terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Café, escritores, livros e citações

 


* Por Luciene Guimarães *

Se você é leitor e se a companhia de um livro atrai uma xícara de café, imagine como é esse ritual para o escritor, em que a criatividade  parece ser beneficiada pela intensidade do sabor do café expresso. Mas não se trata aqui de discutir o próprio café, seu aroma, a sensação, se é turco, ristretto, ou com creme,  mas do ritual da escrita, que se passa muitas vezes em torno do café, dos lugares de encontro e discussão literária, mas também da solidão do escritor, quando quer matutar as palavras.

Escritores e cafés estabelecem entre eles uma relação simbiótica. Foi frequentando cafés que muitos escritores fizeram a fama dos recintos , que por sua vez,  só se tornaram conhecidos porque foi onde Borges, Fernando Pessoa, Machado de Assis, ou mesmo Zola ou Rimbaud, passaram por ali. Passavam para se aquecer ou esquecer de algo, ou mesmo permanecer, ficar, discutir, se juntar às efervescências sociais, ou se isolar num canto para elaborar sua escrita.

Se você é um leitor curioso, uma visita a  Buenos Aires pedia ir ao centro e comer um churros com chocolate no Café Richmond, famoso porque Borges ali se reunia com seu grupo literário, quando jovem, ritual diário.  Conhecido também por Júlio Cortázar, que em um dos contos do  seu fabuloso Histórias de cronópios e de famas, faz  referência ao recinto : “ Enquanto toma café no Richmond da Flórida, o cronópio molha uma torrada com suas lágrimas naturais.” A rua Flórida, onde ficava o café, hoje deu lugar a uma loja de departamentos americana, para a tristeza dos cronópios.

No Rio,  a tradicional e histórica Confeitaria Colombo, ilustríssima pelas passagens de  Machado de Assis e Olavo Bilac, esse último, frequentador assíduo, foi fundada em 1894, na transição para a República. Em Esaú e Jacó, Machado evoca uma suposta confeitaria, que serve de motivo para as ironias   do fim do Império: “Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembleia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita (…). Levantada a cortina, Custódio leu: “Confeitaria do Império”. Era o nome antigo, o próprio, o célebre (…)” A confeitaria, que seria a do “Império” ou a da “República”, aludiria à Confeitaria Colombo.

Mas entre a História e a literatura, qual é a definição de um café literário? O termo “literário” que acompanha certos cafés pode ser bastante restritivo, diz a  Encyclopédie Universalis. O fato é que o que o ritual de encontro nos cafés que marcaram a história não se restrigem só à literatura, mas logo se juntaram a eles representantes dos outros campos da criação, das artes dramáticas às artes plásticas, e por todos aqueles que tinham algo a ver com estes círculos, tais como comerciantes de arte, livreiros, editores, colecionadores, bancas de jornais, etc. Filósofos, acadêmicos e cientistas têm ali um lugar, assim como ideólogos, políticos e até teólogos. O Café de Flore, em Paris, é um ícone nesse sentido, de encontros de discussão das humanidades, como o grupo da Rue Saint Benoît, grupo intelectual de esperançosos do pós-guerra, da resistência da ocupação francesa, centrado na figura da escritora Marguerite Duras, mas onde participavam também filósofos e escritores, como  Maurice Blanchot, Georges Bataille, e aqueles que se tornaram políticos importantes, como François Miterrand. É preciso ressaltar, no mesmo café, a presença também icônica do casal filósofo Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Estes também frequentavam o Café Les Deux Magots, lugar  marcado pelas visitas assíduas de Verlaine, Rimbaud e também Ernest Hemingway.

Além da forte sociabilidade, “os estabelecimentos foram, em um ou outro grau, uma espécie de escritório acadêmico, projetado para trocar opiniões e confrontar ideias da maneira mais livre possível.” Para muitos escritores, estar num café fez atiçar a criatividade e a imaginação, mantendo a inspiração acessa. Fugir da solidão, abstrair o burburinho da vida urbana, fazer-se de voyeur, trocar a escrivaninha pela mesa do café virou hábito de alguns. Hemingway escreveu Paris é uma festa, livro em que ele mesmo deixa escapar que escreveu parte dele num “café na Place St. Michel”.  A vida boêmia dos escritores na Paris de vanguarda misturava desejo e escrita: “Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. (…) Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.” Eis uma presença efêmera, uma cena de relance, que evoca a passante de Baudelaire. Apollinaire foi outro escritor que permanecia longas horas no Café de Flore, escrevendo. Sartre e Simone de Beauvoir escreveram um livro inteiro ( “Os mandarins”) no Café Les Deux Magots. Hoje, o título do romance dá nome a uma sala do café parisiense.

Entre os contemporâneos, a escritora Patti Smith, também se rendeu ao sabor e charme dos cafés. Em seu livro Devoção, em meio a tantos nomes da cultura francesa que ela mesma cita, ela também se reconhece num estilo “voyeur”, em  que imaginar a cena inspira o livro. “Acordo mais cedo que o normal. Chego ao Flore bem na hora em que a cafeteria está abrindo, peço uma baguete com geleia de figo e café preto. O pão ainda está quente. ” Ao regressar à sua casa, nos EUA, ela diz cair em nostalgia: “Já em Nova York, tive dificuldade para me reacomodar quimicamente. Mais do que isso, sofri crises de nostalgia, uma saudade de estar onde estivera. Tomar café da manhã no Café de Flore, as tardes no jardim Gallimard, surtos de produtividade num trem em movimento.”

A química do café ou dos cafés também agiu em Enrique Vila-Matas, escritor espanhol. Em seu livro  Paris não tem fim, dedicado a uma longa estadia na França, entre confissões e fugas, ele diz : “Creio que naqueles dias, era eu quem dava as costas para o mundo, para o mundo todo. Sem leitores, sem ideias concretas sobre o amor nem a morte, e, para completar, escritor pedante, que escondia a fragilidade de principiante, eu era um horror ambulante. (…) E passei a fumar cachimbo, que julgava (talvez influenciado por fotografias de Sartre no Café de Flore.)”. Seja pela xícara de café que reanima os ânimos da escrita, ou seja pelo lugar repleto de surpresas e passagens dignas de Baudelaire, café e escritores parecem ter uma química perfeita.

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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.

 

2 comentários:

Paulo Falcão disse...

Caro Lúcio, por onde anda você? Espero que esteja bem. Abraço.

Lúcio Jr disse...

Estou bem