sexta-feira, 9 de abril de 2010
Jardim de Infância (3° Ato)
Jardim. PETER PAN, PINÓQUIO e RAINHA FOGUETE de mãos dadas num círculo. Eles usam capacetes, do quais saem vários fios que seguem para fora do palco.
VOZ (Pedro Bial / Robô)
Vou revisar as regras pela última vez. Trata-se de jogar o jogo do “eu nunca” de outro modo. Ao invés de, às vezes, dizer a verdade, às vezes, dizer a mentira, os participantes precisam dizer a verdade sempre. Sempre! Ok? Vocês cantarolam (cantarolando): “eu nunca, eu nunca, eu nunca”. Assim, três vezes e, depois, um participante fala. A ordem das falas já foi sorteada e será (p.ex) Peter, Pinóquio e Rainha Foguete (é importante que a cada apresentação essa ordem mude e um diferente personagem vença). O participante que conseguir não mentir vence. Se o participante mentir, ele será elecutrado até a morte (ele ri). Brincadeirinha. Se o participante mentir, uma sirene será acionada e ele deverá deixar a roda. É preciso dizer a verdade sempre. A equipe do BBB instalou um dos mais avançados aparelhos detectores de mentiras do mundo e se algum de você mentir, esse alguém será eliminado. É preciso dizer impreterivelmente sempre a verdade. Dizer: “eu nunca X”. Esse X deve ser alguma coisa de verdade que aconteceu na vida de vocês. O vencedor ganhará um carro de batatas. Não um carro com ou cheio de batatas, mas um carro literalmente feito de batatas. Podemos começar? Todo mundo entendeu?
PETER PAN
Entendi.
PINÓQUIO
Ok. Bial.
VOZ (Pedro Bial / Robô)
Tudo certo, Rainha Foguete?
RAINHA FOGUETE
Certíssimo, Bial, me deseja boa sorte.
VOZ (Pedro Bial / Robô)
Boa sorte para você, Rainha Foguete, minha jujubinha. E para vocês também, Peter e Pinóquio. Então, vamos lá, um, dois, três, valendo!
TODOS
(cantarolando / rodando)
Eu nunca, eu nunca, eu nunca.
Isso é dito sempre depois que um personagem fala. Algumas falas possíveis a serem alternadas entre os personagens são as seguintes (o ideal seria que os atores criassem suas próprias histórias):
Eu nunca entendi as regras do jogo de eu nunca.
Eu nunca entendi se era para beber quando se fala a verdade ou a mentira.
Eu nunca fui queimada na mão por uma menina que disse: “quer ver como o ferro queima?” e eu disse “não” e ela disse: “quer ver?” e ela me fez ver me queimando quando eu tinha 7 anos e eu voltei para casa chorando para falar com a minha mãe e a minha mãe disse simplesmente para eu não falar mais com a menina, quando, na verdade, ela deveria ter ido lá bater nela, destruir ela, queimar ela, queimar a casa dela, queimar tudo dela para que eu não ficasse me remoendo acerca disso o resto da minha vida toda.
Eu nunca suportei o colégio a ponto de entrar chorando praticamente todos os dias do ano no 3° jardim e, de certo modo, nunca superar isso e nunca conseguir ficar numa sala de aula sem sentir que eu estava numa espécie de morte induzida e que todos ali eram porcos, todos ali eram porcos, os professores, os alunos, porcos, porcos.
Eu nunca quis ser um menino de verdade.
Eu nunca usei sutiã de enchimento, quando eu tinha 11 anos e falei para uma amiga e ela disse para turma inteira que riu da minha cara.
Eu nunca quis ser criança para sempre.
Eu nunca perdoei Brás Cubas por não amar Eugênia (“ Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? "), porque eu amaria Eugênia, eu amaria Eugênia perdidamente.
Eu nunca sonhei que eu estava numa casa cheia de baratas e elas queriam me comer viva.
Eu nunca estive com um amigo com bala ou doce nas mãos na rua Maria Quitéria em Ipanema no dia 13 de novembro de 2009, às 23:00 e PMs, como num susto, chegaram para acabar com a festa e eu joguei amedrontado / modernista safado a bala ou doce no chão e os PMs não acharam mas depois meu amigo achou e nós tomamos e fomos para a praia com uma galera e o doce ou a bala não eram nada demais, eram bem fracos, na verdade, e voltei melancolicamente às 5:00 da manhã para casa improvisando com a vontade de morrer, porque eu tinha encontrado com um velho conhecido que ficou falando de sua dieta a noite inteira.
Eu nunca apanhei de garotos brancos, pretos, ricos, pobres, fortes, fracos, bonitos, feios, gordos, magros durante todos os anos que eu estudei.
Eu nunca senti que eu estava virando um menino.
Eu nunca beijei uma menina.
Eu nunca encontrei bêbado e por acaso com uma ex-namorada na Lapa no dia 17 de agosto de 1998 e comecei a beber mais ainda com ela que estava sentada com uma amiga que tinha estado num hospital psiquiátrico e falava coisas sobre Lacan, Artaud e loucura e eu estava muito bêbado para responder e dizia para a minha ex-namorada que eu queria que ela viesse para a casa comigo, mesmo eu tendo nessa época, uma outra namorada, eu dizia isso e ela dizia que não podia, que ela tinha que ficar com o irmão, porque o pai dela estava viajando e eu fazia uma chantagem emocional do tipo você nunca me amou, você nunca me amou e ela cedia rapidamente, porque ela dizia que me amava, que sempre me amaria, que aceitaria tudo e eu dizia você não tem vergonha, você não me acha um canalha, e ela dizia eu afirmo o amor e ia para minha casa e eu ficava beijando todas aquelas tatuagens de flor até dormir.
Eu nunca senti vontade de ser estuprada.
Eu nunca abaixei as calças de um primo no meio da rua, quando eu tinha uns 9 e ele um 15 e ele ficou constrangido.
Eu nunca estive, em Cabo Frio, em 2005, numa madrugada com amigo e um amigo que viria a se matar em menos de um mês me disse que nós éramos muito novos para falar sobre suicídio e nisso, nós falávamos sobre suicídio e eu disse uma coisa como: “todo mundo que se mata, se mata jovem, qual é o sentido de se matar velho, é deprimente, eu quase admiro alguém que se mata jovem, eu quase acho charmoso” e ele se matou menos de um mês depois e eu continuei vivo, até certo ponto, relativamente otimista.
Eu nunca joguei futebol sem camisa com os meninos e jogava bem todos os dias no play até um 12 anos, quando um dia, eu desci sem camisa e fiquei subitamente muita constrangida e quis chorar e achei que era errado que eu não deveria jogar futebol sem camisa porque isso não era coisa que menina deveria fazer e me escondi atrás da pilastra como se a diferença sexual se explicitasse para mim agora e peguei o elevador e voltei para casa vermelha de chorar e nunca mais fui jogar futebol sem camisa e, de certo modo, nunca mais fui jogar futebol.
Eu nunca estive em Paris com a namorada alemã e perguntando como se diz “eu te amo” em alemão e falando como se fosse Hitler e pensando: “a brancura do branco, a brancura do branco” e ela dizendo “diga isso de forma mais doce” e ela de fato dizia de forma mais doce e em alemão e nisso eu a amando perdidamente do Louvre até o Arco do Triunfo a amando perdidamente no frio e eu me sentindo otimista e alemães andavam atrás de nós e ela dizia: “tem muito alemães em Paris, parece que nós vamos invadir essa cidade de novo” e eu gargalhava disso, eu gargalhava de modo constrangedor e amoroso e nós sentávamos num banco no final da Champs Élysées e eu dizia “eu tenho frio” e ela pegava as minhas mãos e as colocava delicadamente dentro de sua camisa e eu acariciava seus seios na Champs Élysées como se nós fôssemos tomar essa cidade para nós, porque “the night belongs to lovers, because the night belongs to us”, em 27 de novembro de 2006.
Eu nunca senti minhas maiores vontades de destruir tudo antes dos 12 anos.
Eu nunca quis ser uma princesa.
No final, o personagem que vence, comemora. Os outros, quando perdem, choram.
Postado por Felipe Moreira às 21:06
Um comentário:
Você está com uma interação bastante peculiar em seu blog, hen? Esses diálogos, novelas, transformando personagens metafóriocos em expressões da real diversidade. Uma mistura boa de Rubem Fonseca com Luiz Ruffato.
Abraços!
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