Olhar e Reconhecimento
Alexander Kiossev
Publicado em inglês e búlgaro na internet em 12/12/2006
Tradução: Lúcio Júnior
Artigo publicado na Revista Ciência e Humanismo número 22 (2006)
Eu vou começar com uma história que eu contei muitas vezes antes. Em 1993, eu ensinava língua e literatura búlgara na universidade de Gottingen. Um dia, fui convidado para uma festa por um amigo iugoslavo, estudante com Phd, que depois do cerco de Sarajevo decidiu que era bósnio e muçulmano e se tornou ativista contra a guerra. Antes da festa, resolvemos comer alguma coisa. Tivemos de fazer a difícil escolha entre restaurantes italianos, alemães, chineses e franceses, e, com um pouquinho de vergonha, escolhemos um restaurante grego para aproveitar as delícias da culinária nativa. Lá, assistimos ao noticiário climático de toda a Europa. Todos os países apareceram com suas fronteiras delineadas, mas por alguma razão a Bulgária e a Romênia apareceram unificadas, tendo Bucareste como capital. Comemos Moussaka e Souvlaki, não muito diferente do sushi kebab turco. No fim do jantar, pedimos para a atendente um café turco. No entanto, a moça, tipicamente otomana, amável e gordinha, não entendeu o gosto germânico por café filtrado, conhecido na Bulgária, Albânia, Bósnia e Turquia como café turco.
Mais tarde, já na festa, fui apresentado a uma menina alemã que, observando meu sotaque, imediatamente me perguntou:de onde você é? Da Bulgária, eu respondi, já preocupado com meu amigo bósnio, que nesse meio tempo já tinha se envolvido numa guerra verbal com um grupo de sérvios, eslovenos e albaneses. Eu observei o grupo brigão, com seus gestos enérgicos, vozes altas, o modo como mexiam as costas e senti uma estranha sensação de proximidade, intimidade. Agora entendi porque um estudante alemão me disse que eu tenho ;eine balkanesische Motorik;, ou seja, movimentos balcânicos.
Enquanto a festa prosseguia, alguns alemães pediram a uma garota turca para fazer uma dança do ventre a qual ela se recusou. Cinqüenta minutos depois, a garota alemã, tentando se certificar, me perguntou: você é romeno? Não, sou búlgaro, mas isso não tem importância, respondi. Ela ficou sem graça.
Por que essa confusão de nacionalidades é tão insultosa? Eu não sou de forma alguma um búlgaro patriota típico, nem eu penso que a nação romena é inferior à minha própria, então não tomo isso como ofensa. Aqui existe uma pré-analítica sensação moral de lesão experimentada por muitas nações balcânicas: a inabilidade do olho impessoal do Ocidente para distinguir entre eles, uma inabilidade que pode ser interpretada como ignorância, arrogância, preguiça e por aí vai. Essa experiência é certamente nem mesmo especificamente búlgara, nem especificamente balcânica, pois eu a vejo claramente quando acontece de ser eu aquele com o olhar de indiscernimento para um grupo de pessoas do Chade, Mauritânia, Sudão e Eritréia, dentre os quais eu era lamentavelmente incapaz de discernir entre a multidão de africanos.
Então, onde está a ofensa? O problema não é patriótico nem balcânico, é muito mais abstrato e geral. Para formulá-lo no dia a dia, numa fala não-teórica, sou insultado pela negligência de um olhar que não consegue observar ou simplesmente distinguir diferenças existentes. Eu tomo o elemento de indiscernível como ofensa, a qual por contraste significa que eu tenho direito de esperar ser reconhecido em algumas de minhas características – nesse caso, como búlgaro ou eritreu, mas em outros casos pessoas devem esperar ser reconhecidas como homens de uma certa idade, como crianças, como cidadãos iguais e por aí vai.
Essa lesão moral pode ser chamada atômica. A expectativa de direitos indiscerníveis (discernibilidade entre elementos, condição lógica de identidade), apesar de ser uma das premissas normativas da interação social (comparável com exclamações ofendidas tais como ele/ela fingiu que não me viu ou ele/ela me tomou por, é agora mais elementar e mais dificilmente dedutível das formas complexas de reconhecimento sistematicamente estudadas por Axel Honneth. Quando eu espero ser distinguido, reconhecido como definido e diferente dos outros, eu não espero o reconhecimento enquanto virtude particular, uma honra particular, alguma respeitabilidade, ou alguma qualidade obtida por esforços de socialização. Não espero ser amado ou necessariamente igual, ou reconhecido por minha contribuição em certo campo; em outras palavras, eu não espero reconhecimento algum nas três esferas descritas por Honneth inspirado em Hegel e Mead.
O reconhecimento que eu preciso é mínimo eu somente quero que os outros reconheçam através de seus olhares e ações que eu sou diferente o bastante para ser diferenciado. Se colocar de lado o amor à primeira vista, que é mais um milagre diário do que uma forma de reconhecimento, as complexas esferas do reconhecimento requerem um mínimo de acordo, um mínimo de recíproca interação e experiência social partilhada. Isso não pode ser o dito ato de reconhecimento que estamos discutindo aqui, que parece ser um ato espontâneo de percepção. As expectativas fantasiosas; do discernimento são uma parte de uma esfera que nós podemos chamar civilidade: nós agora esperamos que alguma pessoa reconheça os outros e que vá respeitar a separabilidade e o discernimento de outra forma ele pode ser rude e mal educado. Nós podemos também dizer que a falência em distinguir é uma primária estrutura formal de desconhecimento, um fato pré-científico que pertencem às elementares, atômicas formas de interação a mútua troca entre olhares e signos de reconhecimento. Sendo assim, deveria fazer parte da teoria da percepção social em sua relação com a filosofia social. Por causa do olhar que confunde e funde, o olhar que não distingue o Outro em sua diferença e especifidade, é indubitavelmente parte das patologias sociais e cria uma dolorosa experiência moral. Mas se dissemos que a troca de olhares é uma troca de signos de reconhecimento, esse também é o ponto no qual a teoria da percepção social pode desembocar numa mais abrangente e nova teoria normativa da comunicação. Não existe como o reconhecimento ser sempre relacionado como o gesto comunicativo elementar de cumprimentar, que é uma forma elementar de reconhecimento a recusa de cumprimentar alguém é um eterno insulto em todas as épocas e culturas.
Como se pode abarcar uma noção comunicativa de justiça incluindo uma teoria do olhar social”? Nós pensamos que isso pode principalmente ser um esforço no sentido do espírito de Honneth, que precisamente se esforça em alargar a noção de justiça (ele faz isso com um movimento duplamente conceitual primeiro, quando ele troca a justiça distributiva com a comunicativa, e, em segundo lugar, quando ele alarga a noção da ação comunicativa através da esfera da linguagem).
Seria o olhar uma esfera específica de reconhecimento como outras esferas; como ele é relatado como amor, lei, solidariedade (o reconhecimento das contribuições de trabalho). Como o olhar e a comunicação são relatados? O que é a relação entre justiça e o olhar social e categorizante?
A experiência moral imediata de situações do dia a dia nos dão muito material para pensar. Todo dia na rua encontramos estranhos e conhecidos, reagindo a esses com o momentâneo e habitual ato de reconhecimento; nossos olhares treinados imediatamente separam nossos conhecidos da silhueta dos desconhecidos (como, num nível ainda mais elementar, nós distinguimos humanos de silhuetas não-humanas, veículos, objetos em movimento, animais, etc). A lesão moral é possível até aqui: não reconhecendo ou falhando em cumprimentar um conhecido é um sinal de insulto; é por isso que a linguagem tem essas expressões tradicionais tais como você pode imaginar, ele nem me reconheceu!, ele fingiu que não me conhecia! ou condição de identificação: nós podemos nomear tanto as formas elementares de reconhecimento quanto as muito sofisticadas.Um bom exemplo é o momento em que a criança se reconhece a ele mesmo (ou a ela mesma) no espelho: como sabemos por Jacques Lacan, a fase do espelho é uma condição fundamental para a auto-identificação, quando a criança, através do olhar e da ajuda da mãe, reconhece a completa e finita imagem do espelho como ele mesmo; o qual o ajuda a experimentar seus limites e sua totalidade e regular seus até então descontrolados impulsos e coordenação corporais.
Muito diferente é o complexo reconhecimento biográfico onde alguém finalmente sonda quem é quem: não é acidente que a clássica forma da tragédia é baseada na anagnorisis o reconhecimento final quando o herói tragicamente aprende a verdade sobre si mesmo e os outros; para isso, é suficiente a auto-descoberta de Édipo e o reconhecimento dos irmãos, primos, pais e crianças: de Eurípides, Platão e Terêncio, passando por Shakespeare ao Homo Faber de Max Frisch. Entre as polaridades da elementar fase do espelho e a super-complexa anagnorisis do final, existem incontáveis situações do dia a dia de reconhecimento e não reconhecimento, ou encontrando o olhar do outro e vendo a si mesmo; através dos olhos de outra pessoa. Cada uma dessas formas pode ser deformada em suas premissas normativas pode ser levada a uma traumática experiência moral: a famosa e bíblica sentença eles não sabem o que fazem; é um signo generalizado de uma expectativa moral de que saber o que faz seria reconhecer você, conhecer por quem você é realmente, então sua percepção externa e sua auto-percepção irão coincidir ou pelo menos entrar em diálogo consigo mesmos. Se isso não acontecer, se saber o que faz não inclui conhecer você, -- isso será uma forma extrema de lesão moral e agressão. E isso traz uma verdade para as formas individuais e coletivas de identidade. Em sua busca de emancipação (baseada em certos modelos de nacionalismo do século XIX), as nações balcânicas querem se apresentar como o grande Outro (ou seja, a construção fantasmática chamada Europa ou o Ocidente) como suficientemente diferenciado e mutuamente emancipado, diferente dos indiscerníveis sujeitos políticos soberanos e eles esperam que o olho ocidental irá responder com reconhecimento de sua diferença e discernimento, que será cidadão o suficiente. Por outro lado, em muitas das manifestações da mídia e públicas, o Ocidente responde com uma inabilidade para distinguir e articulá-los, misturando-os estereotipicamente numa massa indiscernível, estigmatizando-os como balcânicos, os incompletos, internos e repulsivos Outros da Europa, como Maria Todorova disse. Além dessa especificidade balcânica, o problema é conhecido entre os estudiosos das políticas de representação como a comunicação entre as percepções colonizadoras e “auto-colonizadoras.
Depois do que foi dito acima, eu penso que nós devemos aceitar o ato de cognição e reconhecimento; as clareadoras categorias de percepção social; incorporam uma forma extremamente elementar de reconhecimento. Esse reconhecimento parecer ser precursor e premissa de outras bem mais complexas formas tais como amor, reconhecimento legal, e solidariedade, de forma que elas agregam e incorporam em suas práticas complexas os atos elementares de percepção categorial. Isso traz um número de questões que são capazes de expandir a noção de justiça para incluir as injustiças e as lesões morais causadas pelo olhar social errado? Como podemos incorporar uma teoria de percepção social e danos morais que possam fazer, em filosofia moral e os programas sócio-políticos tratando como formas e esferas de reconhecimento? Se a filosofia e reconhecimento é interpretada numa extensa e improvável teoria da ação comunicativa, que é quando a relação entre comunicação, reconhecimento e percepção?
Eu vou tentar sumarizar sem dar as respostas mas somente direções para possíveis respostas. Terminando, vou tomar a liberdade de comentar uma velha brincadeira racista. Uma senhora de meia-idade estava no metrô soviético próximo a um estudante de um dos países africanos simpáticos à URSS. Assim que ela o viu ela gritou:um macaco, um macaco negro! O estudante, acostumado ao racismo cotidiano, explicou calmamente em russo:cara senhora, não sou um macaco. Sou um estudante do Sudão, eu estudo filosofia na Universidade de Moscou... A mulher continuou gritando: Um macaco! Um macaco falante!
O ponto nessa brincadeira é que qualquer discussão ou negociação de uma questão moral está bloqueada: a luta por reconhecimento é cancelada no começo. Irreversivelmente reconhecido como macaco, o estudante africano tem seu acesso à comunicação negado e a reciprocidade – a mutualidade e a intersubjetividade da existência humana foi negada pelo racismo da brincadeira. Podemos descobrir esse tipo de lesão moral num dos tipos descritos por Axel Honneth – a lesão das necessidades de amor, reconhecimento legal e recusa da contribuição de alguém ao expressar solidariedade? A dignidade dos africanos pode ser protegida de certos tipos de lei ou códigos morais. Eu penso que o problema aqui é outro tipo de lesão, aquele que acontece quando o olhar não distingue e reconhece. O ato do reconhecimento é claramente um ato cultural (não existe percepção atômica que não seja parte de uma corrente de atos comunicativos). Eu vou brevemente discutir os estereótipos concomitantes. O que é importante aqui é que no momento dessa ocorrência isso parece natural, integral e espontâneo: a mulher é assustada pelo macaco como alguém ficaria assustado pela aparição de um animal no trem, assim como os personagens de Ionesco ficam assustados pela aparição de um rinoceronte nas ruas de sua cidade francesa. Em outras palavras, o olhar e seu papel parecem elementares, indivisíveis, imutáveis mesmo que o fato de que o macaco fale fluentemente russo, estude filosofia e quem sabe tenha lido até mesmo os manuscritos de Jena que deixou Hegel, nada pode reverter o gesto desse olhar. O problema é bem conhecido, ele é conhecido pela educação do olhar por certas políticas da representação. Nós sabemos que esse motivo é integrado no currículo dos multiculturalistas canadenses e norte-americanos numa extensão tão grande quanto ele o é no programa de Honneth, o qual, se interpretado corretamente, pode também incluir em seus motivos as injustiças depositadas na linguagem enquanto obstáculos para uma auto-realização pessoal.
De qualquer forma, as relações humanas linguisticamente dialógicas e objetivadas precipitam não somente as reações positivas dos Outros, mas somente daqueles que machucaram os sentimentos morais dos indivíduos, enchendo o espaço cultural como clichês estigmatizantes chamados falas detestáveis em inglês e Feinbilder em alemão. Nesse sentido, as inequivocamente públicas representações são uma esfera onde a luta por reconhecimento é possível e válida. Então, a expansão das noções de justiça de Honneth (que podem conectar a agenda filosófica alemã com a canadense e norte-americanas) pode ser realizada nessa direção: se a pragmática universal for reformada por Honneth para incluir a luta por reconhecimento no conceito de comunicação, então elas podem ser expandidas para incluir as “políticas de representação como forma independente de luta, diferente do amor, lei ou solidariedade.
Isso é indubitavelmente uma perspectiva razoável, mas isso deve ser levado em conta um importante detalhe. Eu quero dizer que o processo social de interiorização onde quer que os clichês de hostilidade, as falas detestáveis ou Feinbilder tornam-se o interior, intimamente ou quase naturais categorias de um olhar pessoal – como ele era no jogo que eu citei antes. Esse olhar é provavelmente o resultado de comunicação social e a longo termo, algumas vezes centenárias lutas por reconhecimento. Para o que o que olha, isso parece ser a mais natural e espontânea coisa no mundo; a lesão do Outro é interiorizado segundo a natureza, enquanto qualquer direta interferência pode ser experienciada de novo como “lesão” – como uma violação nessa segunda, inconscientemente natural racismo e pode encontrar justificada resistência, por exemplo, a mulher russa da piada poderia ser forçada através de meios legais a falar com o estudante africano em corretas, suficientemente educadas maneiras, mas isso não a iria fazer parar de lançar esse olhar dele como um macaco. Essa é uma forma de moderno racismo escondido atrás de regulações públicas e vão constituir uma dupla lesão a mulher vai sentir que ela teve negada sua liberdade de fala, enquanto o estudante africano vai sentir que sua civilidade é insincera. Em outras palavras, essas são formas de causar lesão que não vai levar elas mesmas diretamente ou rapidamente para um debate iluminador, argumentação, luta públicas, renegociações ou regulações legais. Elas são antes o resultado de alguma coisa que eles podem chamar, depois de Elias, processo de civilização, embora essa noção tenha significados coloniais. O estado pode duramente garantir as formas de acesso ao reconhecimento, porque ele é atualmente um problema de estereótipos etno-culturais, que são frequentemente realizados em espaços inter-culturais ou internacionais que não podem ser suficientemente regulados por leis internacionais. Os programas políticos contra esse tipo de injustiça são também praticamente impedidos: nós precisamos de um programa cultural de longa duração, mas ainda não sabemos seu assunto cultural e político.
De qualquer forma, procurando um novo enquadramento normativo geral, nós podemos dizer que um comunicativamente expandido conceito de justiça deveria incluir a análise dessas quase-comunicativas estruturas: a troca de olhares, os reconhecimentos momentâneos, o respeito ou desrespeito aos outros, integrado com os automatismos do olho e o segredo da face de outra pessoa. Eu não iria tão longe quanto Levinas e reclamar que a face do Outro talvez seja uma das transcendências do mundo visível que pode dar raízes vitais e existenciais para uma nova teoria sócio-crítica).
É importante ter em mente que o potencial anti-comunicativo dessas ostensivas formas pré-comunicativas de percepção. A brincadeira demonstrou como eles são capazes de bloquear cada argumentação ou negar qualquer acesso ao outro ou qualquer posição realmente comunicativa, uma que é recíproca e requer mútuo reconhecimento e seu bloqueio é uma atitude moral ela mesma.
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