A Vitalidade Póstuma de Machado de Assis
David Taylor
Trad. Lúcio Jr
No ano passado (2001) o filme brasileiro Memórias Póstumas, dirigido por André Klotzel, colecionou prêmios em festivais cinematográficos em todo lugar de Berlim a Kerala, no sudeste da
Índia. Esta fiel encarnação de um romance escrito em 1881 por Machado de Assis mostra o quanto está vivo o seu estilo um século depois de sua morte. Seus escritos deixam clara a venalidade humana, mas também se utilizam de sombrio humor e uma insinuante compaixão.
“Eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi um novo berço”, diz o narrador, Brás Cubas, adicionando que para ele, “a cova foi um novo berço”. Com esta abertura, ele varre fora as convenções da narrativa e qualquer ar de autoridade sobrenatural; ele está dizendo que simplesmente espera que este método nada usual adicione para seu conto um valor de entretenimento.
Em poucos capítulos, As Memórias Póstumas de Brás Cubas conta a vida do narrador como um endiabrado, saudável homem solteiro e seus casos. Na conversa casual de um homem morto, o conto se torna surpreendentemente divertido. Brás dedicou um certo capítulo como um pagamento para suas pernas. O texto abaixo tem um toque shakespeareano, com um lance perverso:
Pernas abençoadas! E ainda algumas pessoas as tratam com indiferença...Sim, leais pernas, vocês deixaram para minha cabeça a tarefa de pensar sobre Virgília, uma disse para outra: ‘ele tem um problema mental, é hora do jantar, então vamos levá-lo ao Pharoux. Vamos rachar sua inconsciência; nós vamos deixar a dama pegar uma parte dele, e nós pegaremos a outra, então ele irá direto lá, não vai esbarrar em pedestres ou carros, vai tirar chapéu para um conhecido e chegar são e salvo ao hotel. E vocês carregaram o projeto da carta, amadas pernas; em reconhecimento a esta gentileza agora as imortalizo.
Machado anda solto por aí. Susan Sontag se disse “retroativamente influenciada” por Machado depois que seu editor lhe deu uma cópia de Memórias (numa tradução intitulada Epitaph for a Small Winner). A voz de Kevin Spacey no ganhador de Oscars American Beauty (Beleza Americana) nos faz suspeitar da presença de Machado. Woody Allen disse que Machado é um “brilhante e moderno escritor” cujos livros “poderiam ter sido escritos este ano”.
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em junho de 1839 de um pai que era um pintor mulato e uma mãe às vezes descrita como espanhola, portuguesa e mestiça. Os avós de Machado eram negros libertos. Se Machado descrevesse sua vida como um de seus personagens, ele poderia resumi-la dizendo que ela foi amaldiçoada pela fraca saúde e a gagueira de sua juventude, seus pais morreram enquanto ele ainda era jovem, e uma vez adulto ele contraiu epilepsia. Mas isso não seria um quadro completo. De fato, Machado tem frustrado biógrafos que tentam encher os vazios entre seu começo promissor e sua vida posterior como pai da literatura brasileira.
O Rio de Janeiro seria o mundo de Machado através de toda sua vida. Depois que seus pais morreram, o menino teve a sorte de ser criado por uma boa mãe, tendo tido acesso a uma boa saúde e sido bem educado, mas provavelmente não terminou a oitava série. Na idade de 16 anos estava escrevendo poemas para publicação e na idade de 17 anos ele passou a trabalhar como pintor aprendiz. Aos 18 anos ele tinha escrito um libreto de ópera.
Muito rapidamente, começou a escrever histórias, artigos e peças, e em 1872 ele publicou seu primeiro romance, Ressurreição, no estilo romântico então popular. Mesmo sendo de natureza dada às enfermidades, Machado tinha uma energia contagiosa. Sua biógrafa Helen Caldwell escreve que nos seus primeiros quinze anos como escritor, Machado escreveu 6.000 linhas de poesia, 19 peças e libretos de ópera, 24 contos, 182 artigos e 17 traduções. Ele se encontrava com outros escritores em salões literários e colaborava com poetas e músicos em apresentações.
Uma pequena olhada nas suas aparições em público num período de seis meses revela sua energia e envolvimento. Em 15 de setembro de 1865, Machado recitou seus poemas na fundação da sociedade Arcádia Fluminense, e de novo na abertura da sociedade um mês depois. Ele escreveu a letra para o novo hino da sociedade e seu terceiro encontro em dezembro, leu sua tradução do poema de Longfellow The Old Clock and The Stairs , e apresentou sua nova comédia. Em fevereiro, ele publicou o poema Os Polacos Exilados, para obter dinheiro para os poloneses no exílio.
Em 1868 ele encontrou Carolina de Novaes, a irmã de um amigo literato, quando ela voltou de Portugal para tomar conta de seu irmão Faustino depois de um colapso nervoso. Por volta de março de 1869, Machado e Carolina estavam trocando cartas de amor, freqüentemente duas por dia. No mês seguinte se casaram. No fim das contas, seu casamento foi devotado e feliz por 35 anos. (Quando ela morreu, em 1904, Machado homenageou-a num comovente, elegíaco soneto). Quando ele estava doente, Carolina lia cartas e papéis para ele, e o ajudava como secretária.
Machado ocupou uma série de postos no governo, incluindo um no departamento de agricultura. Ele continuava a escrever constantemente, mas suas primeiras ficções não se sustentam ou não se elevam adiante das outras ficções do tempo.
Em 1879, Machado sofreu um sério baque em sua frágil saúde. A doença, às vezes descrita como epilepsia, forçou-o a ficar meses se recuperando num retiro. Durante esse período, ele parece ter repensado a si mesmo e seus escritos. O resultado é que ele passou a deixar para trás as convenções literárias que lhe pareciam falsas. Por agora ele tinha lido e absorvido trabalhos literários como Tristam Shandy, de Lawrence Sterne. Quando ele ficava cansado, ditava capítulos para Carolina.
Machado revelou uma nova voz dialógica – uma espécie de realismo psicológico. Memórias Póstumas apareceu na cena literária como uma combinação de humor e de sarcasmo. Brás, o primeiro nome do narrador, sugere Brasil, e o último nome (cuba em português quer dizer barril) relembra os barris que o ancestral trabalhador fazia antes de se tornar um rico plantador. A combinação evoca um espírito de confidência e comércio. Cubas confessa pretender inventar um emplasto anti-melancolia. A idéia o fascinou pela promessa de altos benefícios públicos, e a fama internacional que isso lhe daria. Isso se tornou uma obsessão:
Minha idéia estava realmente fixa, fixa como...Não posso pensar em algo tão fixo neste mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a Dieta alemã. Deixo o leitor fazer quaisquer analogias que o agradem, deixá-lo fazer e ficar contente; não há necessidade para ele de torcer o beiço para mim só porque ainda não chegamos na parte narrativa destas memórias. Não devemos chegar até ela. O leitor, como seus amigos, dubiamente prefere ação do que reflexão, e está com a razão. Então vamos a ela.
Depois disso, o narrador implora ainda mais espaço para considerar o emplasto e os modestos, mundanos esforços que “não infreqüentemente sobrevivem” mais distante do que os gestos inteligentes do público. Ele oferece o exemplo das “pessoas comuns, que costumavam procurar a proteção na sombra do castelo feudal”; o castelo caiu, mas as pessoas comuns cresceram em força, ele disse. Como o censor talvez repreenda, ele diz, “talvez eu deva atirar fora esta analogia” . Mesmo aqui, colocando em frente o idealismo democrático, Machado pisca para o leitor e para o imperador (o império acabou pouco antes de Memórias ser publicado).
O Rio de Machado de Assis
Machado respondeu aos contrastes da barulhenta cidade ao redor dele. O Rio continha uma elite que modelava a si mesma na cultura européia, com salões e concertos, assim como era um entreposto comercial onde a pobreza contrastava com a prosperidade. A cidade quadruplicou em população durante seu tempo de vida, e a vizinhança crescia entre cortiços e bairros caros, com subúrbios de classe média emergindo entre extremos. O Rio instalou o telefone em 1877 e o bonde elétrico quinze anos depois, mas suas muitas vizinhanças careciam de saneamento básico, e surtos de cólera, varíola e peste estouraram através de sua vida, especialmente nos meses de verão. A escravidão não foi abolida até 1888.
Tudo isso encontrou seu lugar na não-romantizada ficção de Machado. Como seu contemporâneo Checkov, Machado olhou de fora a vida literária carioca, e tinha um olho clínico para a sociedade brasileira e a maneira como as pessoas respondiam às suas tendências financeiras e sociais. Ele estava fascinado com a maneira como a beleza e a fúria coexistiam face a face. Na sua última novela Dom Casmurro, um ansioso amante é parado na rua Matacavallos para prantear um conhecido que morrera de lepra. Em Memórias, Brás Cubas ficou chocado em encontrar sua ex-amante, a linda Marcela, atacada de varíola numa loja na rua dos Ourives, onde ele entrou por acaso. O momento é pertinente para falar da tristeza da amante perdida, e também o último brilho de sua vaidade e resignação com a vida.
Sua pose como uma rara mulher empreendedora (“um homem a amara e que morrera em seus braços lhe deixara esta loja; mas, para finalizar seus azares, não teve como manter a loja, porque os clientes acharam estranho ver uma mulher empresária”). O frio reencontro dele com ela; uma calorosa saudação que ela ganhou de uma criança.
Machado faz seguir esta cena naturalista com um capítulo metafísico chamado “aquilo que Aristóteles não viu”. O capítulo sugere invisíveis conexões entre os residentes no Rio e as teorias sobre a física, como a energia se deslocando de um corpo para outro. Por exemplo, Brás carregou seus pensamentos tristes sobre Marcela para seu encontro com Virgília, uma jovem amante. A desatenção de Brás faz Virgília ficar confusa. Eis o trecho:
Começa uma bola a rolar; ela rola e entra em contato com outra bola, transmite seu movimento para outra, e a segunda bola passa a rolar. Vamos chamar a primeira bola de Marcela; a segunda, Brás Cubas. E a terceira, Virgília. Vamos assumir que Marcela, tendo recebido algo do passado, rolou até entrar em contato com Brás Cubas, o qual acertou em Virgília, e fica sem saber da primeira bola; e depois, pela simples transmissão de uma força, opostos extremos de uma sociedade entram em relação com outro, estabelecendo algo que poderíamos chamar de União da Miséria Humana.
Nós não podemos supor que Machado concorda com as idéias de Brás, é claro. Claro que Brás é de certa maneira uma estrela. Mas cartas mostram que, diferente de Brás Cubas, acreditava no trabalho duro. Como Brás, Machado não teve crianças, mas nada indica que estava feliz com isso. E enquanto Brás chamou a si mesmo de pessimista, Machado explicou a um amigo que o pessimismo é mais complexo, e “não quer dizer impenetrável desespero e tristeza, e Schopenhauer era um velhinho alegre”.
O Maravilhoso Mundo de Machado
Eu pela primeira vez encontrei uma história de Machado de Assis num lugar que ele poderia ter inventado: uma pequena loja chamada Livros Tântricos numa alameda de Katmandu, onde uma antologia de contos latino-americanos continha “A Missa do Galo”. Eu fiquei assombrado pelas impressões de juventude do narrador, ao mesmo tempo inocente e sensual, e o jeito como o texto fala do desejo de uma mulher idosa pelo narrador, desejo do qual ele só ficou consciente muito tempo depois.
Os romances de Machado são “performances” inteligentes. Ele amava a ópera. Ele ia a performances freqüentemente, e escreveu libretos para muitas (em Dom Casmurro, um tenor italiano aposentado explora em detalhes a sua teoria de que a vida é uma grande ópera). Ele também lia sua poesia em eventos públicos. O narrador de Memórias Póstumas convida teatralmente gozando o leitor, e colocando perguntas. Brás subverte as convenções da ficção e tenta transformá-la em arte performática. Numa outra cena a dois terços do romance, ele diz: “O grande defeito deste livro é você, leitor. Você quer viver rápido, e o livro vai lentamente, você quer uma narrativa segura, com estilo suave, mas este livro e meu estilo são como uma dupla de bêbados: giram, balançam, vão ao céu e caem...”
Com Gary Amdahl escreveu em 1997 para a revista The Nation: “Se você é o tipo de leitor que fica ofendido quando chamado de defeito, este livro não é para você.” Por outro lado, ele acrescenta: “se você atualmente quer achar um pequeno livro bem importante, você vai encontrar em Memórias Póstumas um grande romance”.
Em energia e inovação, Machado partilha certas qualidades com Tom Zé, compositor que lidera as listas internacionais de músicos brasileiros de sucesso. Zé, nascido na Bahia e há muito tempo residente em São Paulo, foi um amalucado co-fundador do movimento tropicalista nos anos 60. No seu fantástico jogo de palavras, em sua liberdade com as convenções, os dois artistas podem ser objeto de uma excitante comparação. Alguns meses atrás, Zé estava profundamente comovido por um conto chamado “Conto de Escola” (A School Tale), uma história de iniciação.
“É melhor você o ler”, disse Zé num e-mail, “porque o leitor que conta o que uma história é, não é bom leitor”. Zé nem sempre apreciou o trabalho do pai da literatura brasileira. “Eu admito que quando eu era mais jovem eu preferia Euclides da Cunha [ contemporâneo de Machado] – aquela densa e maravilhosa escrita, aquela força e compreensão implícitas” do homem do nordeste brasileiro. Mas recentemente Zé se aproximou da “profunda e clara escrita de Machado de Assis, translúcida como água num copo de cristal, às vezes bem-humorada, e transparente mesmo quando ela olha para o diabo”.
Depois de Memórias, Machado continuou a escrever romances e sua reputação cresceu. Em 1897 ele se tornou o presidente fundador da Academia Brasileira de Letras, um grupo cujos membros continuam chamados de “imortais” por seus compatriotas. Muitos anos antes de sua morte os amigos de Machado o presentearam com um galho de uma árvore que cresceu no túmulo do poeta Tasso em Roma, uma homenagem para uma das maiores celebridades brasileiras e um poeta. Quando Machado morreu em 1908, milhares o choraram. “Até o último momento”, um amigo observou, “ele manteve a clareza de espírito e mente que era sua qualidade preponderante e da qual seu estilo era uma imagem”.
Cem anos depois, há sinais de que Machado ainda tem uma promissora carreira daqui para frente. Além do filme Memórias Póstumas, Susan Sontag o saudou com um capítulo num recente livro de ensaios. Um recente número da revista Latin American Literature and Arts contêm uma novela ainda não traduzida, intitulada “O Imortal”. Será que cedo vamos ter uma versão cinematográfica de outra obra de mestre de Machado – Dom Casmurro, a qual Helen Caldwell chamou “provavelmente o melhor romance americano de todo continente”.
O tema de Dom Casmurro está em seu título, que pode ser traduzido de maneira literal e estranhamente como “Lord Cranky”. O saudável velho narrador escreveu uma exata duplicata de sua casa, atenta para contar a história de seu primeiro amor e como seu amor o traiu, mas o real sujeito do livro é a estranha conjunção dos contrastes que nós encontramos na vida. A beleza coexiste com a feiúra, o justo com o injusto, o rico com o pobre, sentimentos de amor com traição. “A natureza é tão divina que ela se diverte com contrastes”, observa o narrador, “e talvez a flor tenha beleza. Meu jardineiro diz que as violetas, para poderem ter uma fragrância superior, necessitam de um exaustivo cuidado”.
Por trás deste tema, Machado colocou uma mensagem mais profunda: observando nossas vidas, podemos escolher entre ver tanto a beleza quanto a feiúra, não só uma ou outra. Na conclusão amarga e ciumenta do romance, o autor dá a idéia de que poderia ter havido um final feliz, se o narrador o tivesse escolhido. No começo do livro, Lord Cranky ele mesmo fala aos leitores dessa visão, e mesmo sugere como devemos ajudá-lo a terminar o livro depois do fato:
Não, não, minha memória não é boa...Como eu invejo aqueles que não esquecem a cor de suas primeiras calças! Eu não estou certo da cor daquelas que coloquei ontem. Eu só posso jurar que não eram amarelas, porque eu detesto essa cor...Não há como resolver um livro confuso, mas qualquer coisa pode se imaginar em livros com omissões. De minha parte, quando eu leio uma do velho tipo eu não me aborreço nada. O que eu faço, chegando ao fim, é fechar meus olhos e evocar todas as coisas que eu não acho nele. Como muitas boas idéias chegam a mim quando faço isso! Que profundas reflexões! Os rios, montanhas, igrejas, o que eu não acho na página escrita, tudo aparece para mim com suas águas, suas árvores, seus altares; e tudo aquilo se vai subitamente da alma. O fato é que, tudo aquilo que pode ser encontrado fora de um livro tem lacunas, gentil leitor. É o meu jeito de preencher as lacunas dos outros homens; da mesma maneira que você vai caber nas minhas.
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