quarta-feira, 28 de abril de 2021

Fiotinha e a Língua da Tabatinga

 FIOTINHA E A LÍNGUA DA TABATINGA

Tânia T. Nakamura e Lúcio E. do E. S. Júnior


Na cidade de Bom Despacho temos uma comunidade de afro-descendentes, no Bairro Tabatinga, onde reside Maria Joaquina da Silva, conhecida como “Fiotinha”, última falante de uma língua (predominantemente banto) que funcionava como espécie de código secreto para preservação de troca de informações entre o grupo.
“Fiotinha” teve um papel destacado na preservação da “gira” da Tabatinga ao dar depoimentos a Sônia Queiroz, professora de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFMG, mestre em Letras pela mesma Universidade e doutora pela PUC/São Paulo, natural de Bom Despacho, quando da realização de sua obra “Pé Preto no Barro Branco”, que aborda a constituição da Língua do Negro da Costa.
O projeto tem como sua idealizadora principal a própria “Fiotinha”, que com o objetivo de preservar a cultura local, quis criar uma escola em que se ensinasse a língua da Tabatinga.
Assim iniciamos uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Bom Despacho e comunidade local, os trabalhos em duas frentes que interagiram: 1ª - Alfabetização de adultos, pois “Fiotinha” é analfabeta e manifestou grande desejo em aprender a ler , também em reunião informal feita no bairro foi levantado um número significativo de analfabetos no bairro; 2º: Conversação na língua da Tabatinga.
Consideramos este trabalho pioneiro no que se refere a uma sala de conversação em língua de afro-descendentes e de suma importância para a preservação da cultura negra local, como também com uma grande viabilidade dentro da pesquisa em História Oral, definida aqui com beleza por Fiotinha: “Não tenho a letra, só tenho a palavra”.
Importante destacarmos a co-orientação da professora Sônia Queiroz, que atualmente é docente na Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Departamento de Línguas Vernáculas, que nos possibilitará um apoio fundamental no decorrer da pesquisa.
Observamos que o apoio e preservação de determinadas manifestações culturais tradicionais têm se tornado uma bandeira na busca da identidade de certas comunidades, em meio ao fenômeno que chamamos de “globalização”, que tem se mostrado homogeneizador e massificante, principalmente por atuar diluindo as diferenças. A busca da identidade e o respeito ao diferente serão o núcleo do nosso projeto aqui apresentado.
Maria Joaquina da Silva, “Fiotinha”, a grande mentora do projeto que aqui apresentamos. Filha de um dos falantes mais antigos da Língua do Negro da Costa, chamado Zé Caria (ou Zacaria) e Joaquina Caria. Teve apenas um irmão chamado Zé Baiano. “Fiotinha” teve seis filhos e seis netos e Zé Baiano, dois filhos e seis netos.
Como aponta QUEIROZ (1998), trata-se de uma comunidade historicamente “excluída” até na geografia, como sendo “um bairro de negros” , ironicamente construída numa cidade que foi fundada sobre uma área de quilombos destruídos:

Os quilombos são, pois, fator importante no povoamento da região de Bom Despacho: os negros, fugindo aos seus senhores, entram pelo sertão em busca de esconderijos onde se organizar como homens livres. Atrás deles vão os capitães-de-mato, que muitas vezes encontram pelo caminho lugares atraentes onde resolveram fixar residência” (QUEIROZ, 1998, 38)

Tendo em vista em nossa pesquisa a história de vida de “Fiotinha” o diálogo com as fontes orais fornece ao seu trabalho um posicionamento diante do estatuto do conhecimento histórico. A construção da memória pela sua formação, manutenção e elaboração das identidades individuais e coletivas, veiculada pela oralidade, expressa as várias faces da experiência humana ao longo do processo histórico, estabelecendo relações e mediações com outros tipos de registro do real, acrescentando segundo GATTAZ que:
Os aspectos individuais, na história de vida, são exacerbados, enquanto os movimentos gerais da História assumem em geral um plano secundário, e isso faz com que a nossa abordagem destes testemunhos seja diferente daquela que daríamos a uma série estatística ou um relatório governamental. Neste sentido, distingue-se a história oral de vida, preocupada com a experiência subjetiva, da história oral temática, voltada ao fato objetivo e à reconstrução de um passado ignorado. Na história de vida, a verdade dos fatos se subordina à verdade do homem, pois é o homem que está em questão (GATTAZ, 1988, 877)

A história de vida de “Fiotinha” está sendo captada por nós através de entrevistas onde:

A gravação da entrevista entre o oralista e o colaborador cristaliza uma manifestação histórica. Sua análise, portanto, deve considerá-la como uma forma expressiva determinada pelo espaço e pelo tempo, refletindo não o sentido que o narrador teve dos fatos no passado, mas aquele que lhe ocorre no momento da entrevista – e não de forma inocente ou inconseqüente, como notam alguns estudiosos (GATTAZ, 1998, 883).

A parte propriamente pedagógica, o processo de alfabetização, foi por nós desenvolvida a partir de temas, os quais serão extraídos da própria realidade dos alunos.
Nossa vivência com a “gira” da Tabatinga e a figura de Fiota aconteceu, digamos, em parte devido à nossa experiência de termos saído de pequenas cidades do interior e agora termos retornado, acompanhando a tendência de expansão para o interior das instituições de ensino superior.
Bom Despacho, nossa cidade, situa-se no centro-oeste de Minas Gerais, estado repleto de cidades históricas e tradições. No entanto, nossa comunidade não tem mitos como Xica da Silva, que se projetou nacionalmente e ganhou eco com livros como Rei Branco Rainha Negra, de Paulo Amador, e até um filme de sucesso, Xica da Silva, de Cacá Diegues nem grandes vultos históricos como Juscelino Kubitschek. No entanto, a cultura popular da cidade preserva singularidades bem pouco estudadas ou valorizadas.
Uma delas é a “gíria” da Tabatinga. Corre por toda a cidade que existe esse vocabulário, muitos conhecem uma ou outra palavra, verifica-se interesse, mas trata-se de algo anedótico e intermitente. Uma clínica veterinária e uma cooperativa utilizam palavras como cambuá (cachorro) e mavero (leite) sem que se saiba do conhecimento que os donos das empresas e seus usuários possuem dessa “gira”.
Primeiramente tínhamos ouvido falar da “gira” e lido o livro de Sônia Queiroz, Pé Preto no Barro Branco. A seguir, tivemos contato com Fiota, tida pela comunidade como última falante autêntica da língua. Transcrevemos a seguir trecho de uma de nossas entrevistas com D. Fiota:

Lúcio: Como era com seu pai, sua mãe, sua família? Você falou com a Brigitte que aqui era tudo mato?

Fiota: Meu pai era baiano, vivia andando pelo mundo. Minha mãe estava trabalhando no tempo da escravidão, no tempo do cativeiro. Ele foi passano e acenou para ela. Ela foi e perguntou se ela não arrumava um serviço para ele. O patrão falou: aqui só tem ranca de mandioca. Ele foi e deu ele o serviço. E nesse tempo ela era sortera. Aí ele foi namorano, namorano. Ele resolveu pedir a mão dela em casamento. Ela falou: não, não pede agora não, minha mãe é muito nervosa. Aí pediu, foi aceito, eles arrumaro e casô. Logo quando ês casô, ela contava para mim que ele falô: “Eu sei duma cultura que é a mió coisa do mundo, e vou te ensinar ocês uma cultura, que quando a gente tiver famia, isso vai ser muito bom procês”. Quando nós nascemo, ela falou, vou ensinar para vocês uma cultura que seu pai deixou para vocês. Eu falei: muito custosa? Ela falou: não. Ela estava sentada fiando fio de algodão e ia dizendo, vamo hoje na linguagem, foi explicar a você cumé que é. E aí ela foi contando para mim o jeito que ela explicou para ela. Meu irmão falou: vamos brincá. Ele falou: não, não vô aprendê não. E eu aprendi, e hoje sou muito percurada, recebo todo mundo de braços abertos, gosto muito do jeito que ês me trata, agora tô até no salão [da Igreja Católica]. Agradeço muito ao Simão, que abriu a mão para mim. Ao Beto, Beto me deu a maior força, maior apoio.
Eu falo para todo mundo quarqué hora a língua da gira. Ela começou assim: quando minha mãe tava lá, ele falava: cafingueiro caxô. Patrão chegava, eles falavam: catingueiro caxô. Caxô o quê? No curima. Ela tava querendo dizer que o patrão chegou. Essas tinham que tirar uma tarefa. Comia mandioca e achava que era um almoço muito bacana. A gente não pode falar o nome do trem. Não tem assango? Não, não tem assango não. Tem cambelera, não, cambelera também não caxô não. Quando rebentô a liberdade, minha mãe saiu lá Engenho do Ribeiro caçando um lugá. Isso aqui tudo era mato. Nós foi luitá para fazer uma barraca de lona. Nós fizemo, entramo. A barraca acabou, nós fizemos a piteira. Nossa casa era coberta de “apita” ao redor. A coberta era apita. Não tinha jeito de buscar água mais perto, buscar água era lá no chacrinha. A gente pegava a pineira e coava, tirava barro. Nós tirava barro era no meio do garimpo aqui. Nós entrava dum lado e saída do outro. Nós ia com as enxada atrás tirando a terra. Nós custô demais fazer um cômodo barreado mas nós fizemo, e aí o povo, todo mundo foi fazendo. Nós amassava era de pé,o barro. Não tinha amassador de barro, não tinha cavalo... Foi aonde que cresceu esse bairro tão maravilhoso. Só uma coisa eu quero, quero ver se dou conta de chegar lá. Quero tirá esse nome que botaram aqui, Ana Rosa. Pô o nome que era. O nome Tabatinga foi minha mãe que colocou aqui. Na subida era um barro branquinho. Não tinha carro automóvel, era carro de boi. Toda vida foi Tabatinga. Desde o tempo da escravidão. Aí mandou por Ana Rosa. Se Deus quiser, quero tirar Tabatinga e pôs Ana Rosa. Pode parar por aqui ou cês qué mais?
Aqui no bairro é muito difícil quem fala a língua. Uma das pena que ficou de resto que pode contá foi só eu. Tem muita gente que grita aí só aquelas paiaçada de cuete ocora, cuete cafuvira, mas não interessa pelo bairro. O que vem a ser cuete ocora? (Pausa).

Lúcio: Ah, cuete ocara é preto.

Fiota: preto. Hoje quem falá do preto, acho que agora o viriango caxa, né? Eu não vou retacar ninguém por causa da minha cor.

Tânia (rindo): É, o viriango caxa.

Lúcio: Como foi o trabalho do livro da Sônia?

Fiota: O pai dela foi o melhor médico que nós encontramo aqui em Minas. Ele dava os remédio de graça, dava consulta de graça. Eu devia muita obrigação ao pai dela. Ela me disse: quero aprender a língua da Tabatinga. Ficô umas coisa no livro que ela não“intrerpretou” bem não. Demorô uns quinze ano. No livro ficô umas coisas, ela aproximô. Tem muita coisa para a gente falá e induzi. Não sei se é porque ela tava nervosa. Eu quero agora fazê um outro livro com a Tânia.

Tânia: A gente chega lá (....).
Fiota: Eles fala que se eu continuá falando, todo mundo vai sabê e eu num vô sê percurada mais. Mas eles tem que aprendé que vai sê uma cultura boa para eles.

Devemos então notar o seguinte: Fiota fala de marcas, ou melhor, certas marcas falam nela. Uma é a dura história dos negros após o cativeiro. Notamos que Fiota referiu-se à vida de sua mãe, fundadora do bairro da Tabatinga onde atualmente ela mora, demonstrando saber que sua história começou antes de seu nascimento, com a história de seus pais. O “dialeto” da Tabatinga foi uma herança paterna, quem sabe a única. A mãe foi a responsável pela transmissão para a criança da língua herdada do pai. É curioso observar que o filho do sexo masculino negou a língua do pai, acolhida carinhosamente apenas pela filha. Fiota, apesar das dificuldades para garantir a sobrevivência e o analfabetismo, observou certo avanço histórico (“Hoje quem falar do preto, acho que o viriango caxa, né?” O que quer dizer: “Hoje quem falar do preto, acho que o policial prende, né?”) e permaneceu firme no desejo de recuperar a parte de suas tradições que foi apagada, no caso, o próprio nome do bairro, Tabatinga, substituído por Ana Rosa. O nome se reveste de uma importância que ressoou mesmo no livro já realizado sobre o bairro, de autoria de Sônia Queiroz: o título “Pé Preto no Barro Branco” é uma referência, ao mesmo tempo, ao barro existente na principal rua do atual bairro, amassado como o pé para fazer casebres, e à “gíria” em si, que se utiliza da língua portuguesa para inserir termos de origem africana, dando a entender, em sua própria estrutura, a presença da mestiçagem.
Chamamos a atenção também para outro dado, presente indiretamente na fala de D. Fiota: muitos repetem palavras na língua (“cuete ocora” e “cuete cafuvira”, sinônimos de “negro”) mas não se interessam pelo bairro. A discriminação e o preconceitos com relação aos falantes da “língua do negro da costa” foi algo também sentido por nós no decorrer de nosso contato.
Após nossa aproximação, realizamos o desejo de D. Fiota e obtivemos espaço no salão da Igreja Católica para a realização de um curso de alfabetização, contando também com o apoio da prefeitura na figura do secretário de educação, Carlos Alberto, que nos cedeu lápis e cadernos, além de contratar como professora a então voluntária da Igreja Católica Maria Marilac.
A professora, já com experiência de alfabetização em escolas da rede pública, teve também sua primeira experiência com alfabetização de adultos nesta ocasião. Após as aulas, algumas vezes reunimos os alunos para uma conversação na “gira”, por vezes acompanhada de cafezinho e bolo. Com freqüência o tema discutido foi a língua da Tabatinga. Após a desistência de alguns membros da comunidade, verificamos que existiam alunos interessados na alfabetização, mas que resistiam à língua da Tabatinga, tida por esses desistentes como “bobagem” e “coisa de vagabundos, malandros”. O motivo seria que, por fornecer um código de difícil decodificação para aqueles situados fora da comunidade, a “gira” despertou desconfiança. Porém, desmistificando o preconceito que envolve os falantes da língua, Sônia Queiroz mostrou em seu livro que a maior parte da população do bairro constitui-se de trabalhadores.
Decididos a contrariar o preconceito e a baixa auto-estima encontrados em certos círculos da comunidade, resolvemos orientar a professora Marilac a inserir palavras na língua da Tabatinga no decorrer das aulas. Isso nos pareceu altamente recomendável, por ligar-se, inclusive, à pedagogia ensinada por Paulo Freire, pedagogia essa em que algumas palavras, obtidas no contexto da comunidade, seriam “palavras geradoras”. No caso, as a palavras geradoras foram “ingura” (dinheiro), “assango” (arroz) e “cuete” (homem). Verificamos que a iniciativa obteve aceitação por parte do pequeno grupo de alunos.
Outra experiência que realizamos, paralelamente à alfabetização, foram as entrevistas tais como a citada acima. Promovemos também o seguinte diálogo: Brigitte, professora de francês de origem afro-belga e que ensina de francês na cidade, tentou conversar com Fiota e comparar algumas palavras nos dialetos africanos que sabe, sendo esses o swahili e um dialeto originário do Zaire. Não observamos coincidência entre os termos falados por Fiota e aqueles utilizados por Brigitte, mas o encontro resultou numa conversa animada e simpática, e, de certa forma, ao receber em sua casa uma pessoa que já esteve na África, fala suas línguas e conhece suas realidades, Fiota pode reencontrar-se um pouco com suas raízes.
No decorrer dessas nossas vivências com a comunidade e com a Língua do Negro da Costa, gostaríamos de anotar algumas produções culturais ligadas ao bairro, mas que ainda permanecem pouco conhecidas. O livro “Madrinha”, um pequeno livro de contos também autoria de Sônia Queiroz, trouxe uma personagem negra também chamada Fiota:

_Eu aqui sô chefe de turma. Os cavinguero passa no meu conjolo e vai só tipurano: Ô Fiota! Ruma aí uns vinte home e muié pra prantá mio lá para mim. Eu rumo. Se fô bão de ingura, se a ingura fô avura, eu caxo. Caxo os cuete dos conjolo e nóis caxamo tudo pro sengue. Pegamos injira do cavinguero, prantá pungue, tipoque, missango, quarqué embondo. Agora, se o cavinguero fô ruim de ingura, ingura catita, num vai dá não, né, cuete? Mió ficá no meu conjolo caxano urunanga na omenha, mió que i pro curimba sem ingura. (Eu aqui sô chefe de turma. Os patrões passa na minha casa e vai só olhando. Ô Fiota! Ruma aí uns vinte home e muié pra prantá mio lá para mim. Eu rumo. Se for bom de dinheiro, se o dinheiro for bom, eu arranjo. Pego os rapazes das casa e entramos no mato. Pegamos o caminho do trabalho para o fazendeiro, prantá milho, feijão, arroz, qualquer coisa. Agora, se o patrão for ruim de dinheiro, dinheiro bom, não vai dar não, né cara? Melhor ficar em casa secando roupa na chuva do que trabalhar sem dinheiro). (QUEIROZ, 1987, p. 21)

Além desse uso ficcional do “dialeto” da Tabatinga, ficamos sabendo também de uma composição de autoria de Ronniere Menezes, professor, mestre em Letras e funcionário público da ASLEMG, cuja letra utiliza termos da língua da Tabatinga, tais como, por exemplo: “O cuete avura comemora a abolição da escravatura (algo como: ‘O belo rapaz comemora a abolição da escravatura’)”. Não pudemos obter, devido ao curto prazo que tivemos, devido às nossas atividades como professores, nem a letra na íntegra nem o depoimento do referido autor.
Nesta altura de nosso trabalho, após o relato de nossas experiências e de nos referirmos à bibliografia e produções ligadas à língua, passemos à questão da oralidade. A “gira” da Tabatinga é um exemplo de herança cultural passada oralmente. Os negros da Tabatinga permaneceram na “oralidade primária”, que segundo Walter Ong, seria:

A oralidade de uma cultura totalmente desprovida de qualquer conhecimento da escrita ou da impressão. É “primária” por oposição à “oralidade secundária” da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio, pela televisão ou por outros dispositivos eletrônicos, cuja existência e funcionamento dependem da escrita e da impressão. Atualmente, a cultura oral primária, no sentido estrito, praticamente não existe, uma vez que todas as culturas têm conhecimento da escrita e sofreram alguns de seus efeitos. Contudo, em diferentes graus, muitas culturas e subculturas, até mesmo num meio de alta tecnologia, preservam muito da estrutura mental da oralidade primária. (ONG, 1978, p. 12)

Curiosamente, podemos dizer que a “oralidade primária” da língua da Tabatinga é um desses raros casos referidos acima. Trata-se de um caso em que palavras de origem africana foram passadas adiante durante gerações, e estão, diante de nós, vivendo sua ainda muito recente aparição na esfera da escrita e da leitura.
Ressaltemos que essas palavras trazem consigo uma história. Elas falam da resistência africana, apesar da violência, da marginalização, dos massacres dos resistentes nos quilombos. A presença da Língua do Negro da Costa em Bom Despacho subverte toda a história oficial da cidade, história essa que explicou que Bom Despacho foi fundada por três portugueses que fizeram uma promessa à chamada Nossa Senhora do Bom Despacho ou Nossa Senhora do Sol ao chegarem a uma das três colinas que constituem, ainda, o núcleo da cidade. A presença da “gira” da Tabatinga mostrou-nos que, antes de ser habitada por brancos portugueses, a região foi refúgio de negros fugidos das regiões de mineração situadas próximo a Belo Horizonte e Pitangui. Portanto, a “língua” seria um indício decisivo de que a cidade foi primeiramente um quilombo. Aliás, vale a pena frisar que a presença dos negros fugidos, neste período, motivou a chegada dos brancos portugueses, muitos dos quais, tendo vindo no encalço dos quilombolas, resolveram, permanecer na região.
Trata-se de um exemplo de uma “língua” oral transmitindo palavras que minam, arruínam, põem abaixo uma versão que claramente foi a dos vencedores e a chamada história oficial. O mesmo recalque ou superposição da história das vítimas pelo nome dos mais poderosos verificou-se estar em ação ainda hoje, ao lembrarmos da entrevista acima: Fiota demonstrou estar sentida com a troca do nome “Tabatinga”, (que lembra a ela a luta de sua mãe, ex-escrava, junto aos pioneiros que construíram o bairro), pelo outro, “Ana Rosa”, nome de uma granja situada na região, ou, acrescentemos, “Nestlé”, nome da multinacional fabricante de chocolates, adotado por alguns do bairro, julgando que assim poderiam ficar livres da conotação pejorativa que tomou o termo “Tabatinga”, ou seja, que se veriam livres de sua própria história. Ora, mesmo um rico herdeiro de um milionário poderia entregar a outrem todos os seus bens, fazer voto de pobreza, mas não ficaria livre de sua história. Podemos perder todos nossos bens, trocar de nome ou de identidade, mas mesmo assim não deixamos de ter uma história, ainda que negada ou silenciada.

Não Sei Quê, Calligaris

 Não sei que pulsão ou recalque me leva a escrever sobre o psicanalista ítalo-franco-yankee-brasileiro Contardo Calligaris. Eu o leio sempre na Folha e na imprensa em geral, é como se estivesse numa espécie de divã de celulóide. Calligaris nasceu italiano, mas em sua época não era fácil ser italiano, diz ele. Ele viu as comédias italianas dos anos 60, com pobreza, dentes cariados e cantoria, e concluiu que não queria ser um personagem de Lina Wertmüller, essa... Será diretora? Que retratou os habitantes da "bota" em seu tempo de juventude.


Depois Calligaris passou uns tempos na França e virou psicanalista lacaniano (com esse significante, quem sabe, substituindo o problema em ser italiano). Após encontrar uma gaúcha chamada Eliana, foi ganchado para Porto Alegre e virou líder dos lacanianos lá, pelo menos pelo que pude entender. Assim que pode pegou uma canoa e montou sua oca em Manhatã, onde ele agora vive, e o filho estuda em Columbia Pictures.

Em 1991, um pouco antes de sair dos igarapés do Guaíba para os States, escreveu um livro criticando a nós, brasileiros, por não nos organizarmos em torno de um pai, de uma filiação, de UM: Hello Brasil, Notas de um Psicanalista Italiano em Viagem ao Brasil. Esse "hello" já dava uma idéia de que, de repente, o buraco onde queria entrar era mais em cima...

Em 1997, num artigo sobre as verdades e inverdades tropicaetânykas, disse que não escreveria mais algo assim. Porém, para Calligaris, qualquer manifestação de auto-estima dos brasileiros prossegue parecendo, a ele, mero resto da festa da tropicália. Eu, como 27 anos, seria filho dos restos da festa.

Em Verdade Tropical, Caetano comentou um texto do livro de Calligaris em que ele reduzia a antropofagia ao mero ato orgânico, enquanto em Oswald ela era uma metáfora.

Só que agora, quando Calligaris escreve na Folha de Sumpaulo, ele escreve "nós", ele está no meio de nós. Embora tenha dito na Istoé que ele se parece mais com um brasileiro imigrado para os EUA do que qualquer outra coisa. Ich! Se tirarmos a base pelo Manhattan Connection, pelo Paulo Francis (que Deus o tenha!) o Calligaris tá fudido.

Entre o Folclore & os Móbiles: Casuística, de Johnny Guimarães

 O livro de poemas Casuística, de Johnny Guimarães (Ed. Alba, 2005), parece imaginado pelo autor como a realização de um Apolo juiz & promotor de si mesmo. Para os leitores de orelha de livro, ele oferece um deleite, pois faz poesia na orelha. É como diz Jô Soares: a orelha nasce, depois a pessoa cresce ao redor. Parece sonhar que do branco sobre branco de Malevitch podem nascer bandos de cores que sairão, ao primeiro olhar, esbaforidas e soltando penas de pavão rumo aos olhos do leitor.


O estilo possui algumas ligações com o estilo da obra anterior, Dentre Outras Coisas, quando o poeta explodiu com força na primavera de 1996, contribuindo intensamente no Estado de Minas, ora elogiando a genialidade de Carlinhos Brown, ora atacando o poderoso Jero Oliva. Durante certo tempo, Johnny foi poeta eletrônico do Canal 25, fez prosa poética ao vivo sobre o incêndio do Palácio das Artes: cada chama era um de nós vendo o espetáculo do drama real. Queria ver esse texto em livro.

O que vejo em Casuística e o que me parece, nessa segunda obra, caracterizar o poeta é seu fascínio pelo mal e pelo grotesco da vida. Ele quer fazer artesania do verso, vaso grego de Bilac, com a lama das ruas, com o grotesco e o mínimo arabesco. Os traços da violência e do horrendo aparecem, muitas vezes, quase crus, outras vezes sublimados, com pinceladas mais fortes do que no livro anterior: “Balas em rota, entrando:/Teima de cigarro vivo/Berne saindo ileso, silhueta rasgada, voz ardendo/Brasa de lagarta acesa” (1º caso); “Perneta, aprendeu estripulia, fazendo truques com o guidão”; “Um pedaço de pau de estante/ Nas mãos de um brutamontes sem cansaço/ À espera dela/ Maldita, distante” (4º caso); “Quem bateu forte/ Sua testa preta? (6º. Caso); “Não há suporte para o chute forte/Que lancei sobre sua porta/ Na certa, a resposta para a cicatriz/ Que plantei em sua testa, não há” (no 8º caso). “1º choque: Dinâmica dos corpos. Dinamite”: “Estupro: estalo na hora exata o tal/ Da desconhecida, que se estrepa”.

No entanto, esse novo livro demonstrou uma densa virada para o laconismo. Casuística tomou um longo tempo de maturação, os anos entre 1997 e 2005; mostra o poeta voltado para o encurtamento do verso.

Prefiro, nesse livro de Johnny, os “casos”, que é como batizou seus poemas. São apenas doze casos. A idéia do móbile também o fascina: o quadro “Folclore”, de Mauro E. Gemini, mais do que dar a idéia de causo ou conto popular, transmite a idéia de um diálogo com as artes plásticas, ao estilo de um Calder, por exemplo. Os poemas curtos me pareceram hai-kais autocomplacentes: “No espelho/Brinco de verbo/dançando”. “1º. Pecado: Comigo/ Por que todo Deus/ Acaba com eu?” Deve-se evitar a complacência consigo mesmo, pois é pecado literário que se insinua nas melhores penas, dentre as melhores trupes. Tudo o que o artista faz é abracadabra?

Mas, como dizia Bernard Shaw, “compreender tudo é perdoar a todos”. Johnny, poeta de nome anglo-saxão, troca os números das páginas do livro por cores: verde, amarelo, vermelho, roxo, laranja. Como diria Caetano Veloso, “americanos são muito estatísticos”.

Para Johnny, a mulata não é tal. A direita festiva interessa? O formato do livro, a capa, tudo aponta para uma estética minimal, econômica e tácita. Deve-se falar pouco, economizar palavras. Johnny, o yankee da terra dos Miltons Campos & Nascimento, exibe-se como o muquirana das palavras, o Dry Drummond semi-árido, o João Cabral dos Stresstabs, ululando em sua Sétima Dose: Fragmentos de um avanço de sinal (na verdade é, na seqüência, seu sétimo caso):



1, 2, 3 passos e engulo pés./ Sinal verde!/ Os carros parecem remédios ou agulhas: gol 1000 cor de stresstabs 600./ Uno Mille lexotan. Passat velho com detalhes prosac nas laterais./ Casal discutindo comprimido numa Saveiro vinho./ Pressa é poeira, que assenta na nuca e nunca mais sai dali. /Tomei pílula de CSN que ficou engarrafada no esôfago./ Harley Davidson às vezes apraz./ Sentir falta da noite tem diagnóstico?/ A rodovia medicamentosa sob minha janela/ Talvez solucionará minha patologia./ Pior é buzinar que meu declive/ (fobia) é enguiço do metabolismo./ (...) Atropelamento: medicamento que inaugura o estacionamento de minha morte.



Dentro da lógica deste “johnysio” mineiro, até mesmo a bacanal deve-se fazer quieto, em silêncio, numa postura britânica. Sem latim nem francês, ele pergunta diretamente: “emotion tem botões?” Não, poeta, a emoção não pode ser detonada com o simples apertar de um botão. Em alguns de seus poemas, não nos haikais mais espoletas nem nos mais traquinas poemas-piada, mas sim nos mais tranqüilos e mais longos, sua poesia toca as cordas do coração, apesar dos Auschwitz da vida.

Sobre a Água e os Sonhos: Bachelard

 Sobre a Supremacia da Água Doce e a Palavra da Água em Água e os Sonhos, Gaston Bachelard


Gaston Bachelard (1884-1962), nascido em Bar-sur-Aube, Champagne, França. O próprio nome de sua cidade já significa que ela está situada sobre o rio Aube. Esta região do leste da França é cortada por muitos rios: Sena, Meuse, Aube, Marne, Aisne, Semois, Moselle e o Reno. Próximo do rio Aube há também o lago Madine, com mais de 1.100 hectares. Esse tema da água tem, portanto, uma ressonância autobiográfica que ele mesmo assumiu: “Nasci numa região de riachos e rios, num canto da Champagne povoado de várzeas, no Vallage, assim chamado por causa do grande número de seus vales. A mais bela das moradas estaria para mim na concavidade de um pequeno vale, às margens da água corrente, à sombra curta dos salgueiros e dos vimeiros. E, quando outubro chegasse, com suas brumas sobre o rio...” (BACHELARD, 1998, p.8)

Nos capítulos que analisamos, assim como em todo o texto, ele toma o simbolismo como um universo autônomo, e não o referindo o tempo à realidade como faz Freud. Embora utilize –de forma bastante pessoal, diga-se de passagem – o termo “materialismo”, Bachelard se afasta do realismo. Neste estudo ele faz, basicamente, observações psicológicas sobre a imaginação material, tomando, das narrativas mitológicas, apenas os exemplos que pudessem ser reavivados presentemente em devaneios naturais e vivos.

Tendo se tornado mais conhecido por sua contribuição à filosofia da ciência, Bachelard desenvolveu uma epistemologia própria, o “aproximacionalismo”, ou seja, a idéia de que a abordagem do objeto científico deve ser feita através do uso sucessivo de diversos métodos. Em torno do tema do materialismo, em seu pensamento se cruzam ciência e poesia, razão e devaneio. Ele também se utiliza de uma fenomenologia. Para ele, pelo que pude observar, a percepção é uma vivência. A consciência possui uma essência diferente da essência dos fenômenos, pois ela é doadora de sentido às coisas e estas são receptadoras de sentido. Os fenômenos seriam, além das coisas materiais, naturais e ideais, os resultados da vida e ação humanas. Os sonhos, por exemplo, seriam fenômenos: significações ou essências que aparecem à consciência e que são constituídos pela própria consciência.

Na página 5, o filósofo afirma: “Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho.”

O tema do sonho, presente na passagem acima, é recorrente na obra de Bachelard: para ele, a razão não pode andar senão de mãos dadas com outras formas de conhecimento, tais como o sonho e a imaginação. Ele diz na página 24: “A nosso ver, a experiência poética deve ser posta sob a dependência da experiência onírica.” Já a razão, o sonho e a imaginação estariam no mesmo patamar.

Falando da água, Bachelard dá primazia para a água doce, e acaba por falar mal do mar. Para ele, a primeira experiência do mar seria da ordem da narração. A viagem distante, e as aventuras marinhas são antes de tudo aventuras e viagens contadas. A divisão entre conto e mito não seria tão bem feita, no tocante à mitologia do mar. O inconsciente marítimo é portanto um inconsciente falado, um inconsciente que se dispersa em narrativa de aventuras, um inconsciente que não dorme. Talvez imaginando que poderiam lhe colocar a objeção de que as grandes narrativas da mitologia grega, mitologia mais influentes da civilização ocidental, são em geral poemas do mar, Bachelard encontrou um autor chamado Charles Ploix que postula a origem celeste de Poseidon. E também esse mesmo autor completa, a respeito do fato de Poseidon ter sido chamado de deus do mar: “deve entender-se não o mar, mas o grande reservatório de água doce (potamos) situado nas extremidades do mundo”(PLOIX, apud Bachelard, 1998, p.162). A esta altura, Bachelard emite uma explicação que mais parece um devaneio: “foi uma perversão que salgou os mares”. Para ele, a água doce é feminina, a água violenta, colérica, é associada ao temperamento masculino.

Para falar da água colérica, Bachelard cita Swinburne e Edgar Poe. Cria até um complexo de Swinburne, inspirado na disposição aquática desse poeta inglês, criado na ilha de Wight, e tendo um rio como limite da propriedade da família. Swinburne se tornou um nadador intrépido, depois de ter superado o medo da água. O complexo de Swinburne, tal qual o denomina Bachelard, seria um desafio viril às águas. As águas flagelam; Swinburne afirma nunca ter tido medo do mar, por ter sido levado ainda criança ao mar, pelos braços do pai. A imagem predominante do complexo de Swinburne é a flagelação das ondas, relacionada por ele com um masoquismo.

Esse mesmo complexo se repetiria na obra de Edgar Poe: Bachelard antoa que Poe desejava reviver o instrutor de natação enérgico, o papel do Pai nadador, atirando o filho de sua bem-amada Helena e um outro rapaz nas águas. Para Bachelard, todas as formas de iniciação colocam problemas edipianos. Nos textos de Poe, o componente melancólico acompanha as intuições da água na poética do escritor.

Bachelard observa que o mar em fúria é um tema em vários escritores: Victor Hugo, Michelet, Balzac. Ele articula ao complexo de Swinburne as brincadeiras das crianças diante do mar: “Quando o Oceano deixava suas areias, Mariana gostava de perseguir a onda que fugia e de vê-la voltar sobre ela. Então era ela que fugia...Fugia, mas passo a passo, com um pé que só cede a contragosto e que gostaria de deixar-se alcançar.”

Bachelard também articula um complexo de Xerxes. Seria a exemplo do rei persa que mandou chicotearem as águas, depois que elas derrubaram duas pontes que ele havia mandado erguer. Um detalhe: talvez isso tenha ocorrido porque o rei persa se achasse um deus. Bachelard vê nesse complexo de Xerxes traços de sadismo, e mostra que no devaneio de certos escritores existem ligações com o complexos de Xerxes.

O último capítulo do livro, a Palavra da Água, se abre com uma bela epígrafe, em que Claudel, como um outro poema de Mallarmé citado anteriormente, encontra relações entre o espelho e a água: “Espelho menos que arrepio...ao mesmo tempo pausa e carícia, passagem de um arco líquido sobre um concerto de musgo.”

O texto destaca a palavra francesa “rivière”, que julga a mais francesa das palavras: “É uma palavra que se faz com a imagem visual da rive (margem) imóvel e que, no entanto, não cessa de fluir...” (BACHELARD, 1998, p.195)

Para Bachofen, “a” é a vogal da água, ela comanda aqua, wasser, apa e é a letra inicial do poema universal. Existiria também o canto do riacho, “maravilhosa logorréia da natureza-criança”. Ele colhe definições tais como a de Paul Fort: “o Verbo que se faz águas”. Para Bachelard, a liquidez é um princípio da linguagem: a linguagem deve estar inchada de águas. Para falar do momento em que se aprende a falar, Bachelard cita o dadaísta Tzara: “uma nuvem de rios impetuosos enche a boca árida”. Bachelard busca correspondências das imagens com o som e cita Lucrécio: “assim, todos os tons da natureza morta ou animada têm seu eco e sua consonância na natureza viva”. A imaginação faz o papel de sonoplasta. Ou melhor: ele busca correspondência das imagens com a palavra da água: “a beleza nasce do som murmurante”.

Finalizando, vale a pena notar que Bachelard, num ensaio sobre Monet chamado As Ninféias ou As Surpresas de uma Alvorada de Verão, escreveu: “Não se sonha junto à água sem formular uma dialética do reflexo e da profundeza.” A Água e os Sonhos é marcados por essa relação de oposição: o reflexo o levou a pensar em Narciso, a profundeza em Caronte, o barqueiro que levava para a ilha dos Mortos.

Dead Lover´s: Kant com Sade

 Se o Rock das origens era algo tosco e que moveu a juventude dos anos 50, talvez hoje em dia alguém possa dizer que não é possível o Rock and Roll como antigamente. No entanto, o gênero tornou-se muito bem sucedido no mercado do mundo inteiro.


No cenário um tanto caótico do mundo, em que um presidente norte-americano parece ter seguido o conselho de Che Guevara e criado muitos vietnãs (Afeganistão, Iraque, Coréia do Norte), emerge a banda belorizontina Dead Lover´s Twisted Heart, mostrando vitalidade com seu Folk-Rock Indie. Fazendo da possível precariedade um diferencial e uma possível demonstração de ligação com as raízes do gênero musical ao qual se filiam canções como Hey Babe, Have You Ever Been in Hell e All Night Long, as músicas fazem apelos primais & tribais ao desejo e à vontade de p(h)oder. A banda demonstra um transbordamento nietzschiano de vida.

Hey Babe faz uma descrição do inferno sentimental pelo qual a sua amada nunca passou, tal qual um Dante clamando por sua Beatriz. All Night Long faz a apologia do desejos do eu profundo (Kant com Sade), além do elogio do impulso instintivo de posse mais primitivo e brutal. E se há algo de que existe efetivamente posse é o domínio que essa banda exibe do estilo folk-rock. Há todo um discurso amoroso trágico à la Nelson Gonçalves que parece ter sido vertido em inglês.

Se há quem diga que a história da música popular é um amontoar de clichês, vale a pena notar como a Dead Lover´s não soa clichê como soavam Engenheiros do Havaí e Guns and Roses quando regravavam iê-iê-iê italiano e Bob Dylan, fazendo referência aos anos 60 que, essa sim, faz jus ao termo clichê no pior sentido: uma linguagem desgastada. As guitarras da Dead Lover´s soam emocionadas, selvagens e faiscantes, nunca chupadas dos Rolling Stones ou de algum bluesman de antes.

A Dead Lover´s harmoniosamente arranjou uma ligação entre os nervos e as cordas de aço, entre o desejo de morte e de dor e os Eagles do Death Metal. Os amore excluir





*Laurene & Lúcio 11/12/2006 11:21 Os amores de Erasmo (Carlos) aproximam-se das loucuras de Erasmo de Roterdã, uma vez colocados sob o império de David Bowie & Lou Reed. Referências literárias (Mark Twain) misturam-se a outras musicais (Franz Ferdinand) e em diálogo com outras artes (Laerte e Angeli). Deixando um pouco de lado os arroubos de rebeldia, desejo e melancolia, o bom humor fez uma aparição picaresca em Huckleberry Finn. Os dramas são levados a um ápice em No More Dramas: o drama musical iluminista dos tempos de Beethoven não tem como sobreviver na violência de um mundo em que a história da burguesia fundiu com a humanidade; todas as bandeiras estão em frangalhos e os dramas foram levados ao extremo para serem destruídos.

A destruição é a verdadeira Beatriz dos Amantes Mortos de Coração Balançado. Eles se assentam sobre todas as ruínas de um mundo superaquecido, tarde na História, mas cantam, dançando de alegria entre restolhos e relíquias para rasgar.

Utopia & Antropofagia

  Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior*




Ainda nos anos 2000, muitos não sabem que Oswald de Andrade, além de escritor, jornalista e dramaturgo, possuía um projeto filosófico. Essa dimensão do autor não foi, até hoje, levada a sério entre os que estudam Filosofia. Nos anos 20, Oswald escreveu duas influentes exposições de idéias, configurando um pensamento altamente moderno: o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago. Seus textos filosóficos dos anos 40 e 50 (reunidos em dois volumes: Estética e Política e A Utopia Antropofágica) foram uma tentativa de sistematizar e fundamentar as idéias outrora esboçadas em uma forma fragmentária, ou seja, na breve e agressiva exposição de motivos que pediam os Manifestos.

Vejamos um exemplo da revisão de suas idéias. Primeiramente, Oswald escreveu no Manifesto Antropófago: “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem” (ANDRADE, 1990, p. 101). Mais tarde, na Crise da Filosofia Messiânica, explicou esse ponto de vista, defendendo a Antropofagia da acusação inquisitorial de amoralidade: “A operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável. A vida é devoração pura (…). Antes pertence como ato religioso ao rico mundo espiritual do homem primitivo” (ANDRADE, 1990, p. 101).

Pode-se dizer que sempre pulsou, em Oswald, um componente romântico, no sentido da busca de ideais. Mas, para Oswald, essas eram idéias que devoravam. O conceito de Antropofagia foi aquele que teve a melhor recepção em toda sua obra. Ele foi pensado, originalmente, como um diálogo com Montaigne, especialmente seu ensaio Os Canibais. Montaigne viu, naqueles índios brasileiros que visitavam a França, homens “recém-saídos das mãos de Deus”, revertendo a acusação que se fazia de serem bárbaros.

Em Filosofia, Oswald resolveu ir além de Montaigne, aproveitando a senda aberta para a revisão da cultura européia a partir do olhar dos “selvagens” do Novo Mundo. Na maturidade de seus ensaios filosóficos, Oswald misturou, a esse sonho de um homem antes da corrupção social, a consciência da luta de classe, deu a esse homem utópico a vontade de potência, temperada com a dialética de Hegel, separando sempre o caldo das liberdades individuais; a sobremesa foram os dilemas existenciais e “odontológicos”, afirmados por ele como mais importantes do que os “ontológicos”. “Le cannibal c´est moi”, poderia ter escrito a partir da leitura desse ensaio. Oswald passou a falar a partir do lugar desse habitante da América que vivia num mundo onde não existiam as palavras para “pecado” e “perdão”. O inventor da Antropofagia profetizou que o Brasil ficaria marcado por ter sido “um grilo de oito milhões de quilômetros quadrados” e que os conflitos entre a posse (o posseiro efetivamente instalado, o índio dono da terra) e a propriedade (o dono do título, a grande empresa detentora do capital) continuariam a se reproduzir, mesmo na atualidade, entre índios e colonos, sem-terra e latifundiários, etc.

Antropofagia era, em relação ao que veio antes, uma resposta somente cultural ao problema de identidade brasileiro, mas acabou indo além. A partir da Semana de Arte Moderna, não se trata mais de rejeitar o estrangeiro, é preciso incorporar o outro e ver o que há de si nele, além do que há de outro em si mesmo. Há uma convergência entre o Oswald dos anos 50 e o Ricoeur da maturidade: ambos tratam do “Le soi-même comme un autre”. Como foi explicado no Manifesto Antropofágico: “Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu” (ANDRADE, 1990, p. 49).

Assim, enquanto princípio organizador de uma apropriação seletiva, a partir da Antropofagia pode-se organizar uma Bienal: a Antropofagia seria útil para brasileiros e estrangeiros, seria um conceito já exportado, indo além das condições e tempo de sua criação, um princípio transcendente. Será que a cultura brasileira conheceu algo semelhante antes?

Antes de Oswald, Machado de Assis tinha apresentado, satiricamente apenas, o conceito de Humanitas através de seu personagem Quincas Borba. A busca de um princípio universal para todas as coisas foi um dos fundamentos a partir dos quais nasceu a filosofia entre os sofistas. A Humanitas em Quincas Borba era a sátira de uma filosofia do século XIX que acabava justificando a lei do mais forte. Mesmo que muitas outras interpretações possam ser realizadas, a Antropofagia é sempre uma seleção crítica. O princípio funciona agregando valores: as idéias que servem são assimiladas, o que não interessa é descartado. Para além da dialética do senhor e do escravo, surge uma do “devorador” e do “devorado”.

Para refletirmos sobre a Humanitas, tomemos a palestra Sobre o Humanismo, de Martin Heidegger. Machado de Assis, ao escrever sobre esse termo, provavelmente sabia que, ao tempo da república romana, Humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e vista sob esse nome. O homo humanus só surgiu em comparação ao homo barbarus. A Paidéia era então traduzida por Humanitas. O primeiro humanismo era o encontro da romanidade com a cultura do helenismo. A Antropofagia seria, então, produto do encontro das civilizações indígena e africana com a latinidade européia.

Em Machado de Assis, Humanitas permanece a preocupação original de reconduzir o homem novamente à sua essência. E essa apareceu em Quincas Borba como sendo a devoração do mais fraco, o triunfo dos fortes. Na Antropofagia, essa essência é, como no primeiro humanismo, a necessidade do homem de encontrar a si mesmo no outro, assim como as culturas humanas se revigoram encontrando-se umas nas outras. Machado transformou, com sua ironia distanciada, a norma civilizatória (Paidéia) naquilo que deveria ser desvio, mas prosseguiu sendo a lei oculta da sociedade (lei da selva). Assim, em Quincas Borba, o Humanitas deixou de ser uma bagagem civilizatória para tornar-se desvio determinista na compreensão da complexidade da vida.

Quem sabe moldada a partir do Humanitas, a Antropofagia também propõe que a humanidade vive uma devoração universal, mas se opõe a simplesmente chancelar a lei da selva: é contestadora do poder e propõe superá-lo através da razão que devora a si mesma na dialética, assim como na síntese.

O marco temporal da Antropofagia foi a devoração do corrupto Bispo Sardinha, ou seja, a rebeldia sadia e pagã contra o colonialismo corruptor. Oswald também fez oposição a Sócrates, afirmando que foi um parasita ao mesmo tempo moralista e libertino, vivendo às custas das famílias ricas de Atenas. Ao contrário de moralizar, buscando esconder a contradição interna, Oswald propôs que as contradições fossem assumidas em vista de gerarem sínteses e superações futuras. Ele praticou ativamente esse programa: manifestou-se contra e favor de Getúlio Vargas e de Villa-Lobos. Porém, quando Oswald assim agia, não era por gosto de “virar a casaca”; com esse tipo de atitude, assumia que era um “homem em movimento”. Sobre Freud, observou de maneira arguta que aquilo que o fundador da psicanálise designou como ações dominadas pelo inconsciente eram atividades que apelavam fortemente à consciência: comer e fazer sexo (e chamou-as “consciente antropofágico”).

Pelo motivo mesmo de assumir a contradição interna e não ocultá-la, propondo sua própria contínua atualização, a Antropofagia possibilitou, por exemplo, prever o surgimento dos boêmios hippies e beatniks (jovens que queriam fruir o ócio possibilitado pela sociedade tecnológica e a liberdade de costumes trazida pela emancipação feminina, junto com o divórcio e a pílula): do choque entre o matriarcado primitivo, ainda que imaginário, com o patriarcalismo, surgiria um novo matriarcado, onde o ócio criativo seria possibilitado pela tecnologia. Os jovens boêmios de hoje, depois do surgimento dos beatniks e hippies, (e, na atualidade, dos ciberpunks e hackers), passaram a ser novos bárbaros, ou seja, desviantes das normas e convenções que usam a tecnologia contra elas.

Portanto, é preciso superar o dilema posto na abertura do Serafim, recolocado nos seguintes termos na contemporaneidade: entre os intelectuais e os brasileiros cultos, a opção ainda está entre dizer piadas e paradoxos em Nova York para encantar as elites vegetais ou tornar-se apresentador do circo mambembe da revolução (o que equivale a mitificar o operário).

Assim, encerrando essa reflexão que seguiu na trilha de Oswald, façamos uma última consideração: um verdadeiro socialista não pode mais confundir humildade com grosseria, hábitos de higiene e sofisticação com meras convenções burguesas; precisa conscientizar-se (e aos demais) de que o objetivo é que melhoremos todos como seres humanos.

Syd Barrett: o elefante efervescente não está na praça da apoteose

 Syd Barrett: o elefante efervescente não está na praça da apoteose




Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior



Comentar a respeito de Syd Barrett (1946-2006), o co-fundador do Pink Floyd, é tratar de um tempo em que a música popular era um universo efervescente de experimentação e o rock/pop não tinha se tornado, como hoje em dia, a Coca-Cola da música. Existia espaço para referências literárias e experimentalismos, que deram lugar, muitas vezes, ao império da mercadologia.

Criou-se toda uma aura mística em torno de Syd Barrett, gerando um mito que o compara a um Nietzsche de nosso tempo. Alguns anos antes, quando Barrett co-fundou o Pink Floyd com Roger Waters (que tocou recentemente na praça da Apoteose), Mason e Wright, o compositor deu um forte impulso à banda naquele início de carreira. Depois de ter lançado vários singles e The Piper in the Gates of Dawn, Barrett, que preferia o rythm and blues (o próprio nome Pink Floyd saiu de uma fusão dos nomes de seus jazzistas favoritos, Pink Andersenl e Floyd Consel) à fusão entre rock e música clássica, ou seja, o chamado progressivo. As razões de sua saída do Pink Floyd deram origem a muitas lendas, mas o fato é que Roger Waters assumiu a liderança e colocou David Gilmour como guitarrista no lugar de Barrett após a turnê norte-americana, em 1968.

Entre 1968 e 1972, Barrett partiu para uma mal sucedida carreira solo; lançou dois álbuns: The Madcaup Laughs (que contava com a maioria dos componentes da banda Soft Machine, com exceção de Kevin Ayers) e Barrett. Decepcionado, a seguir retirou-se completamente do universo da música. Um álbum de material inédito, Opel, saiu em 1988.

Ao falar sobre The Piper at the Gates of Dawn (O Flautista nos Portões da Madrugada), Syd respondia prontamente: “Wind in the Willows” (Vento nos Salgueiros, livro infantil de autoria de Kenneth Grahame). No referido álbum, a canção Chapter 24, por exemplo, saiu diretamente do I Ching, com muitas palavras retiradas diretamente do livro. Barrett gostava muito de canções simples, que atingissem muitas pessoas, podendo também ter mais de um sentido. Octopus (Polvo) foi uma canção que Barrett pensou e mentalizou durante seis meses, antes de chegar a realizá-la. Na canção, doze linhas são, cada uma, antecipando a próxima e remetendo a um tema comum. Funciona como uma combinação de palavras que se direcionou num sentido, para depois o refrão vir e mudar o tempo, dando uma unidade a toda a canção. O clima das canções de Barrett remetia muito à infância, aos contos de fadas e às rimas infantis, as chamadas nursery rhymes. As letras de Barrett eram colagens surrealistas. Numa entrevista realizada na época do lançamento do disco Madcaup Laghs (1970), afirmou que escutava Bo Diddley, Beatles e Stones e velhos discos de jazz. Nesta época, lia Shakespeare and Chaucer.

Numa das poucas entrevistas que deu após sua saída do Pink Floyd, em 1972, Barrett estava de cabelos curtos, quase como um skinhead. Sobre si mesmo, afirmou: “eu sou um pintor, estudei para ser pintor”.

A escrita de Barrett sempre foi voltada para canções e não para as longas peças instrumentais que o restante do Pink Floyd apreciava. “A escolha do material dos demais membros do Pink Floyd tem muito a ver com o que estudantes de arquitetura costumam pensar”, comentou Barrett após sua saída da banda. “Coisas pouco instigantes, primárias. Qualquer um que estivesse andando numa escola de artes poderia pensar coisas semelhantes, mas quem sabe eles estejam planejando voltar para a escola”.

O Pink Floyd gradualmente afastou-se de canções como See Emily Play. Syd afirmou que, no começo, os ruídos eletrônicos foram necessários, eram algo excitante. Para Syd, ser um grupo pop era fazer singles. Mas ele afirmou que sua saída não foi uma briga, foram alguns problemas. Syd negava a versão de que saíra da banda porque enlouquecera em meio a viagens de ácido, dizendo que isso nada tinha a ver com o trabalho musical propriamente dito. Barrett atribuiu tudo ao fato de ter morado em Londres. As canções, afirmava ele, transmitiam uma atmosfera, mais do que contar uma história.

Syd voltou a usar seu nome real, Roger Barrett. Passou o resto da vivendo anonimamente em Cambridge, indo à casa da mãe, pintando e fazendo jardinagem. O trabalho com o Pink Floyd continuou lhe rendendo direitos autorais e ele viveu com certa segurança. No entanto, raramente aceitou falar com os fãs e jornalistas que o procuraram durante todos esses os anos.

Em torno dele floresceram lendas sobre o fato de que o excesso de drogas o fizera enlouquecer e levara à total instabilidade mental, o que não correspondia à realidade. Após sua morte em 2006, sua irmã Rosemary, enfermeira de profissão, afirmou que “Roger” não entendia o contínuo interesse por seu trabalho com o Pink Floyd, tinha certa dificuldade com o convívio social, mas era muito popular entre os lojistas da vizinhança e as crianças. Estudava profundamente História da Arte, tendo deixado um livro inédito a respeito. Para ilustrar as letras de Barrett, segue abaixo então a tradução de três das canções de Madcaup Laughs: Octopus, Dark Globe e Golden Hair:

Polvo



Viajando para cima, para baixo, dentro e fora

Você nem tem palavras

Viajando, viajando num dragão de sonho

Que esconde suas asas numa torre fantasma

Velas arrebentando em cada prato que quebramos

Estouram por agulhas espalhadas

O gongo do minutinho

Soa e limpa sua garganta

Madame, veja bem antes de ficar

Olha, olha, nunca fique muito quieto

A velha marca original

A verde, herbácea banda

E o tom em que tocam é “confie em nós”

Então viaje para cima, para baixo, dentro e fora

Você nem tem palavras

Tire-nos daqui

Por favor, feche os olhos para a volta do polvo!

Não é mau estar perdido na floresta

Não é ruim na floresta, aqui é tão quieto

Significa menos para mim do que pensei

Com um doce monte de sementes

Potes de mel, comida mística brilhando...

Bem, o maluco riu para o homem na fronteira

Hey, ho, rufam os tambores

“Trapaça!” Disse ele chamando o canguru

É verdade que em suas árvores eles gritam

Por favor, deixem-nos aqui

Fechem os olhos para o passeio do polvo!

O maluco riu para o homem na fronteira

Hey, ho, rufam os tambores

Os ventos sopram e as ondas chegam em vagas

Eles nunca vão me colocar em sua bolsa

Os mares vão sempre ir e voltar

Quanto mais alto você voa, mais fundo você cai

O vento sopra no trópico

Os afogados sentam nas cadeiras

A porta guinchando vai sempre guinchar

Dois para cima, dois para baixo e nunca mais nos encontramos

Na viagem meramente esqueça meu lado

Por favor, tire-nos tire daqui

Feche seus olhos para a volta do polvo!



A capa de Madcap mostrou Syd agachado e pensativo no chão de uma sala vazia. No fundo, uma garota nua. A foto traz a atmosfera das canções, minimalistas, despreocupadas com a moda, sinceras, sem produção refinada, deixando que o ouvinte se concentrasse no efeito de fluxo de consciência. O trabalho engendrava um intimismo gentil e uma hesitante, mas intensa, consciência. Outra canção do mesmo disco foi Dark Globe (Globo Escuro):



Oh, onde estará

O salgueiro que sorriu para essa folha?

Quando eu estava sozinho você me prometeu seu coração de pedra

Minha cabeça beija o chão

Estava quase caindo, encostando na areia

Por favor, por favor, me dê a mão

Eu sou somente uma pessoa cujos braços batem

Nas mãos, que ficam pendendo no alto

Você sentiu minha falta?

Você sentiu minha falta no fim das contas?

O caminho dos passarinhos

Ao redor dos cafés

Marca sua língua

Minha cabeça beija o chão

Estava quase caindo

Por favor, por favor, me dê a mão

Eu sou só uma pessoa acorrentada no frio como esquimó

Tatuei meu cérebro afinal...

Você sentiu minha falta?

Você sentiu minha falta no fim das contas?



E, finalmente, o poema de Joyce que Barrett musicou, Cabelos Dourados (Golden Hair), letra originária do poema Chamber Music:



Abra sua janela, cabelos dourados

Eu vejo você cantando no ar da meia-noite

Fecho meu livro e não leio mais

Observando o fogo dançar no chão

Eu deixo o livro, eu deixo a sala



Desde que escutei você cantando na bruma

Cantando e cantando, um mero ar livre

Abra sua janela, cabelos dourados...



Ao todo, a carreira musical de Syd Barrett foi apenas de 1965 até 1972. Passou 32 anos recusando-se resolutamente a gravar qualquer música ou aventurar-se numa apresentação. Barrett começou a fazer música na adolescência, pouco depois da morte de seu pai, um médico. Seu estilo de tocar guitarra era singular. O primeiro single da banda, Arnold Layne, era sobre um sujeito perturbado que roubava roupas femininas dos varais locais em Cambridge. David Bowie adorou os climas ora claros ora escuros das canções de Barrett. Recentemente, Bowie juntou-se aos remanescentes do Pink Floyd para homenagear Syd, cujas músicas tiveram grande influência sobre ele.

Muitos viram em Jugband Blues (1968), última canção gravada de Syd com o Pink Floyd, um apelo de um homem frágil, que lutava contra a esquizofrenia. Essa perturbação mental foi a razão que Roger Waters apresentou para o afastamento de Barrett da banda. Num depoimento de Waters sobre Barrett, disponível no Youtube, ele elogiou o talento do Barrett pintor: “Barrett pintou um quadro com leões, arcos romanos e criou uma perspectiva muito estranha (o quadro comentado por Waters segue em anexo junto com esse artigo)”. Ele fez algumas apresentações com uma banda local chamada Stars no início de 1972, mas uma crítica negativa numa revista o desistir das ambições musicais e tornar-se um anti-social e recluso em tempo integral.

Seu fantasma continuou a fascinar muitas gerações de músicos de rock. O próprio Pink Floyd foi assombrado por seu espectro, conforme referências a ele em Dark Side of the Moon, Wish You Were Here e The Wall. David Bowie relançou a forma deslocada e bastante inglesa de projeção vocal em canções como The Bewlay Brothers. Em 1976, logo depois que John Lydon entrou nos Sex Pistols, Malcolm McLaren tentou convencer, sem sucesso, a banda a tocar canções de Barrett. A banda The Damned tentou fazer com que Barrett produzisse seu segundo álbum. Várias bandas da New Wave (tais como os Soft Boys) apropriaram-se do toque surreal de Madcaup Laughs como parte de sua estética. Ele tornou-se um flautista encantado para o rock independente dos anos 80, citado tanto Blur como por Brian Jonestown Massacre. No novo milênio, basta ouvir atentamente Libertines ou Babyshambles para saber que o diamante louco da música de Syd continua informando as escolhas criativas da última geração do rock e dos espíritos boêmios.



Bibliografia:



Syd Barrett Archives: www.sydbarrett.net/welcome.htm