sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Entredentes antropofágicos: um museu de grandes novidades

 Entredentes antropofágicos: um museu de grandes novidades


“Lembre-se da palavra de ordem de Mao ‘de derrota a derrota, até a vitória final’, que ecoa a divisa já citada de Beckett: “Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor” Slajov Zizek, Em Defesa das Causas Perdidas

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior (Mestre em Estudos Literários/UFMG).



Introdução



A peça Entredentes (dirigida por Gerald Thomas e estrelada por Ney Latorraca, Edi Botelho e Maria de Lima) representa a volta do ator Ney Latorraca aos palcos após um período em coma.

Desde os anos 2000, Gerald Thomas passou a produzir a própria dramaturgia, deixando de lado a direção de peças de outros autores.

Os nomes dos personagens são Ney, Edi e Maria. Ao contrário da peça anterior, Throats (Gárgulas) em que o objetivo era o diálogo com o público internacional e até mesmo tinha legendas, essa tem um ator de grande visibilidade na Rede Globo, Ney Latorraca, ator que, aliás, é um grande ator cômico.

A peça apresenta Ney chegando de astronauta junto com Edi, depois desloca-se para um Muro das Lamentações que, por fim, passa a ser o Muro de Berlim. Nesse ínterim, muitas obsessões são revisitadas, embora o cenário modifique-se: Esperando Godot, de Beckett, é uma influência muito presente. A singularidade dessa peça em relação à produção anterior é que essa peça não baseia-se tanto em imagens, ela busca ancorar-se firmemente no texto, um texto que precisaria ser comunicativo para o público brasileiro, mas que está totalmente voltado para o que ocorre no estrangeiro. Tanto que o diretor e o ator abandonaram as extravagâncias da peça anterior, em que o diálogo, em inglês, era transmitido em legendas no palco. O elenco era de atores de várias nacionalidades, mas em sua maioria, composto de ingleses. Da London Dry Opera, nessa peça Entredentes, ficou apenas a atriz portuguesa Maria de Lima, que é um verdadeiro “animal de palco”, como se diz em Portugal. Ela rouba a cena até do veterano Ney Latorraca.

O cenário é uma enorme vagina que, da forma como é apresentada, remete a um “buraco negro”, quem sabe passagem para outra dimensão, a partir do qual os “cosmonautas do espaço interior” surgem para a plateia. Pode-se também especular que trata-se da viagem do astronauta Marcos César Pontes durante o governo Lula, que resumiu bem o espírito do tempo: o Brasil decolando falsamente para o espaço sideral, como na imagem que utilizou o Cristo Redentor como um foguete e que foi reproduzida na capa de revistas internacionais. No entanto, logo essa imagem foi substituída por uma imagem de um Cristo-foguete rodando desgovernado e voltado para a terra ao invés de fazer sua trajetória para cima. Igualmente, o programa que colocou Marcos Pontes em órbita foi criticado por representar simplesmente a compra de um ingresso em um programa espacial estrangeiro e não o desenvolvimento de um programa espacial capaz de colocar um satélite em órbita, façanha que recentemente um país com bem menos recursos, tal como a Coreia do Norte, conseguiu realizar. Enquanto isso, o Brasil depende de aluguel de satélites, pagando um valor muito alto por isso.

Pode-se dizer que Entredentes, embora não seja o melhor da produção do encenador Gerald Thomas, é uma peça apresenta alguns impasses da dramaturgia do diretor e que serão analisados aqui.



1. Grunhindo do berço até a tumba: texto e imagem sob o signo da vagina dentada



O contraste entre texto e imagem dentro da dramaturgia de Entredentes é o grande impasse que o espetáculo tem que enfrentar. Primeiro, como para o texto escrito para Fernanda Montenegro e Marco Nanini (Um Circo de Rins e Fígados), Entredentes dialoga com o que o ator Ney Latorraca está vivendo, sua experiência de coma recente, com certeza aproveitando elementos caros ao ator Ney Latorraca: a religião espírita, o judaísmo (o próprio teatro está no bairro judeu do Bom Retiro), as músicas de sua época: o personagem do astronauta/judeu ortodoxo canta a canção saudosista Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa, celebrizada por Sílvio Caldas. Maria de Lima, que também faz o papel de si mesma, canta Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, canção que recentemente produziu um estranho intertexto: enquanto o prefeito Haddad e o governador Alckmin cantavam essa canção sobre o transporte em viagem a Paris, uma enorme manifestação contra o aumento de ônibus estremecia São Paulo e estendia-se ao restante do Brasil, configurando as já históricas Jornadas de Junho, depois das quais o país não mais foi o mesmo, entrando de fato em outra fase. Ficou evidente a falácia de que o país estava numa conciliação capital/trabalho e iria para o “primeiro mundo”. Isso é parte do espírito do tempo, mas o texto de Thomas é como um deus Janus, o deus bicéfalo que mira tanto o presente quanto o passado.

No entanto, o pescoço está mais voltado, nostalgicamente, para o passado: quando se fala nas novas tecnologias, há sempre resistência em relação a elas, há saudade do passado, mas sem encontrar nessa saudade uma força crítica. Quando o médium Latorraca fala em download, ou seja, baixar coisas na internet, associa-se esse “baixar” ao ato de “baixar” os espíritos, ou seja, fazer com que baixem novamente à terra em um “cavalo”, ou seja, um pai de santo ou médium que faz as vezes de intermediário. A luz, nessa passagem da peça, dá a idéia de que o que está ocorrendo é o “baixar” dos espíritos. Defende-se o espiritismo enquanto metafísica moderna, dizendo que ele não é mais coisa de figuras estranhas, com peruca, morando no interior (supõe-se, então, uma referência à figura do médium uberabense Chico Xavier).

Assim, os personagens Edi e Ney parecem estar num prólogo interminável ao modo dos diálogos dos dois vagabundos em Esperando Godot. Já ao final da peça, o personagem de Ney fala sobre isso, nesses termos, num lance de metateatro. Também surge uma referência à peça Circo de Rins e Fígados, comentando justamente o fato de que ela já aconteceu há quinze anos atrás. Esse comentário se dá com bastante perplexidade e dá o tom geral nessa peça: nela, embora o cenário mude de um lugar ermo onde chegam astronautas, para um muro das lamentações, muro entre Israel e Palestina e cena que apresenta um muçulmano e um judeu diante da parede que simboliza o Muro das Lamentações, em Jerusalém, anexo a uma fachada de favela, é um visível o desconforto com o passar do tempo, desconforto que se transfere à plateia (RIOS, 2014).

É a entrada de Maria Lima que explode com esse clima, introduzindo a temática sexual, a música brasileira, etc. Ela introduz, entre as questões nacionais, também um dilema fáustico: fazer ou ceder um espaço para um comercial, para o artista, seria como fazer um michê, ou seja, prostituir-se.

O tempo parece ser o principal problema de toda a parte inicial da peça. Num tempo que parece não passar enquanto Godot não chega, Ney Latorraca preenche o vazio com algumas piadas do texto do diretor, piadas muitas vezes sem graça às quais Ney Latorraca consegue conferir graça. Dificilmente, se tivéssemos outro ator, seria possível sustentar essa parte da peça. Se ela se sustenta, é devido ao talento cômico e imenso carisma de Latorraca.

Assim, embora o caminho de Ney Latorraca seja de celebrar a vida e ver a leveza das coisas com humor, ele pontua com esse tom apenas a primeira parte de Entredentes. A segunda parte, marcada pela aparição quase ciclópica de Maria (Maria de Lima) deixa sua atuação, ainda que graciosa e marcante, à parte. É porque Maria, com a voz do antigo colonizador português, apresenta queixas a respeito do Brasil, um ponto extremamente sensível nessa peça, em cujo núcleo está a seguinte questão: Gerald Thomas, embora tenha carreira internacional, tem nome e destaque principalmente no Brasil e nem tanto no exterior, mas não entende e nem tem uma teoria sobre o Brasil, atendo-se a atacar a conciliação de classes e o oportunismo promovido por Dilma e Lula, observando a realidade nacional apenas superficialmente: “corrupção, sujeira, favelas, etc”.

Um pouco à maneira de Paulo Francis e Olavo de Carvalho, Thomas vive no exterior, sempre exprimindo posições críticas em relação ao Brasil e protagonizando episódios polêmicos, como o recente ataque à modelo e repórter Nicole Bahls, gesto desrespeitoso que provocou protestos de feministas.

Se de início estava profundamente rompido com Lula, governo em que polemizou estrepitosamente com o ministro Gilberto Gil, Gerald Thomas adotou uma posição mais conciliadora em relação a Dilma. Ela é citada de forma muito vaga e dúbia em Entredentes. A crítica é feita “entredentes” mesmo, ou seja, nas entrelinhas. Diz-se algo como “é todo mundo com Dilma...né?” (THOMAS, 2014). Maria de Lima afirma sobre a peça, na página da London Dry Opera no facebook:



É quase como se as personagens não existissem. Todos nós representamos fragmentos do Gerald [Thomas] e fragmentos de nós próprios, inseridos numa atualidade. Há referências ao que se passa no mundo, ao que contribuiu para os acontecimentos que vivemos neste momento, com um aglomerado de fatores históricos e políticos (THOMAS, 2014).



Essa aparição de Maria de Lima causa uma brecha, a partir da qual a peça passa a abordar claramente problemas políticos, mencionando também a Ucrânia e Stálin. É forte a presença da problemática da tortura dos militantes de esquerda durante a ditadura militar, um assunto muito recorrente na obra dramatúrgica de Thomas, já tendo sido tratado em Circo de Rins e Fígados e que atualmente voltou à voga devido ao passado guerrilheiro de Dilma e a criação da Comissão da Verdade.

Em Entredentes, o convívio com o Brasil traz intranquilidade. Já ao final, Ney comenta que, ao ir ao psicanalista, ele fala sobre Cuba, guerrilha, ou seja, de forma alguma o convívio com a realidade do terceiro mundo é tranquilizadora. Ainda mais que ela é vista de um ponto de vista que se pode dizer que é “de dentro da boca do leão”, ou seja, do ponto de vista de artistas (Ney e Thomas) articulados numa indústria cultural que muito deve ao capital estrangeiro (Rede Globo, monopólios de imprensa), o que limita o raio de sua crítica e obriga-os a “arranhar a superfície”. A postura prática sobre o país é extremamente ambígua: embora o diretor critique Zé Celso Martinez Correa por “depender do crack do estado”, o próprio Gerald Thomas supostamente entrou com um pedido de patrocínio do MINC para o seu livro “Arranhando a Superfície”, no valor de trezentos mil reais.

A temática da Ucrânia tem levantado novamente a discussão sobre Stálin e, em geral, os assuntos russos, uma vez que, na prática, o Ocidente (USA e União Europeia) apoiam um governo que tem, entre seus componentes, forças neonazistas que têm se mostrado muito ativas, inclusive atacando judeus e pessoas de etnia russa. Entredentes não consegue articular um discurso a respeito, apenas pontua a questão de Stálin: “O que Stálin pensaria disso? E Hitler...Stálin tinha uma mulher georgiana...E tinha bigodes...” (THOMAS, 2014). A atenção dada à figura de Stálin, à qual tem estado em evidência depois dos acontecimentos na Ucrânia, quando estátuas de Lênin foram derrubadas e neonazistas tomaram o poder, tendo sido combatidos por comunistas que usavam bandeiras de Stálin e proclamaram a República Popular de Donetsk. Igualmente, um professor de New Jersey, Grover Furr, publicou recentemente Kruschev Mentiu, livro em que verificou que o famoso relatório de Kruschev sobre os abusos de Stálin é carente de fundamento histórico. No entanto, Stálin, em Entredentes, é esvaziado de seu conteúdo histórico; é apenas um símbolo que é mencionado, em meio a um delírio alucinado. É apenas mais uma referência aleatória, se bem que essa sim, significativa. Ao citar Stálin, Thomas acertou, se sua intenção era falar do espírito do tempo.

A questão do futebol também é enfocada numa provocação na primeira parte da cena, dita por Ney Latorraca em diálogo com Edi, quando se fala na “torcida gay fundamentalista do Flamengo”. A linguagem a que o diretor recorre é transgressora, violenta, agressiva, escatológica por vezes, mas, no fundo, como quando fala das novas mídias sociais e tecnologias, ela mostra-se conservadora. A nostalgia surge em canções como Chão de Estrelas. Ao mesmo tempo em que mistura valores e transgride hierarquias, sonha em voltar atrás, a um tempo em que havia hierarquias e valores eram para ser respeitados; isso é o mesmo que lamentar que no Brasil não houve derramamento de sangue ou revolução, mas negar os black blocks por serem demasiado violentos ou “vândalos”.



2. Alguns fios soltos entredentes: a vida é devoração



Em Entredentes, é grande a tensão entre os diversos gêneros teatrais que a peça conjura (musical, drama político, comédia), que fragmentam e não permitem que o espectador consiga discernir uma narrativa. Outro elemento problemático é que, embora o cenário, a iluminação e os nomes dos personagens variem bastante numa mesma peça, alguns estilemas, temáticas e influências são extremamente persistentes e repetitivos no teatro de Gerald Thomas. A extrema fragmentação e variação busca esconder a insistente obsessão com Esperando Godot. Didi, Estragon e Pozzo tornam-se, então, Maria, Edi (“Didi”), Ney. Edi e Ney conversam entre roupas de astronauta num lugar que ninguém sabe onde é, esperando algo que não chega, dizendo piadas numa espera interminável. Tal prólogo sem fim incitou a crítica de Nelson de Sá na Folha, respondida com antipatia pelo próprio diretor em seu blog:



Os dois jogam conversa fora por uma hora e meia _sobre a saúde de Latorraca, o Oriente Médio, qualquer coisa. Ao longo da peça, até o final, Didi cobra repetidamente que ela não sai do prólogo. Embora seja o que permite desenvolver sua comédia sobre o nada, como se dizia da série, aos poucos o espectador passa a se perguntar também: Quando vai começar? Quando é que vai parar de arranhar a superfície? Não é só questão de duração, embora “Entredentes” se estenda muito além dos curtas e até dos longas de “O Gordo e o Magro” _ou da meia hora das séries cômicas de televisão. É que Thomas, como autor, não parece mais ter as certezas que já demonstrou um dia. De todo modo, perto do que se viu em produções recentes em São Paulo, é um renascimento, em parte inspirado pelos talentos cômicos de Latorraca, Botelho e da atriz portuguesa Maria de Lima _cuja personagem, Maria, para insistir no paralelo com “Seinfeld”, parece uma mistura de Elaine e Kramer, ou ainda de Pozzo e Lucky, de “Godot”. Maria faz, expressamente, a voz do autor-diretor no palco, uma intervenção enriquecedora na rotina da dupla cômica. Mas seus discursos afetadamente geopolíticos, apesar do humor na interpretação, vão da ligeireza à obviedade, com efeito frustrante (SÁ, 2014).



Para Gerald Thomas, em resposta a essa crítica de Nelson de Sá publicada em seu blog, “a expressão desse nada é justamente é a essência buscada por um autor vivo sobre tempos tão efêmeros quanto os de hoje”. (THOMAS, 2014).

Outros problemas, além dos apontados por Nelson de Sá, são os seguintes: os personagens da dramaturgia de Thomas são rasos, em geral sem nome. Ele não chega a fazer tipos, para evitar estereótipos muito óbvios, mas mesmo assim são traços muito vagos que definem seus personagens, definidos em geral por suas falas e ações, quase sempre amalucadas. Pode-se dizer que Thomas é bom diretor, no sentido em que bom diretor é aquele que sabe que, se tal personagem ficar com a mão erguida, será melhor, mais belo. Como dramaturgo, no entanto, ele não cria personagens típicos, ou seja, personagens que sintetizem elementos de pessoas reais, iluminando-os e, assim, podendo ser reconhecidos. Um exemplo é um banqueiro honesto, altruísta e gastador. Ele pode ser um personagem interessante, mas não pode jamais ser um personagem típico. Os personagens de Thomas parecem ser apenas veículos das obsessões do diretor. Parecem com jogadores de futebol: são sempre os mesmos, apenas mudam de time (os times seriam as peças).

Em geral, os personagens de Thomas não são normais: a voz do ator é esganiçada, diz palavras sem sentido, o diálogo não se completa ou é desnecessário ou absurdo para aquela cena. A peça, enfim, é sempre um diálogo às escuras com as obsessões e neuroses do diretor: seu recalque de infância no Rio, onde sofria por ser maltratado na escola, uma vez que era um estrangeiro; suas ambivalências sexuais que também não passaram impunes, fazendo com que ele tenha sempre o desejo da crueldade e da vingança nos “recalques brasileiros”; o desrecalque pela via do palavrão, que é “enobrecido” pela associação com filósofos como Wittgenstein e Deleuze.

De certa forma, ele faz análise expondo seu inconsciente para o público, que faz as vezes de analista. Uma boa ideia seria uma peça autobiográfica, mas o fato de escrever para um ator de visibilidade, levando em conta o que está vivendo, dificulta esse intento, além do que, uma peça sobre si mesmo seria expor demasiado o narcisismo que percorre até mesmo as montagens de outros autores que Thomas fez e representaria um risco.

Entredentes repete All Stage Away, de Beckett, montada por Gerald Thomas e seu maior sucesso nos Estados Unidos até agora, daí a compulsão/repetição com que Thomas volta a esse tema, agora com Ney Latorraca em situação análoga. A publicidade da peça aproveita-se da doença do ator, o que sempre é notícia na mídia (o que também tem turbinado o sucesso de Entredentes). A peça contava com Julian Beck, do Living Theatre, já doente de um câncer que, em breve, o mataria. A peça tinha, como Entredentes, uma voz em off que falava ao personagem de Julian Beck e que era, inclusive, sua própria voz.

O espiritismo tem em comum com o teatro de Gerald Thomas a disjunção entre corpo e “alma” – no caso dos espíritas propriamente ditos, a alma é representada principalmente pela energia psíquica presente na voz.

Thomas não se diz um diretor, mas sim um encenador e autor teatral. De fato, há alguns anos ele tem redigido os próprios textos, criando sua própria dramaturgia. Quando ele dirigia trabalhos de outros autores, ele na prática encontrava brechas para sua própria voz em muitos momentos. Sua visão era sempre muito parecida com a dos poetas concretos paulistas, que praticamente relêem toda a tradição ocidental a partir da poesia concreta. Ao traduzirem Maiakósvski, “esquecem” que no poema Lênin o velho Maiakóvski citou Stálin e adotam a versão de Trotsky de que ele se suicidou por motivos políticos, embora o próprio Trotsky admitisse que, quando de seu suicídio, ele estava participando da Associação dos Escritores Proletários. Os concretos deixam claro que, para eles, Maiakóvski só sobrevive devido a seu poema para o poeta simbolista Iessiênin e não devido ao poema Lênin. E ainda iam mais além: os concretos colocavam frases de Caetano Veloso e Roberto Carlos em suas traduções de Maiakóvski, a título de avacalhação criativa com a esquerda. Algo semelhante aconteceu quando os concretos traduziram parte da Bíblia do hebreu. A Bíblia mostrou-se um insuspeitado texto de poesia concreta que começava com a frase: “Dia um” (!).

Se em montagens nos Estados Unidos e na Inglaterra estranha-se quando, numa peça de Beckett, além de latas de lixo onde estão o pai e a mãe, há mais algumas latas de lixo que possivelmente são uma liberdade que o diretor tomou, a crítica questiona se essas latas de lixo seriam para o resto da família. Esse tipo de detalhe é anotado e cobrado. Já Thomas encenou Luar Trovado, de Schonberg, misturando esse compositor alemão, de forma expressionista, com a funqueira carioca Tati Quebra-Barraco –e a peça não é recusada pela crítica e nem pelo público, que aqui são tolerantes com esse tipo de mistura, realizada a propósito da estética tropicalista de misturar o mau gosto e o bom gosto, o elemento da indústria cultural e o elemento erudito, etc. Assim, por não termos uma tradição de arte clássica tão enraizada, a margem para a experimentação, no Brasil, é mais larga. Pelo contrário: há, desde o tropicalismo, uma forte valorização do grotesco, do kitsch, sempre ao lado do refinado, da alta cultura. O escândalo e o deboche de Caetano Veloso, Ney Mattogrosso e Zé Celso abriram espaço para o teatro de Gerald Thomas, que passa a ser, ainda por vias tortas, um herdeiro e continuador da tropicália.

Sendo assim, Entredentes reafirma alguns elementos recorrentes nas peças anteriores de Gerald Thomas, principalmente as redigidas por ele próprio. Nessa peça, Thomas evitou a fumaça, estilema muito recorrente em peças anteriores. No entanto, ele centrou a peça no texto e mesmo nele, aboliu a linearidade, fazendo uma narrativa fragmentada, onde se discutem vários assuntos, construídas por jogos de luz que, ao contrário das falas, que parecem por vezes serem orientadas apenas pela musicalidade das palavras, pelas repetições e trocadilhos, são bastante rigorosos e sempre dialogam com a música e buscam um clima certo para aquela cena. A voz off de um personagem que está em cena aparece como uma voz de um espírito, fantasmagórica, assim como buscou colocar Ney Latorraca representando um drama semelhante ao vivido por Julian Beck em All Stage Away.



3. Conclusão



A peça Entredentes representa um esforço dramatúrgico por parte de Gerald Thomas, mas que mais uma vez demonstra algumas de suas limitações enquanto dramaturgo: não constrói personagens, propriamente, revisita temas, imagens e obsessões. Há uma notória tensão entre as mudanças de ambientes e as obsessões e repetições que permanecem, subterraneamente, nessa dramaturgia, uma espécie de andar em círculos. Há uma obsessão em chocar através da sexualidade, da escatologia. Uma nova peça sempre dialoga com Beckett e, em especial, com Esperando Godot. Thomas é atraído principalmente pela disjunção entre corpo do ator e a voz presente no palco, daí a familiaridade com a temática do espiritismo, religião em que a pessoa é tomada por uma voz que representa a “alma” do morto, ou seja, sua energia psíquica que sobrevive a si mesmo, sobrevive à morte de seu corpo.

A grande questão nessa peça foi que ela voltou-se para fornecer texto para um ator global, um ator de visibilidade, que necessariamente precisaria ter texto e diálogos, de outra forma se frustraria. Isso foi complexo, uma vez que o teatro de Thomas é não-dramatúrgico. Para tanto, Gerald parece ter permitido a Ney Latorraca redigir conjuntamente com ele o texto, inspirando a peça na experiência do coma que Ney acabava de viver. Possivelmente, os delírios de Ney na cama e doente é que inspiraram as imagens e falas de Entredentes, onde tudo é dito nas entrelinhas, pouco claramente, como costuma ser uma fala entre os dentes.



4. Referências Bibliográficas:



LIMA. Maria de. London Dry Opera. Entredentes. >. <>.



RIOS, Jefferson. Gerald Thomas busca a síntese de vários impasses. >. <>.



SÁ, Nelson de. Pelas frestas, o renascimento de Nei e Didi. >. <>.



SUSSEKIND, Flora. A imaginação monológica. Notas sobre o teatro de Bia Lessa e Gerald Thomas. <>. <>.



THOMAS, Gerald. Entredentes Arrasando.>. <>.



ZIZEK, Slajov. Em Defesa das Causas Perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.

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