O Ajudante, Um Angelical Romance de Robert Walser
>
>Com certeza, eu serei bem feliz no túmulo,/ Se levar uma
>garrafa bem sortida/ Que naquela habitação, de paz tranqüila, /Ninguém sabe
se
>há taverna nem bebida.
>
>Zé d Avó Gontijo (1860-1905)
>
>O romance O Ajudante (Ed. Arx, 2003), traduzido por Zé
>Pedro Antunes, surpreendeu-me. Quando se fala em Walser (e no Brasil, isso
pouco
>acontece; eu e Zé Pedro falamos a respeito de duas traduções de outros
textos
>publicadas por ZPA no Usina de Letras, saíram alguns comentários de
escritores
>como Moacir Scliar e Bernardo Carvalho e jornalistas, especialmente da
Folha
>de São Paulo , e só), fala-se também em Kafka e Walter Benjamin, autores
>consagrados aos quais ele se ligou. Esperei que o texto de Walser me
fizesse
>lembrar do texto kakfiano, principalmente. No entanto, Der Gehülfe é um
>romance realista que se concentra na relação entre classes sociais.
Trata-se de
>uma narrativa que se constrói com base num narrador onisciente e que se
>concentra em observar a vida de Joseph Marti, empregado de Karl Tobler.
Marti
>vive num pequeno lugarejo às margens de um lago, e não está de mal com a
vida.
>As observações do narrador sobre Joseph muitas vezes se tornam quase uma
prosa
>poética, uma delicada observação do cotidiano. Transparece que Joseph é um
jovem
>inocente, sensível e até efusivo, tendo essa última característica sido
>demonstrada pela presença de vários pontos de exclamação pela narrativa.
>
>Eu creio que detectei, como núcleo do romance, a conflituosa
>relação entre as classes num país europeu onde elas se relacionam de forma
>rígida. As passagens que se referem ao ex-ajudante Wirsich, para mim, são
>aquelas em que o romance subitamente se encorpa. Wirsich tinha relações
sexuais
>com a criada Pauline. E até despertou a atração da esposa do sr. Tobler,
que
>mesmo depois de sua saída se referia elogiosamente a ele para provocar
Joseph.
>As passagens em que se destaca o nome "Wirsich" tratam justamente do
conflito,
>ou seja, são uma microfísica da luta de classe. Marti se espelha em
Wirsich. "Eu
>sou você amanhã", poderia ter dito Wirsich a seu sucessor. E, de fato, é
nesse
>rumo que o romance se encaminha: Joseph começou a conflitar justamente com
a
>figura com quem Wirsich tinha a relação mais complexa: "ela", a burguesa
esposa
>do engenheiro Tobler. Wirsich, bêbado, gritou ao burguês as verdades que
ele não
>queria ouvir. Depois tentou convencer o patrão que era um sujeito cindido,
fato
>no qual o patrão não acreditou. O engenheiro Tobler demonstra saber, ainda
que
>intuitivamente, que o trabalhador sob seu jugo não era ele mesmo, e sim
alguém
>alienado de seu próprio ser. Ao se reencontrar com esse ser, posto "dentro
de
>si" pela embriaguez e pelo ócio, Tobler reencontrou-se com a verdade de sua
>própria classe, algo insuportável, e o despediu.
>
>Essas impressões a respeito da presença de uma ideologia se
>reforçaram posteriormente, quando o narrador refere-se a um envolvimento de
>Joseph Marti com o socialismo:
>
>Sob o nome de socialismo, parecido a uma exuberante
>trepadeira, uma idéia ao mesmo tempo desconcertante e familiar havia-se
>apoderado da cabeça das pessoas, sem deixar de lado as mais velhas e mais
>experientes, e insinuara-se ao redor de seus corpos de tal modo que todo
poeta e
>escritor, ou mesmo as pessoas jovens que podiam prestar auxílio ou tomar
>decisões, por ela se apaixonaram. Jornais dessa moda ou tendência explodiam
como
>em cores flamejantes, com um arrebatador perfume de flores, da escuridão
dos
>espíritos empreendedores, para surpreender e entusiasmar a opinião pública.
>Faziam mais barulho em torno dos trabalhadores e seus interesses do que os
>levavam a sério. Eram freqüentes as demonstrações, das quais as mulheres
também
>caminhavam, agitando bem alto bandeiras vermelho-sangue e pretas.
>(WALSER, 2003, p.157)
>
>Nesta passagem nota o único deslize nessa excelente tradução.
>Talvez no lugar de "das quais" devesse estar escrito "nas quais". No mais,
>podemos dizer que essa passagem é muito curiosa, pois, embora Marti tivesse
se
>desinteressado dessa "moda" de socialismo, há indícios de que a
insatisfação com
>a ordem estabelecida e a situação do mundo que Marti sente se enraizou na
>realidade na medida em que se impregnou do "aroma" de Rosa Luxemburgo.
Desse
>narrador, não se pode dizer que não falou das flores. Não vamos esquecer
que a
>Suíça onde esse livro foi publicado é a Suíça onde vivia Lênin, exilado da
>Rússia.
>
>Embora eu tenha detectado como centro do romance a família
>comandada pelo pai de família Karl Tobler, há vários episódios curiosos e
>significativos: os dois dias de prisão do ajudante, em que ele se fascinou
com
>as histórias do ordenhador rebelde, com quem se identificou; o feriado
nacional,
>dia em que Tobler ficava especialmente cordial e amigo. O patriotismo,
insinua
>claramente essa voz que vem de uma Europa intoxicada pelo nacionalismo
>agressivo, neste caso serve para ocultar os conflitos entre engenheiros e
>ajudantes da Suíça (e do mundo). É notável também o quanto os conflitos
entre
>proletário e burguês presentes neste romance já são os de um capitalismo
>avançado, daí não estarem datados. Quase ao fim do romance, o próprio
Tobler
>afirmou que, embora ministre uma educação religiosa aos filhos, "não
acredita em
>nada". Essa vontade de nada, o niilismo, é bem um problema do século XX,
>detectado por Nietzsche, outro que se beneficiou da tolerância da avançada
Suíça
>e que morreu pouco anos antes de Walser publicar esse romance, tendo também
>terminado a vida transtornado.
>
>Enfim, desenvolvendo um tópico anteriormente abordado, faço o
>resumo da ópera: para mim, "Wirsich ist wirchtig" ("Wirsich é importante").
>Marcou-me especialmente o momento em que Marti o reencontrou reduzido à
miséria,
>com a mãe doente. Marti, como um anjo, ajudou Wirsich a encontrar um
caminho. E
>ainda, na intimidade da alcova, ensinou-lhe boas maneiras, recebendo a
seguir
>sonífera a resposta do outro: "Você é o mesmo um bom rapaz, Marti"
(WALSER,
>2003, p.234). A relação entre anjos e ajudantes, presente em Walter
Benjamin,
>foi observada por Jeanne Marie Gagnebin:
>
>Os anjos de Benjamin parecem assim progressivamente atingidos
>por uma espécie de incapacidade ou de deformação, bem como as bizarras
criaturas
>de Kafka, esses ajudantes e esses mensageiros que poderiam, pois, ser anjos
>potenciais, mas que só conseguem incomodar aqueles que deveriam ajudar e
que não
>transmitem mais nenhuma mensagem (GAGNEBIN, 1997, p.128).
>
>Posso dizer que Marti não foi um anjo tão desastrado
>quanto os anjos de Benjamin, embora fosse também chamado, pela Sra. Tobler,
de
>bizarro. A situação do local e da família em que se passou a narrativa
sobre
>Marti foi também fora do normal, pois, no decorrer do romance, o patrão se
>mostrou cada vez mais patético e desajustado, e a atmosfera progrediu das
>alegrias e sonhos do verão para decadência e os atritos do inverno. Quando
>Wirsich reapareceu, em meio ao longo e tenebroso inverno da decadência da
casa
>dos Tobler, afirmou:
>
>Eu bem que adiantei tudo isso ao interesseiro do Tobler --
>replicou o outro --, que ele ainda ia ser obrigado a sair voando da casa e
do
>jardim de que tanto se gabava. Foi o que ele ouviu muito bem de minha boca
>naquela noite, e agora as minhas palavras estão se cumprindo (WALSER,
>2003, p.286).
>
>As palavras de Wirsich a respeito de Tobler não só estavam se
>realizando como Tobler estava bebendo e se transformando em Wirsich, ou
seja,
>bebendo excessivamente para esquecer dos problemas. Quando, ousadia final,
>Joseph encontrou Wirsich novamente desempregado e o levou para dormir na
torre,
>dentro casa de Tobler, Joseph já estava decidido a encontrar outro
trabalho, já
>tendo sido agredido pelo Sr. Tobler. Ele não esperou a queda e a expulsão
dos
>Tobler da "Vila do Poente".
>
>O final impressiona, pois há uma analogia entre o romance a
>casa dos Tobler. Joseph é quem instaura a narrativa, com sua chegada na
casa.
>Com sua saída cai o pano. O leitor entra na "casa" que é o romance,
acompanha as
>andanças de Joseph dentro dela, e, assim como o ajudante, nela permanece um
>tempo, até sair.
>
>Bibliografia:
>
>GAGNEBIN, Jeanne Marie. Linguagem, História e Memória .
>Rio de Janeiro: Imago, Ed., 1997.
>
>REPA, Luiz. Um Idílio em Ruínas . Caderno Mais!
>11-05-2003, p. 12.
>
>WALSER, Robert. O Ajudante . Trad. José Pedro Antunes.
>São Paulo: Arx, 2003.
>
> ----- Original Message -----
> From:
> Regis Gonçalves
>
> To: Lúcio
> Emílio
> Sent: Monday, June 09, 2003 10:54
>PM
> Subject: Crítica
>
> Prezado Lúcio:
>
> Anda sumido!
> Como vão seus projetos, você que é sempre aquela
> locomotiva intelectual tentando acertar o curso de seus
> trilhos?
> De mim, acho que cansei de ser poeta. Ao menos
> até conseguir editar os tais inéditos que tenho na gaveta.
> Por isso, gostaria de me credenciar junto a você
> como... crítico literário. Como diriam os paulistas: magina!
> Enfrentei o desafio para elogiar o livro de um
> amigo. Pouco desafiador, você dirá. Não é exatamente uma estréia, já fiz
muita
> resenha, mas este texto puxa mais para o lado da crítica.
> Gostaria de conhecer sua opinião, que será ainda
> mais benvinda se já conhecer o livro. Se não, recomendo a leitura.
> Abraço.
>
> Regis
>
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