* Por Luciene Guimarães *
Poucos escritores do século XX tiveram o mesmo fôlego de Marguerite Duras em sua intensa obra. A conhecida escritora de O Amante (prêmio Goncourt nos anos 1980), não publicou apenas romances, como também suas crônicas jornalísticas para o jornal francês Libération, escreveu peças de teatro, roteiros para TV, ainda se dedicando a uma vasta atividade cinematográfica (cerca de 20 filmes produzidos). Como se não bastasse, foi tradutora, vertendo para o francês, peça de Anton Tchekhov e contos de Henry James. No Brasil, a obra dessa intensa escritora e cineasta ganhará novo alento com a publicação e reedição de algumas de suas obras, por algumas editoras brasileiras, como o livro Escrever, pela editora Relicário, além de outros títulos que estarão em breve no prelo. Mesmo que a obra de Marguerite Duras suscite bastante interesse dos leitores brasileiros , o público entretanto, talvez desconheça outras facetas da genial escritora.
Nascida na antiga colônia da Indochina, (hoje Vietnã), em 1914, Duras passou a vida exorcizando os fantasmas da infância, trazendo à tona através da escrita a própria memória: de um lado, os eventos que abalaram o século, como a Segunda Guerra e a efervescência de 1968, de outro, os conflitos familiares e afetivos. Em alguns livros, como Barragem contra o Pacífico, de inspiração autobiográfica, é no espaço da Indochina da infância, que as mazelas da vida colonial são desveladas. De fato, Duras conviveu com a frustração de uma mãe instrutora escolar que sonhou com a riqueza prometida na colônia francesa, onde o mar invadiu as terras da família provocando sua ruína. Outro livro escrito nos anos quarenta e depois esquecido, retomado anos mais tarde, A dor, relato confessional na angústia em salvar a vida do então marido, Robert Antelme, escritor e militante da Resistência que foi perseguido e quase morto pela Gestapo.
Os lugares de criação
Ao longo da vida, Marguerite Duras escolheu viver em três lugares, destinados ao trabalho de criação, lugares esses carregados de simbolismos e significativos para as fases de sua carreira. O apartamento em Paris, na rue Saint-Benoît, que acolhia discussões de intelectuais; sua casa em Neauphle-le-Château, adquirida com a venda dos direitos de Barragem contra o Pacífico para o cinema; e os verões em Trouville, onde ela habitava no apartamento onde morou Marcel Proust. O apartamento à rua Saint-Benoit, endereço nobre perto do Café de Flore e lugar de efervescência política e intelectual, sobretudo nos anos da Guerra, tornou-se ícone do envolvimento da escritora com a vida intelectual na França, levado em particular pelo círculo de intelectuais conhecido como o “ grupo Rue Saint-Benoît”. Entre alguns de seus membros estavam filósofos, escritores e cineastas, como Maurice Blanchot, Dyonis Mascolo, Edgar Morin, Maurice Nadeau, Claude Roy e Elio Vittorini. O grupo formado por intelectuais unidos por uma forte amizade desde a Resistência, procuravam se opor a certos princípios, subvertendo o poder. Se, depois da guerra, a maioria de seus membros estavam inscritos no Partido Comunista, alguns o abandonaram, como Vittorini na Itália, outros foram excluídos, como Antelme, Mascolo e Duras, em 1950.
A casa na pequena cidade de Neauphle-le -Château, nos Yvelines, tornou-se também locação para alguns de seus filmes, como Nathalie Granger (1973). Gerard Depardieu, Jeanne Moreau, Delphine Seyrig e Bulle Ogier foram protagonistas do seu cinema, praticado sobretudo nos anos setenta e início dos anos oitenta.
Entre a escrita literária e a atividade cinematográfica
Foi justamente a exigência da escrita, para ela, solidão e fardo, que a levou se ausentar da literatura durante a década de setenta para se dedicar exclusivamente ao cinema. A transição para o cinema, foi para ela, escritora já consagrada, uma experiência árdua. A inserção no meio cinematográfico deu-se à margem do cinema comercial ou de grande público, contando com orçamento modesto, o que a levou a sobreviver fora do circuito de distribuição em grandes salas. Seus filmes eram projetados em festivais de cinema experimental na França, e em países vizinhos. Um desses festivais, foi o Festival d’Hyères, que surgiu no início dos anos setenta, motivado pelo cineasta experimental radicado americano, Jonas Mekas. O Festival d’Hyères – que tinha esse nome por ser realizado em Hyères, uma pequena cidade turística no sul da França – surgiu ainda quando a relação da cinefilia com o cinema de autor eram férteis, o que propiciava verdadeiros rituais de encontros entre filme, público e autores. Cineastas como Jean-Luc Godard, Chantal Akerman, Jean Eustache e Jean-Marie Straub, todos franceses que despontaram no cinema de autor, eram frequentes em festivais, mostrando seus filmes na programação. Duras, não só projetava seus filmes produzidos nos anos setenta, como fazia parte do júri. Sabe-se que a estética experimental influenciou seu estilo. Sua inserção no meio cinematográfico deu-se então pela via do cinema alternativo, longe dos holofotes de Cannes e que ela apreciava e valorizava como forma política de resistência e oposição à indústria do cinema. Com dois filmes indicados para o Festival de Cannes (India Song et Le Camion) em 1975, e 1977, sua posição era de renúncia absoluta ao mundo do cinema europeu e das estrelas de Hollywood. Ela frequentou Cannes mas sem nenhuma afinidade com o glamour do evento cinematográfico, preferindo se recolher no quarto de hotel. O Festival d’Hyères que sempre privilegiou seu cinema, foi para ela, um lugar de encontro, cumprindo o ritual cinéfilo de debater com cineastas e com o público. Sua exigência com um espectador que “não sabia ver, não sabia ler” (as imagens) foi quase seu lema de protesto ao espectador passivo que se rendia ao cinema de sábado à noite para ver filmes americanos.
Duras excêntrica
Outra excentricidade da escritora, diz respeito à venda dos direitos autorais de seus romances. Duras os cedia a cada vez que eram solicitados, mas depois, arrependida – não se sabe – ou talvez, frustrada pelas adaptações não corresponderem às expectativas, ela renuncia a todos. Foi assim com Barragem contra o Pacífico, filme de Renée Clement, o mesmo se deu com Peter Brooke, quando vendeu Moderato Cantabile e foi ainda mais grave com seu livro mais célebre, O amante, publicado em 1985. O cineasta francês Jean-Jacques Annaud comprou os direitos, convidou Duras para opinar nas filmagens e no roteiro, uma espécie de conselheira. Antes das filmagens começarem, Duras teve que se afastar por problemas de saúde, e então Annaud realiza o filme mesmo assim. Ao perceber o estilo comercial do filme, ela se arrepende do projeto, mas sem sucesso. Em revanche, ela responde ao projeto , não com outro filme, mas publicando um novo livro: O amante da China do Norte. Com uma linguagem próxima da cinematográfica, ela afirma: “é um livro, é um filme. “
Duras não se confessava grande cinéfila, dizia não ter estímulo de procurar filmes em cartaz, preferindo os filmes da TV . Havia uma razão para tal: fórmulas repetitivas, como se fossem enformados, realizados como produtos em série. Era exigente quanto à forma do filme. Apenas um cineasta era admirado por ela: Jean-Luc Godard. Por algumas vezes, se encontraram e registraram suas conversas, essas publicadas em livro anos mais tarde, como diálogos. Godard a convidou para atuar num de seus filmes, ela conta em Les Yeux verts, longo ensaio para o Cahiers du Cinéma. O filme era Salve-se quem puder (Sauve qui peut : la vie) em que ela deveria aparecer numa entrevista. Como o ambiente não foi favorável, Godard resolve na montagem da cena, deixar apenas a voz off de Duras. Essa escolha não parece ser por acaso. É sem dúvida a voz off dela o que prevalece em todos ou na maioria de seus filmes, principalmente os dos anos 70. Eis a homenagem do amigo Godard.
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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.
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