ter superado o medo da água. O complexo de Swinburne, tal qual o denomina Bachelard, seria um desafio viril às águas. As águas flagelam; Swinburne afirma nunca ter tido medo do mar, por ter sido levado ainda criança ao mar, pelos braços do pai. A imagem predominante do complexo de Swinburne é a flagelação das ondas, relacionada por ele com um masoquismo.
Esse mesmo complexo se repetiria na obra de Edgar Poe: Bachelard antoa que Poe desejava reviver o instrutor de natação enérgico, o papel do Pai nadador, atirando o filho de sua bem-amada Helena e um outro rapaz nas águas. Para Bachelard, todas as formas de iniciação colocam problemas edipianos. Nos textos de Poe, o componente melancólico acompanha as intuições da água na poética do escritor.
Bachelard observa que o mar em fúria é um tema em vários escritores: Victor Hugo, Michelet, Balzac. Ele articula ao complexo de Swinburne as brincadeiras das crianças diante do mar: “Quando o Oceano deixava suas areias, Mariana gostava de perseguir a onda que fugia e de vê-la voltar sobre ela. Então era ela que fugia...Fugia, mas passo a passo, com um pé que só cede a contragosto e que gostaria de deixar-se alcançar.”
Bachelard também articula um complexo de Xerxes. Seria a exemplo do rei persa que mandou chicotearem as águas, depois que elas derrubaram duas pontes que ele havia mandado erguer. Um detalhe: talvez isso tenha ocorrido porque o rei persa se achasse um deus. Bachelard vê nesse complexo de Xerxes traços de sadismo, e mostra que no devaneio de certos escritores existem ligações com o complexos de Xerxes.
O último capítulo do livro, a Palavra da Água, se abre com uma bela epígrafe, em que Claudel, como um outro poema de Mallarmé citado anteriormente, encontra relações entre o espelho e a água: “Espelho menos que arrepio...ao mesmo tempo pausa e carícia, passagem de um arco líquido sobre um concerto de musgo.”
O texto destaca a palavra francesa “rivière”, que julga a mais francesa das palavras: “É uma palavra que se faz com a imagem visual da rive (margem) imóvel e que, no entanto, não cessa de fluir...” (BACHELARD, 1998, p.195)
Para Bachofen, “a” é a vogal da água, ela comanda aqua, wasser, apa e é a letra inicial do poema universal. Existiria também o canto do riacho, “maravilhosa logorréia da natureza-criança”. Ele colhe definições tais como a de Paul Fort: “o Verbo que se faz águas”. Para Bachelard, a liquidez é um princípio da linguagem: a linguagem deve estar inchada de águas. Para falar do momento em que se aprende a falar, Bachelard cita o dadaísta Tzara: “uma nuvem de rios impetuosos enche a boca árida”. Bachelard busca correspondências das imagens com o som e cita Lucrécio: “assim, todos os tons da natureza morta ou animada têm seu eco e sua consonância na natureza viva”. A imaginação faz o papel de sonoplasta. Ou melhor: ele busca correspondência das imagens com a palavra da água: “a beleza nasce do som murmurante”.
Finalizando, vale a pena notar que Bachelard, num ensaio sobre Monet chamado As Ninféias ou As Surpresas de uma Alvorada de Verão, escreveu: “Não se sonha junto à água sem formular uma dialética do reflexo e da profundeza.” A Água e os Sonhos é marcados por essa relação de oposição: o reflexo o levou a pensar em Narciso, a profundeza em Caronte, o barqueiro que levava para a ilha dos Mortos.
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