quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O Descanso de Duchamp

Link permanente O descanso de Duchamp
por Daniel Piza, Seção: artes visuais 08:12:13.

Baptistão

Marcel Duchamp continua a ser o ídolo-mor de artistas contemporâneos e a besta-fera dos que odeiam a arte contemporânea, entendendo por isso basicamente as instalações. O primeiro a rir desse papel central no debate do século 21 seria o próprio Duchamp. Qualquer pessoa que caminhe pela boa exposição em cartaz no MAM, no parque do Ibirapuera, sabe desde a entrada que não é para levá-lo tão a sério, nem por um lado nem por outro. E o que menos vê são instalações como as que tomaram conta de bienais mundo afora.

Já é lugar-comum notar que o artista que um dia ironizou os museus e pintou bigode na Mona Lisa é agora homenageado por eles. Sua Fonte de 1917, o urinol invertido que enviou para um salão de “belas artes”, virou objeto de culto; os “ready-mades”, utensílios do cotidiano que desvirtuava num exercício de livre associação visual, não são vistos como efêmeros, mas duradouros. Suas frases sobre o acaso e o inacabamento foram convertidas em dogmas, em doutrinas. Acima de tudo, é como se ele tivesse o gênio de Pablo Picasso, capaz de reinventar todos os gêneros. Mas ele não tinha – e sabia disso.

Duchamp passou por todos os “ismos” do início do século passado, como futurismo e dadaísmo, mas me parece claro que sua natureza tendia ao surrealismo, com seu gosto por sonhos, nonsense e trocadilhos (como “prière de toucher”, um seio para tocar, em que “prière” é “por favor” e também “prece”). Seu alvo era o modo de vida tido como “burguês” e “racional” que se traduzia na monogamia religiosa e na arte que se pretendia um espelho da natureza. Como mostra Calvin Tomkins na biografia que fez do artista, ele declaradamente se preocupava em provocar a moral da época, mais do que em ter uma “obra”. Não espanta que tenha convertido sua pessoa em assunto, tal como Dalí e Warhol depois que disseram o que tinham a dizer em arte.

Em suas próprias palavras, Duchamp era um maníaco sexual, e atrás de toda a variedade de seu trabalho o único tema era esse. O Grande Vidro é um projeto em que os homens como máquinas tirariam a roupa da mulher com quem iam se casar, naqueles tempos em que muitas mulheres se casavam virgens. Étant Données é, como já escrevi, um “peep show” em que você vê uma mulher de pernas abertas deitada na natureza como a Giganta de Baudelaire, enquanto segura um lampião de gás. A sexualidade na era mecânica – e o próprio urinol foi acompanhado de um elogio irônico à engenharia americana de encanamentos e pontes – é o que motivava Duchamp. Não existe discurso político em sua arte.

E ele gostava de fazer coisas, de lidar com mecanismos e efeitos concretos; jamais caiu nessa arte conceitual que abandonou a noção do fazer. Apesar de ter abandonado a pintura em 1918, a figuração é uma constante em sua carreira, como em Étant Données (cena derivada de Courbet e outros pintores românticos), e ele sabia que uma diagonal ou uma simples transparência já implicam a sensação de perspectiva. Mesmo quando fazia algo mais gráfico – como os discos em movimento, que antecipam a “op art” – nunca deixava de associar uma simbologia. Chamava esse disco de “plafond pulsant”, com óbvia conotação erótica – como a espiral que Saul Bass fez para os letreiros de Um Corpo que Cai, de Hitchcock. Duchamp não deixou apenas más heranças.

Hoje não há mais “belas artes”, casamentos virginais, corpos cobertos por roupas fechadas e escuras, burguesia fácil de chocar em seu mundinho de carros e eletrodomésticos, etc. O público em geral apenas se diverte com as obsessões e os truques de Duchamp, enquanto os artistas o endeusam e os caretas o demonizam. Ri melhor quem ri primeiro.

("Sinopse")

Nenhum comentário: