segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Gerardo em Trânsito: Deus e o Diabo na Terra da Disneyworld

Por: Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

O livro de contos El Guionista de Díos o del Diablo (o Roteirista de Deus e do Diabo, Walter G. Greulach, 2008, Buenos Aires, Editora Arte e Parte, ainda inédito no Brasil), inicialmente pareceu-me a obra de um jornalista com talento literário que pinçava fatos variados (os famosos fait-divers) nos jornais e transformava-os em literatura de estilo elegante, que brilha como pedra lapidada, mas fragmentários e sem unidade. Ele parecia sonhar com a totalidade e a causalidade, mas no fundo sabê-las impossíveis, daí ficar recolhendo short cuts em jornais para ficcionalizá-las, transformando-as em seus contos.
No entanto, qual não foi minha surpresa: o texto responde justamente a esse tipo de pensamento as respeito dele: “Já relaxado voltei a analisar minha situação. Preocupava-me o tema [dos contos] fossem más histórias copiadas dos jornais. Este agir plagiando inconscientemente poderia ser minha perdição” (GREULACH, 2008, p. 114). Mais adiante, ele reflete de forma surpreendente sobre seu próprio estilo: “Que maníaco de merda – me insulto –por que tenho sempre de colocar um final impossível?” (GREULACH, 2008, p. 115).
Em O Roteirista, a narrativa desarticula a língua jornalística para, a partir dela, gerar uma signância, ou seja, um campo múltiplo de sentido que o leitor pode obter a partir de uma cadeia aparentemente fixa de significantes. A produtividade textual joga com o geno-texto e o feno-texto no sentido utilizado por Kristeva: faz uma articulação entre a estrutura aparente dos contos (que são organizados verticalmente de acordo com o local onde se passam: Argentina/Aruba/Estados Unidos), sempre no plano do enunciado concreto, do discurso manifesto. Essa estrutura organiza-se verticalmente num eixo metonímico, enquanto a outra estrutura organiza-se horizontalmente, num eixo sintagmático (Um prêmio inesperado/A musa perdida/ O Roteirista de Deus e do Diabo/ A casa nas Montanhas).
As narrativas de Greulach apresentam um desejo profundo da causalidade: de que tudo que passamos nesse mundo possua uma razão e não seja absurdo. No entanto, não é assim como o mundo se nos apresenta; sempre trabalhando com reviravoltas do destino, os personagens receberem o resultado de suas ações, mesmo que muito tempo depois: assim acontece com o os protagonistas dos contos, sejam eles Luís Gómez, Jaime Zucarelli, dentre outros, sempre o protagonista está prestando contas ao destino. Assim, de forma trágica e impressionante, surge como paradigmática a relação entre o admirador e o ídolo no conto Cortina de Ferro. A reflexão que abre esse conto serve de motivo-guia para o livro, um leit-motiv que muitas vezes se repete:

Existem histórias em nossa vida que queremos borrar para sempre. Criamos então uma cortina de ferro e por anos não deixamos filtrar-se no presente nenhuma dessas lembranças. Mas tenha por seguro, leitor, que em algum momento antes do fim de seus dias, algo tão simples como uma imagem, um cheiro ou um som, moverá o interruptor. E baixará a cortina e então cairão sobre você – como finas facas afiadas – aquelas velhas sensações que acreditava desterradas de sua mente (GREULACH, 2008, p. 87).

O mais claro exemplo está no próprio conto Cortina de Ferro, em que o personagem principal, tratado na infância como esquizofrênico delirante por identificar-se em demasiado com um personagem de uma série televisiva, o detetive Suárez, reencontra, na maturidade, o seu ídolo, agora decadente:

Me dei conta de que era “meu herói” que viam meus olhos. Só sobravam os despojos daquele que um dia havia comovido minha existência (...). Ele tartamudeava e com frases desconexas (...) uma e outra vez as mesmas histórias. Para minha surpresa, já conhecia as anedotas de memória. Seria por acaso que começava a deslizar-se a cortina de metal? (GREULACH, 2009, p. 89).

O deslocamento, o trânsito é sempre recorrente: da Argentina, o cenário desloca-se para Aruba e daí para os Estados Unidos. Mas é somente em O Tronco Voador de América, que é quando a narrativa se situa totalmente na América do Norte, que a personagem América morre; a América está morta. Assim, em Um Prêmio Inesperado, ao narrar a tragédia de um personagem, narra-se também que o sonho americano virou cenário de pesadelo:

Steven gastou sua infância e sua adolescência pelas ruas de Liberty City, um dos bairros mais marginais do sudeste dos Estados Unidos. Um sistema econômico exclui deliberadamente esse setor da população. Segrega-o, suprindo-o das necessidades mínimas para que não saia desses bolsões de miséria. Escolas de nível F, medicação, vivendas populares, fichas para obter comida e liberdade para que fumem marijuana e usem crack, desde que não saiam de seus guetos. Todo esse contexto vai criando em estes lugares uma cultura do conformismo, da simples sobrevivência. Neste ambiente, a máxima aspiração de um jovem é conseguir uma boa esquina onde viver droga e chegar algum dia a ser um traficante respeitável (GREULACH, 2008, p. 101).

Outro elemento que chama a atenção é que A prosa de O Roteirista de Deus e do Diabo possui traços em comum com a do brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes (Três Mulheres de Três PPPs), ou seja: uma preferência recorrente de rever episódios amorosos sob uma nova luz, virando de cabeça para baixo as certezas anteriores do narrador.
Existe, também em comum com Paulo Emílio, um contraste agudo entre a prosa elegante em que o texto é escrito e as atitudes extravagantes dos personagens que assumem a primeira pessoa, tal como a postura complacente que o protagonista do conto O Padre e o Jardineiro assume diante das loucuras de seu amigo:

Tito sofria de esquizofrenia bipolar, enfermidade que se havia manifestado nos últimos meses. Sempre de noite, se transformava em uma pessoa totalmente diferente. Era como se um espírito endemoniado se apoderasse dele. Havia feito o possível para que ninguém soubesse de seu mal noturno. De dia era completamente normal. Muitas noites, Félix esperava que dormisse, entrava na casa e escondia as chaves. As guardava novamente em seu lugar minutos antes de que amanhecesse, mas algumas vezes escapava de sua férrea custódia e começava um verdadeiro pesadelo (GREULACH, 2008, P. 79).

Assim, pode-se dizer que essa narrativa trabalha mais além do que praticando do que praticar simplesmente a metalinguagem falando, por exemplo, de outros textos do livro de contos no conto que traz o nome do livro e, de certa forma, é mais do que um conto-chave,é um conto-pai que traz consigo o genótipo, quase que o nome-do-pai para os demais contos. O nome-do-pai: Geraldo, Gerardo. Ao final do livro, como se fosse um epitáfio, dialogando com todos os contos, está o poema Sem Retorno, assinado pelo, ainda assim, pelo pseudônimo Gerard Walt:

Litanias de oportunidades perdidas, imagens que como flashes
Querem iluminar uma mente já indefesa.
Sombras lúgubres que se entrecruzam ondulantes, sinistras e de fundo um grito, como um martelar incessante, destroçando meus ouvidos já sem tímpanos.
Gozo e dor, paixão e desamor, desterro e saudades, tudo misturado no cruel desfile frente a umas estáticas pupilas.
O arrependimento de não ter ido um pouco mais além.
A cômoda covardia que engendra o conformismo.
O que nunca foi sempre por culpa dos outros.
Funda sombra que oprime um peito carente de batidas.
O deslizar-se nu por um tobogã metálico descascado e ao final um tanque com as águas geladas do canto daqueles a quem fizemos dano.
O desejo de me aferrar à lembrança de um beijo, de um sorriso, de um olhar de um menino, de um simples entardecer, ao alcance da mão.
É em vão, minhas articulações não respondem aos débeis impulsos de meu atormentado cérebro. Chega o final, vento gelado me resseca os pés, já não há futuro, o passado está ruindo comigo.
Poderia ter feito melhor.
Se há um Deus, que me dê o castigo merecido... (GREULACH, 2008, p. 13

2 comentários:

GERARDWALT disse...

Un abrazo señor Lucio jr. y muchas gracias, honrado por su reseña...Walter Greulach

©Claudia Isabel disse...

Pero que reseña más interesante de la obra de Walter...no tengo dudas de la sensibilidad y de su excelente manera de narrar. Un placer leerlos a ambos
Abrazos