sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Natureza do Preconceito

A Natureza do Preconceito (capítulo 3 do texto de Norberto Bobbio chamado O Elogio da Serenidade): biografia e comentários

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

1. Biografia


Filósofo, escritor e senador vitalício italiano nascido na cidade industrial de Turim, norte da Itália, considerado um dos filósofos mais importantes do século 20 e chamado pelo presidente italiano, Carlo Azeglio Ciampi, de mestre da liberdade. Filho de Luigi, um médico cirurgião, e de Rosa Cavilia, foi educado (1919-1927) no Ginnasio e depois no Liceo Massimo d'Azeglio, em Turim. Estudou Giurisprudenza na Università di Torino (1927-1931), formando-se em Filosofia e Direito. Estagiou em Marburg Alemanha (1933) e voltando a Turim, especializou-se (1932-1933) em filosofia defendendo a tese Husserl e a Fenomenologia e, no ano seguinte, obteve a livre docência em filosofia do direito. Chegou a ser detido, por sua oposição ao regime fascista (1935), acusado de integrar o grupo Giustizia e Libertà, período em que começou a escrever suas primeiras obras filoasóficas. Ensinou na Facoltà di Giurisprudenza na Università di Camerino (1937-1938) e, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) atuou no movimento de resistência antifascista e integrou o Partido de Ação, grupo de radicais de esquerda que mais tarde ajudaram a moldar a política pós-guerra. Neste período foi professor na Università di Siena (1939-1942) e, em seguida, ensinou na Università di Padova e casou-se com Valeria Cova (1943). Alternando períodos entre Turim e Pádua, voltou definitivamente para a sua terra natal (1948) para assumir a cadeira de Filosofia do Direito na universidade local, lá permanecendo por quase duas décadas e meia. Com uma larga produção bibliográfica mudou-se (1972) para a recém fundada Facoltà di Scienze Politiche di Torino, onde continuou sua intensa atividade intelectual. Iniciou em seu país (1975) um debate sobre socialismo, democracia, marxismo e comunismo, que influenciou as novas gerações de toda Europa. Foi nomeado senador vitalício (1984-2001) pelo então presidente (1978-1985) Sandro Pertini. Nos anos 90, quando foram abertos alguns arquivos da era fascista, foi encontrada uma carta dele ao líder fascista Benito Mussolini (1883-1945), na qual o filósofo elogiava o regime fascista, mas seus defensores afirmaram que a carta era a única forma de o intelectual salvar sua pele na época. Também nos anos 90 foi considerada a possibilidade de ser candidato à presidência italiana, um cargo de pouco poder político, mas de grande autoridade moral. Professor benemérito da Universidade de Turim, onde deu aulas de Filosofia do Direito, Ciências Políticas e Filosofia da Política durante várias décadas, escreveu para vários jornais e revistas, incluindo o Corriere della Sera, principal diário do país. Ao longo de sua carreira, escreveu centenas de livros, ensaios e artigos. Um de seus livros mais importantes foi Política e Cultura (1955) que vendeu mais de 300 mil cópias só na Itália e foi traduzido para 19 idiomas. Também foi sucesso internacional seu ensaio Destra e Sinistra (1994), uma de suas obras mais vendidas, e De Senectute e altri scritti autobiografici (1996). Recebeu o título doutor honoris causa diversas vezes, na Itália e em outros países. Viúvo (2003) depois de 60 anos de casamento, morreu no hospital Molinette, em Turim, onde esteve internado por mais de um mês com problemas respiratórios, aos 94 anos.

2. O Elogio da Tempestade: Nietzsche X Bobbio

Nesse capítulo selecionado, Bobbio escreveu contra Nietzsche. É muito importante saber “contra quem” o filósofo está escrevendo. Uma boa forma de ficar sabendo um texto é escrever contra ele, procurar os seus defeitos e falhas. Bobbio foi marcado pelo filofascismo de sua família de origem burguesa no Piemonte e reagiu contra ele na juventude. Entre os autores que ele estudou, há alguns que apoiaram o fascismo, como Carl Schmitt, que teorizou a necessidade da ditadura.
Bobbio é um racionalista herdeiro de uma tradição democrata iluminista. Ele considera Nietzsche a partir da leitura que se fez dele nos anos 20 e 30: Nietzsche é, segundo Lukács, um precursor da estética fascista. Assim Bobbio o vê: o anti-igualitarismo ditatorial do fascismo seria o oposto do igualitarismo legalista e constitucionalista da democracia liberal. Assim como Aristóteles em Ética a Nicômaco, Bobbio teorizou, nesse texto, sobre um assunto correlato da ética. Ser preconceituoso não caberia numa ética democrática. Bobbio não se preocupou com a etimologia da palavra. Ela estaria ligada a uma pré-compreensão: antes de ter contato com alguém ou alguma coisa, existiria o preconceito, a aversão, repulsa ou desejo de afastá-la. Montaigne, em seu texto sobre Os Canibais, está justamente associando os índios a povos da antiguidade como os citas, que também realizavam antropofagia. Ele relativiza, estuda, racionaliza as observações e reações dos europeus diante dos índios e procura relativizar o juízo que foi emitido a respeito deles: “são bárbaros”. O assunto de Bobbio será a reflexão sobre esse tipo de juízo.
Para Bobbio, preconceito e prevenção estariam ligados. Preconceito, define ele, é opinião falsa, mas potente socialmente, dificilmente corrigível. Ele é do Piemonte, região da Itália que mostrou bastante vontade de potência e unificou politicamente o país em 1870. O Piemonte, por causa dessa posição hegemônica, estabeleceu-se como região dominadora das demais. Produziram-se, por isso, juízos negativos dos piemonteses sobre os demais italianos e vice-versa, reforçados por essa situação histórica, econômica e cultural, com certeza.
Bobbio foi ligado ao Direito e por isso cita diferentes tipos de juízo: bem e mal, bom ou ruim, Deus e o Diabo, esquerda e direita. Ele tende muito a fazer esse tipo de separação. Ele não gosta da idéia de ir “para além do bem e do mal”, texto de Nietzsche que ele citou. A todo momento, o texto de Bobbio faz essas contraposições: Deus versus diabo, esquerda versus direita, bem e mal, Direito e violência, Rousseau e anti-Rousseau.
Bobbio quer chegar aos problemas regionais italianos e faz um percurso até esse assunto. Bobbio cita, a todo momento, trechos da constituição italiana. No entanto, o próprio Bobbio sabe que é preciso desconfiar desse corpus de leis que dependem do contexto social e político para funcionar; e seu funcionamento é poluído, sujo, muito diferente do ideal. Bobbio é um filósofo muito ligado a conceitos puros e ideais sem mácula, discursos, leis e proclamações de direitos que não impedem a violência, mas são uma garantia, uma baliza, algo que podemos acionar para nos defender.
Em dado momento, Bobbio citou um trecho curioso, onde deixou escrito que o dever da república é remover os obstáculos econômicos e sociais que farão a igualdade. Essa lei provavelmente abre para intervenções caritativas ou humanitárias, mas para realizá-la plenamente a república deveria abolir a si mesma e fazer nascer a república socialista, pois o verdadeiro obstáculo da igualdade é a república burguesa. Mesmo na república burguesa mais democrática, o destino da maioria da população é a escravidão assalariada.
O juízo negativo está no pólo oposto do juízo de fato, no texto de Bobbio. Para Bobbio, o problema do preconceito é que as duas classes opostas fazem do outro lado uma “caricatura” com características negativas. Burgueses e operários se igualariam no preconceito de classe.
A democracia liberal iguala os desiguais: Bobbio não fugiu a isso nesse texto. No capitalismo, tanto pobre quanto o rico estão proibidos de morar debaixo da ponte. A lei, no entanto, afetará somente um dos lados. Os proletários não possuem oportunidade de dispersar, na TV, seus preconceitos anti-burgueses, por exemplo. Devemos também dar um exemplo de preconceito anti-burguês por parte do presidente Lula, emitido quando ainda era líder sindical (recolhido no livro Lula Entrevistas e Discursos, editora Guarulhos). Ele foi a uma festa onde os convivas eram os apoiadores do nascente movimento sindical.
No mesmo ambiente estavam os estudantes radicalizados da pequena-burguesia e as operárias das fábricas em greve. Lula observou que as estudantes vestiam “andrajos” e “tinham até cabelo debaixo do braço”, enquanto as operárias tinham colocado seu melhor vestido, exibindo-se da melhor maneira possível. O líder sindical concluiu que, alguns estavam “querendo descer e outros querendo subir”. A partir desse episódio, Lula afirmou que “intelectual gosta de miséria, pobre gosta de luxo”. Nesse caso, as jovens estudantes queriam liberar-se de imposições em termos de costumes e não ostentar sua posição burguesa (o que humilharia as operárias e contraria sua posição política). No entanto, seu descompromisso com valores foi lido como desejo de descenso social, retrocesso, porque já preexistia um juízo negativo contra quem se vestia ou se comportava daquela forma. Bobbio preocupou-se com o preconceito de grupo, aquele que mais preocupou Bobbio; foram os preconceitos e de classe e nacionais aqueles que ele ressaltou.
O capitalismo reproduziu-se dentro dos países e introduziu a dominação de uma região por outra: na Itália quem domina é o Piemonte, ou o Norte, como um todo; na Alemanha reunificada, a Alemanha oriental permanece mais pobre, no Brasil, é a região Sudeste. Essa situação, produzida pelo próprio sistema sócio-econômico, produz um caldo de cultura onde fervilhou aquilo que socialmente se chamou preconceito.
Bobbio define discriminação com base no fenômeno do anti-semitismo fascista: é algo a mais que distinção e é pejorativa (sempre). Um exemplo de juízo de valor: os negros são uma raça inferior. Um juízo de fato é: os negros são diversos dos brancos. Um problema que Bobbio não aborda: os negros têm preconceito contra os brancos e vice-versa, mas da maneira como a sociedade está organizada, os grandes prejudicados sãos os negros. Quando ele citou o artigo terceiro da Constituição Italiana, vê-se que ele evitou escrupulosamente o termo “classe”: “sem distinção de classe, raça, língua, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais” (BOBBIO, p. 110). Essa Constituição tomou essa postura um tanto quanto retórica no sentido de algo que seus constituintes sabem impossível de se estabelecer no sistema de classes: a igualdade efetiva.
Do juízo de que os brancos são superiores, derivou aquele que os demais povos e etnias deveriam: 1) obedecer; 2) aceitar comando; 3) aceitar serem suprimidos e mortos. No entanto, da constatação de superioridade, para um cristão, por exemplo, decorreria a necessidade de ajudar.
Um juízo ulterior é o oposto de juízo discriminante. A discriminação ocorre quando um juízo de valor torna-se juízo de fato. Uma observação: quando os nazistas eliminaram os judeus, tal não era necessário para sua própria conservação; foi uma estratégia que culpava os judeus pelas derrotas nazistas; Hitler afirmava, desde Minha Luta (Mein Kampf) que os judeus e comunistas é que tinham causado a derrota alemã em 1914-18.
Bobbio enfocou a discriminação étnica (judeus e negros), mas também conhece a discriminação de classe social: “continua a produzir seus efeitos em numerosas situações, como, por exemplo, na aplicação da lei penal” (BOBBIO, 111). As seguir, ele trata das desigualdades naturais se opondo a desigualdades sociais: as naturais seriam mais difíceis de abolir do que as sociais. Parece uma obviedade, dito assim. No entanto, as diferenças entre um lobo e um cordeiro são só artificialmente – e não naturalmente – abolidas.
A natureza evolui, modifica-se, mas a desigualdade existe na natureza e, como o homem a modifica, mas é influenciado por ela, as desigualdades naturais repetem-se com naturalidade na sociedade humana. O homem, por sua vez, acha natural apoderar-se, dominar, subjugar, poluir e retalhar a natureza.
A desigualdade natural entre um país chuvoso e outro seco é praticamente impossível de se suprimir. As desigualdades sociais são suprimíveis, são construtos que podem ser destruídos. No entanto, lembremos também como são persistentes: no bloco soviético, as classes continuaram a existir (burocratas e cidadãos comuns).
Em primeiro lugar, seriam originadas em juízos religiosos maniqueístas (bem e mal, Deus e o Diabo), originalmente, as divisões em que Bobbio didaticamente divide o texto: Norte versus Sul, o Rousseau e o anti-Rousseau, Piemonte X resto da Itália. Os julgamentos de Bobbio só não estão valorados como os juízos religiosos costumam ser. Um pouco antes de tratar das minorias e de concluir, Bobbio fez considerações sobre a religião e língua universais, que seriam propostas recorrentes para a humanidade. O próprio Bobbio aventou uma proposta audaciosa e ideal a respeito das religiões: “poderiam desaparecer um dia as diferenças entre línguas e religiões, desde que se conseguisse estabelecer um acordo geral para unificar umas e outras” (BOBBIO, p. 114). Proposta audaciosa e praticamente inviável, pois reduzir a diversidade a um é dar a hegemonia a esse um, que tem uma origem, uma história e não é neutra; essa hegemonia, como por exemplo, a hegemonia da língua inglesa hoje em dia, profundamente ligada ao poder. A língua estabelece uma hegemonia negociável, mas as religiões não; esse acordo dependeria, portanto, de uma revelação sobrenatural encaminhada à humanidade, esperança metafísica que corresponde à atitude do líder esotérico Trigueirinho de fazer vigília aguardando contato com extraterrestres.
A “conclusão inconcludente” de Bobbio estabelece um preceito que ele preservou: “os preconceitos nascem na cabeça dos homens” (BOBBIO, p. 117). Seu combate está, portanto, na educação e no desenvolvimento das consciências. Não concordo totalmente: o preconceito nasceria da própria dinâmica social, enraizando-se, com auxílio dessa, na cabeça dos homens. A democracia, que Bobbio prescreve como panacéia contra o preconceito, não tem como bani-lo totalmente em sua forma capitalista hoje existente; a própria democracia, em seus primórdios, praticava preconceitos contra os estrangeiros, as mulheres e os escravos.

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