Estudo sobre o teatro de Roberto Alvim
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior (mestre em Estudos Literários/UFMG).
Introdução
O diretor e dramaturgo Roberto Alvim é uma influência crescente para toda uma nova geração do teatro brasileiro. Podemos supor que é um dramaturgo e diretor que busca produzir espetáculos dotados de uma grande potência poética, em diálogo com a tradição (ele já adaptou Ibsen, Shakespeare, Pinter, Beckett, Ésquilo e muitos outros) e ao mesmo tempo lidando com os grandes problemas de nosso tempo. Mais e mais fica evidente que a obra do diretor Roberto Alvim será tão importante para o futuro quanto a obra do encenador Gerald Thomas, Bia Lessa, Enrique Diaz e outros da geração anterior. Ao contrário desse encenador de si mesmo que é Thomas, Alvim assume uma feição pedagógica: o dramaturgo busca dar espaço a novos dramaturgos. Isso fez com que o seu teatro, o Club Noir, mais e mais torne-se influente, influência essa que é notada em festivais de teatro pelo Brasil afora. As peças dirigidas por Alvim são escuras, sem personagens claros, assim como utilizam-se de técnicas fragmentárias, poéticas e caminhando ao abstracionismo que lembra pintores em que ele se inspira, tais como Cy Twombly. Ele também tem se destacado pela tentativa de, ao mesmo tempo em que dirigiu o Tríptico Beckett, elaborou, também, uma teorização esclarecendo e indo além de sua própria obra. Alvim buscou elaborar uma conceituação a respeito do transumano, para, com isso, problematizar o sujeito. Seu pensamento origina um tipo de linguagem que dá poder às palavras. Marcado mais por vozes, pelo contraste entre luz e sombra, seu teatro busca produzir novas formas de percepção, assim como criar conceitos. A imobilidade é uma forma de lidar com a estética do sonho e dialogar com as artes plásticas. Sua estética busca dizer e captar experiências inconscientes que não seriam traduzíveis em palavras, assim como sua poética quer dizer o indizível e falar o inefável.
1. Alvim: um super-homem inventando uma estética transumana?
O conceito de transumano de Roberto Alvim parece ter nascido a partir da obra A Invenção do Humano, do crítico Harold Bloom. Enquanto Bloom disse que Shakespeare inventou o humano, Alvim quer inventar o transumano, acabando com o sujeito moderno que Shakespeare inventou, afinal ele é um dramaturgo como Shakespeare. Para Alvim, estaríamos novamente numa época semelhante ao Renascimento, ou seja, seria preciso, então, inventar novas formas de subjetivação, assim como abolir algumas outras. Sua ambição é vivenciar o futuro de forma bem diferente do que nos últimos 400 anos. Ele ambiciona problematizar a ideia hegemônica do que seja o sujeito –negando também a existência do “eu”, que seria apenas jogo de linguagem. Ele dedica-se, pois, aos jogos com a forma e com a linguagem, sem tanta preocupação de ser fiel aos autores que adapta e aos conteúdos.
A invenção de novas formas seria, então, uma busca essencial no momento histórico atual, momento esse que Alvim caracterizou como semelhante ao Renascimento.
O teatro alviniano – serei eu o primeiro a usar esse termo? –parece vir exatamente com vontade de potência para superar a geração anterior, a de Gerald Thomas, Bia Lessa, Enrique Diaz e outros. Alvim já assumiu ter imitado Gerald Thomas:
Quantas vezes eu imitei o Gerald Thomas enquanto estava dirigindo ou o próprio Antunes ou o Bob Wilson deliberadamente, sabendo que estava imitando, exercitando meus músculos e percebendo como é o gesto criativo para perceber algumas coisas, mas sempre tendo em mente que o tema é a conquista de uma contribuição singular, de um testemunho original para ampliação do working space do teatro e da experiência estética da humanidade (ALVIM, 2103).
No entanto, Alvim parece ter superado essa relação de espelhamento em relação a Thomas. Em debate recente com Gerald Thomas, Alvim colocou-o num curioso dilema: Thomas sempre afirmou que o teatro no Brasil estava atrasado em relação ao que se faz nos países desenvolvidos. No entanto, para repudiar Alvim, Thomas teve que repudiar Beckett e Robert Wilson, artistas que evidentemente têm muito em comum com Gerald Thomas. Sendo assim, num gesto patético, Thomas não teve como repudiar Alvim sem repudiar a si mesmo.
Alvim quer ficar na história, quer criar um estilo, uma escritura como a de um grande escritor, que é reconhecível na primeira mirada de pequenos trechos de seu trabalho, tem um estilo reconhecível, uma assinatura. Gerald Thomas, em texto “patrulhando” Alvim, cobrou que um depoimento mais direto, nas peças, dos massacres em Gaza, comparando o drama de Gaza com a moderna Guernica. No entanto, nas peças de Thomas, esse tipo de informação aparece apenas como uma fala delirante que aparece na alucinação verbal de algum dos personagens. Thomas também foge da história como um pesadelo, como também faz Alvim. Em sua cobrança superficial, Thomas supõe que o Brasil ainda vive precisando de atualização com os centros do primeiro mundo. Em resposta, Alvim considerou que Thomas é muito valorizado no Brasil pelo simples fato de ser estrangeiro.
O drama que vemos em Alvim é aquele de criar sua própria dramaturgia e novas técnicas. Gerald Thomas era um diretor prestigiado, até que resolveu partir para criá-la. A partir daí, repetindo um drama que um Augusto Boal também viveu ao voltar ao Brasil, Thomas perdeu sua centralidade na cena cultural brasileira e passou a ser, mais e mais, um exilado.
Roberto Alvim parece vivenciar um drama semelhante: quando não se arrisca a produzir sua própria dramaturgia (como em Agronegócio e Viva la Revolución), fala através da dramaturgia de Beckett, Strindberg, Shakespeare, Pinter. Mas podemos perguntar: será que Alvim não estaria revivendo, em menor escala, o Teatro Brasileiro de Comédia, que também montava peças de autores europeus para deleite da burguesia paulista? Podemos supor que não, pois Alvim tem um programa estético-filosófico singular. Podemos supor também que Alvim e o Club Noir estão vivendo uma fase mais politizada depois do ataque dos anarquistas ao teatro.
Aliás, onde Alvim traçava seu programa estético, deixando a obra aberta como um enigma, a crítica Barbara Eliodora viu uma confusão deliberada e arrogante. Alvim transmuta valores, pois considera ser arrogante algo positivo: seria chamar para si as tarefas urgentes.
Alvim sustenta que a forma é o conteúdo, buscando, como em Tríptico Beckett, um espetáculo sensorial e não intelectual, buscando supostamente em Deleuze uma lógica da sensação para explicar sua opção pelo sensorial e pelo teatro não-realista, não-dramatúrgico. Isso nos fazer pensar no Club Noir como um novo Teatro Brasileiro de Comédia, um novo TBC tão sofisticado como o anterior (que também adaptava autores finos como Beckett e Ionesco).
Podemos supor que Roberto Alvim tem clara influência de Bob Wilson e seu uso da iluminação em néon que produz cores frias e vermelhas. Como explicou Roberto Alvim a propósito da peça Hai Kai:
Não se trata de entendimento. Trata-se de produção e experimentação de intensidades. É preciso furar a dinâmica neurótico-histérica do sujeito/ dos afetos. Inconsciente e pulsão. Chega de verdade (ALVIM, apud: MACKSEN, 2013).
Não se trata, então, de um diretor que busca entendimento no sentido jornalístico e nem verdade no sentido do realismo socialista. Alvim busca um teatro marcado pela singularidade da obra de arte. Ele fala da obra que tem de produzir singularidades e que para ele, que é um esteta, é o máximo da experiência humana. O singular, no entanto, é produzido na interseção do particular e do universal. Alvim valoriza a singularidade, mas talvez por trabalhar com uma arte que exige uma criação coletiva, ele pretende ao mesmo tempo subjetivar e dissolver o eu. Mas, sem o eu, como produzir singularidades? A singularidade do artista emana de seu eu. Para Alvim, o eu seria apenas efeito da linguagem. Isso tem consequências. Inspirado em Maeterlink, ele pensa num teatro em que existissem só vozes; o ator é pensado por ele enquanto marionete do diretor, ou seja, um não-eu. Nisso sobressairá o ego transumano do diretor.
Pode-se dizer que, ao dissociar a voz do ator do corpo que a enuncia, Alvim quer praticar sua ideia de que não existe sujeito. O diretor busca os jogos de linguagem no seguinte sentido: a partir da história das formas, coloca-se como diante de um jogo de perguntar e responder e busca as formas que melhor que convém no passado, recombinando-as e reinventando-as para melhor expressar-se. Mas Alvim pretende ir além, colocando-se como um inventor radical.
Para efetivar essa reinvenção, ele usa algumas técnicas e preferências estéticas, criando uma assinatura. As características da escritura de Alvim seriam: 1) uso da luz como partitura do espetáculo; 2) fragmentação do espaço cênico e do próprio personagem nesse espaço. É comum que o diretor coloque atores imóveis ou falando de costas uns para os outros. A estética “noir” é definida pelo próprio nome do teatro, marcado por um determinado uso da cor negra – que Alvim associa ao silêncio, ao uso da escuridão para fragmentar o ator, que muitas vezes é reduzido a apenas um rosto. Como escreve Alvim em Dramáticas do Transumano:
O ponto aqui diz respeito a uma certa qualidade de AUSÊNCIA imprescindível para a atuação. Se o ator carrega para o espaço da cena a construção cultural que chamamos de EU, se ele carrega para a cena esse "si mesmo" cultural (e a visão achatada de mundo deste "si mesmo" cultural), então, sim, este ator macula, conspurca o espaço do teatro, ÚNICA seara em que se pode trabalhar com lógicas distintas da lógica cultural. É preciso alienar os atores - mas aliená-los do que? Do "si mesmo" cultural, que só trabalha por hábito, por condicionamento, reverberando (inadvertidamente) o senso comum, as formas e idéias estabelecidas, reconhecíveis. Não se trata, portanto, de transformar os atores em bonecos que serão marionetados, mas da conquista desta instância de SEPARAÇÃO (no dizer de Artaud: não estou morto, ESTOU SEPARADO). é só nesta ausência que OUTRAS presenças (não-culturais) podem se instaurar plenamente (ALVIM, 2015).
Como Alvim poderia anular o “eu” de um ator, eu não sei bem como poderia acontecer, mas pelo visto ele tenta. A inspiração para compor o espaço é muitas vezes de De Kooning, Mondrian, Malevitch ou Bacon. A concepção alviniana de palco é baseada na assimetria: desenha-se no chão quatro figuras geométricas irregulares, limitando cada ator a uma delas, num jogo em que um não olha para o outro. Patrick Pessoa observou isso em sua crítica:
Ao entrar no teatro para finalmente assistir à Oresteia de Alvim, o impacto visual foi imediato. Apesar da pouquíssima iluminação, talvez previsível em se tratando de uma companhia chamada Club Noir, era possível ver um palco nu, sem quaisquer imagens ou objetos, tendo ao centro apenas um quadrilátero emoldurado por quatro discretas colunas. Como ficaria evidente mais tarde, esse quadrado cênico funcionava como o “tapete mágico” usado por Peter Brook em seu The Carpet Show (1), e delimitava o espaço teatral propriamente dito, um espaço que, uma vez adentrado pelos atores, torna possível a transubstanciação imediata – o tapete mágico, nos desenhos animados, é também um tapete voador! – do tempo-espaço cotidiano, da localização dita “real”, em um tempo-espaço outro, o da “realidade teatral”, indissociável da realidade sensível-inteligível da própria Vida (PESSOA, 2015).
Objetivo, então, é criar novos sujeitos, anulando os “eus” dos atores e gerando, a partir deles, novas formas. A escrita de Alvim produz, então, seus estilemas: penumbra, ênfase na fala, textos irredutíveis a um sentido facilmente explicável, fragmentação. A proposta seria contra o espetáculo. É teatro contra o teatro, optando pela palavra como sonoridade e movimento. O teatro alviniano mistura tradições: alterna Beckett com Artaud e Pinter, sempre optando pelo drama. A materialidade das cenas aproxima da peça da instalação, da obra de arte contemporânea e do diálogo com as artes plásticas. A busca é de um teatro como nova possibilidade de experiência, na linha de Artaud.
A ideia de Alvim de que o real é inefável e inominável cai por terra quando, quando do ataque dos anarquistas ao Club Noir, Alvim nominou a ativista Sininho e a acusou de ser “doutrinada por professores”. Muito curioso que Alvim, que ele mesmo é professor de dramaturgia e no SESI, acredite no argumento absurdo como seria a tal doutrinação ideológica que estaria sendo realizada na escola, argumento muito repetido por conservadores no Brasil e nos Estados Unidos.
Quer dizer: por vezes, Alvim nomeia o real de uma forma bastante tradicional. Como produto do choque de ser atacado por anarquistas como reacionário, Alvim converteu-se recentemente ao socialismo. Essa é a ideia do real enquanto algo que não pode ser falado é a teoria qual ele se baseia para a fala de atores. Para Alvim, quando muda o que é dito, muda também o personagem, suas mediações, até seu nome.
O teatro de Roberto Alvim busca inscrever-se na história, mas, por outro lado, ele rejeita a contextualização histórica, pois ela torna a obra muito localizada em determinados locais e espaços temporais. Pode-se dizer que depois do incidente do ataque dos black blocks ao Club Noir, o teatro de Alvim tem se politizado mais, com Alvim associando-se a Vladimir Safatle, que tocou piano em uma peça recente. A revolução, no entanto, não é como convidar Safatle para jantar. A história, quando passa, por vezes, quebra vidros do teatro e causa prejuízo.
2.Entre o Noir e os Black Block: figuração x abstração
A concepção de realidade presente no teatro do Club Noir é contraposta ao realismo crítico. Ao contrário do realismo crítico e do realismo socialista, Alvim concebe o homem como simplesmente dado, um ser-aí-no-mundo, daí sua inspiração frequente em Heidegger, autor muito citado em Dramáticas do Transumano. O próprio termo “Transumano” é também tirado a mesma tradição nietzscheo-heideggeriana: seria o “além-do-homem”, o super-homem. Para os realistas críticos, o homem seria um animal social, não uma existência separada do todo social. A singularidade do artista não pode ser confundida com isolamento do todo social e com a retirada do pano de fundo histórico e político.
Em Dramáticas do Transumano, que é uma tentativa de teorizar o que foi realizado nos Trípticos adaptando Beckett, Alvim apresentou sua teoria a respeito nos seguintes termos, ele estabelece uma oposição entre figuração e abstração. Para Alvim, a grande questão não é representar o real, pois o que há de mais importante para ele não é o conteúdo e sim a forma. O figurativo tem que ser apresentado, mas sem reinar sobre o teatro:
8. A questão figurativa (poética naturalista/realista) é perigosa porque pretende reinar até sobre o próprio fato-teatro (isto é, sobre o teatro como lugar de construção de jogos de linguagem), impondo a narrativa como sentido único da obra. Para trabalhar com a figura (personagem) num contexto figurativo, é necessário criar uma estrutura rigorosa e limitadora o bastante para promover uma espécie de isolamento (penso nas personagens do pintor Francis Bacon, figurativas, mas habitando um espaço que não se estrutura em consonância com elas). É uma força que vem não das personagens, mas de fora, uma força externa, estrutural. É assim que o fato-teatro se impõe, e o figurativo pode ser visitado sem reinar – este, o norte conceitual de TRÍPTICO (ALVIM, 2014).
Nessa passagem acima, Alvim entende que, se existe uma narrativa, há sentido único. Sendo assim, buscando um teatro não-dramatúrgico, usando apenas fiapos de narrativa, os sentidos seriam mais múltiplos.
Alvim, no entanto, confunde o realismo reacionário da telenovela com o realismo crítico e na prática descarta todo realismo. Mais reveladora é sua concepção sobre o real, que para ele não existe, o que configura sua concepção de mundo como semelhante à concepção subjetivista e idealista ora em voga, para quem tudo é ficção, não existe distinção entre narrativa e história e o real é, também, construção de nossas mentes, conforme o pensamento idealista. O real já se altera, uma vez que ele é produto de nossa mente; a arte não precisa engajar-se para alterar o real. A obra não seria uma intervenção para mostrar uma determinada realidade, desvelando algo que não é visível. Ele deseja igualar o teatro a uma obra de arte abstrata:
O realismo é baseado no desvelamento, como se houvesse uma verdade por baixo de tudo, verdade esta que, uma vez vindo à tona, libertará (ou desgraçará) a todos (vide Ibsen ou Tennessee Williams). Também é ancorado na idéia de um sujeito uno. É um estilo que se pauta pelo diálogo, como se pudéssemos acreditar no diálogo (sem problematizações). Enfim, são tantos os pontos de ignorância profunda que norteiam este estilo, que só alguém que ignora toda a revolução dos signos perpetrada pela arte e pela filosofia no século XX pode continuar levando-o a sério (ALVIM, 2015).
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Sendo assim, Alvim prossegue em seu raciocínio, escrevendo que o realismo não será capaz de trabalhar para além do sujeito, senão deixaria de ser realismo. Mas quem criará as novas técnicas, senão um ou mais sujeitos? As técnicas não surgirão magicamente no mundo como Athena saiu da cabeça de Zeus:
Mas não é fácil sair-se(escapar-se) de seus fundamentos: mesmo em estéticas ditas pós-dramáticas, cria-se outros contextos, tudo parece ser uma outra coisa, mas o ser humano é sempre o ser humano realista: hiper-psicológico. E é contra isto, exatamente, que se deve lutar: contra esta idéia acerca do que seja a vida, e não contra este ou aquele estilo (embora seja óbvio que o estilo realista nunca será capaz de trabalhar para além do sujeito, porque se o fizer já não será mais realismo) (...). Como se o real não fosse construído todo o tempo por nós (cada real é conformado por um jogo de linguagem específico) (ALVIM, 2014, p. 166).
Como se pode ler acima, nessa citação de Dramáticas do Transumano, para o autor existe mais de um real, existem vários “reais”. Ora, quem está criando esses vários reais? Ninguém mais do que os vários sujeitos ao captarem o real. O real é, para ele, fruto de jogos de linguagem que acontecem em nossa mente. Por isso ele acredita que um dramaturgo pode inventar o humano e ele pode desmontar e reinventar o transumano. Ao invés de ser criado pelo contexto social e político do Renascimento, é Shakespeare quem cria o ser humano do Renascimento. O ser humano é fruto da mente de Shakespeare, como o transumano será fruto da criação da mente de Roberto Alvim.
O que se pode presumir é que a arte do Club Noir tem como objetivo, como as obras de Artaud, épater le burgueois. A atitude de Artaud, tão admirada por Roberto Alvim, pode também ser analisada como uma atitude anárquica contra os valores instituídos, uma atitude, portanto, típica de uma época como a nossa, uma época de decadência e comparável, sim, às atitudes dos black-blocks que ele tanto criticou.
Uma obra de arte nasce da interação de um eu, de uma subjetividade individual e criativa e que relaciona-se com determinadas estruturas sociais. A arte ao mesmo tempo expressa e relaciona-se com a sociedade de seu tempo. Muitas obras, no entanto, são muito “abertas”, não bastando simplesmente elencar o contexto social para poder interpretá-las. É preciso entender as formas e nelas encontrar os reflexos das contradições sociais.
Roberto Alvim, com suas ideias “transumanas”, parece, como Nietzsche e Heidegger, querer buscar uma metafísica bastante própria. Ou seja: Roberto Alvim é religioso. Patrick Pessoa observou isso:
Por isso, o epílogo da Oresteia de Alvim, que serviu de epígrafe a este texto, concentra o sumo da experiência que ele propicia: “Deuses, venham e falem. Estamos todos ouvindo. Acredito que essa descrição da comoção que senti ao ver os Ésquilos de Alvim ainda não responde à minha pergunta inicial. O que haveria de menos contemporâneo do que buscar a transcendência, do que se pôr à escuta do divino? Será que, como o velho eremita do prólogo de Assim falou Zaratustra, Alvim ainda não sabe que Deus está morto?! (PESSOA, 2015).
Pode-se dizer que sim: Deus é o inefável. Alvim já disse em uma entrevista que já desejou ser padre, antes de tornar-se diretor de teatro. Isso explica, em parte, sua atração pelo “inominável”, pelo “inefável”: ele quer falar do divino, do sagrado, daquilo que não pode ser dito ou expresso com palavras. Ele busca a experiência mística. O problema é que, em nosso mundo, em nossas estruturas sociais, o místico, o idealismo, o neoliberalismo, o pós-modernismo e o subjetivismo caminham no mesmo eixo.
O teor político do pensamento de Alvim ficou bem mais evidente quando ele tratou, no site governista Brasil 247, página que circula na web, do protesto contra a Copa que, no ano de 2014. O protesto interrompeu um ensaio de Beckett com um estrondo, como se fosse para ilustrar a frase de Sthendal: “a política em um romance é como um tiro no meio de uma orquestra”. Um protesto anarquista arrebentou o vidro da fachada do teatro. Os manifestantes gritavam: “estamos lutando por justiça, não à Copa!” Em momento algum, Alvim sequer sonhou que alguma das reivindicações pudesse ser, ainda que de longe, justa. Condenou indiscriminadamente o protesto e julgou-se vítima de um “fogo amigo” por parte de alienados.
Para Alvim, destruir um vidro do teatro para protestar contra a Copa seria altíssimo nível de imbecilidade e barbárie. Alvim comparou o episódio com um episódio a respeito de Bergman:
Ingmar Bergman estava ensaiando REI LEAR
quando um grupo totalitário assassinou
num suposto protesto político
um importante político sueco (que tinha uma postura democrática e pró-liberdade).
no dia seguinte
Bergman e seus atores chegaram ao ensaio.
os atores choravam, estavam chocados,
e sugeriram que Bergman cancelasse o ensaio e
talvez,
até mesmo a encenação.
Bergman respondeu
que eles iriam ensaiar, SIM
e que iriam estrear na data marcada SIM,
porque tudo o que o tal grupo queria
era que o caos se intaurasse
- e que ele
como ARTISTA
jamais se deixaria tornar
refém de assassinos (ALVIM, 2014)
Sendo assim, a partir do fragmento acima, Alvim dá a entender que algo semelhante está acontecendo com ele, ao comparar-se com Bergman e um político sueco com Dilma. Os black blocks desejam o caos e ao Club Noir caberia ajudar a manter a ordem social, juntamente ao governo federal (e a PM). Sendo assim, Dilma e sua lei de exceção da Copa soariam como tendo atitudes “democráticas” e “pró-liberdade”. Tal não corresponde à realidade. A Copa foi marcada por abusos antidemocráticos, tais como a prisão de ativistas e a remoção de populações pobres. Os manifestantes reagiam quebrando estabelecimentos como resposta à repressão policial.
Alvim prosseguiu em suas considerações políticas, mostrando-se irritado com a postura dos anarquistas, acima chamados de assassinos. Muitos outros adjetivos são utilizados na passagem abaixo:
voilá
(os black-blocs nada mais são
que a versão contemporânea
do lumpem-proletariado:
estúpida e ignara
massa de manobra...)
pois é:
estamos agora limpando as pichações inócuas
que os desocupados furiosos fizeram em nosso teatro
e consertaremos os vidros assim que possível.
porque somos artistas e cidadãos
e vamos continuar trabalhando incansavelmente por uma sociedade mais sensível e fundamentalmente poética
(posto que a experiência estética
proporcionada pela obra de arte
é o ATO MAIS RADICALMENTE POLÍTICO a ser perpetrado
- nós combatemos as CAUSAS da corrupção,
não seus meros efeitos...).
enquanto a versão contemporânea do lumpem-proletariado
(e tão boçal, manipulável, alienada e burramente violenta quanto)
quebra teatros e estabelecimentos da classe trabalhadora
imagino que Marx
deva estar desgostoso em sua tumba
- uma revolução
que principia em totalitarismo cego
(já compreendera o próprio Marx em seus últimos textos)
só poderá resultar
em um regime cegamente totalitário..
é isso.
nem mais
nem menos (ALVIM, 2014).
No trecho em forma de poema acima há várias considerações. Primeiro, ele compara os jovens que protestam contra a Copa com o lumpemproletariado do tempo de Marx, como ele aparece no Dezoito Brumário, como classe trabalhadora sem consciência de seus interesses, apoiando um reacionário como Napoleão III em um golpe de estado retrógrado contra a república em 1852, com base em uma liderança carismática. No entanto, a ideia de um líder carismático que se apoia numa classe trabalhadora sem consciência de si remete muito mais ao lulismo do que aos jovens anarquistas.
Mais adiante, Alvim mostra-se um esteta, deixando de saber que a maioria da população pode perfeitamente viver sem arte, por mais que julguemos que a arte é essencial para nossas vidas. Sua luta por uma sociedade mais sensível sem dúvida é um ato político, assim como a experiência estética. Mas proclamar que “a experiência estética é o ato mais radicalmente político” é sem dúvida um exagero de esteta. Igualmente equivocado nos parece ser a afirmação de que a experiência estética pode combater as causas da corrupção, enquanto os anarquistas, quebrando vidros, estariam combatendo seus efeitos.
Ora, a corrupção epidêmica é estrutural ao tipo de modelo econômico, político e social que caracteriza o capitalismo subdesenvolvido. Prosseguindo em seu raciocínio um tanto quanto tortuoso, Alvim mistura anarquismo com marxismo ao atribuir a Marx desgosto com os anarquistas. Marx, em vida, em várias ocasiões demonstrou desgosto em relação a pelo menos dois anarquistas: Proudhon e Bakunin. O fechamento do texto, com a utilização do termo “totalitário” é bem estranho ao marxismo e a Marx, mesmo aos últimos textos. Quebrar um vidro de um teatro não seria bem uma boa definição de “totalitarismo cego” ou de início de revolução marxista. Quem utiliza essa terminologia em geral são os inimigos do marxismo com a finalidade de combatê-lo.
Toda a linha de raciocínio deu a entender que, quem sabe, Alvim seja realmente o inimigo de pensamento pequeno-burguês que os anarquistas estavam visando atingir. Juliana Galdino, esposa de Alvim, complementou esse raciocínio ao levantar a hipótese de que os atos violentos estejam ligados indiretamente à ditadura militar. Ou seja: seriam infiltrados e provocadores a serviço da volta da ditadura.
Temos aí, então, um curioso enlance que inverte o sentido das aparências: parece que Alvim está defendendo o estado e a ordem num periódico governista. Igualmente, esse tipo de discurso, em que se acusava alguns componentes da luta armada de serem provocadores da CIA foi muito comum nos anos 60, quando até um número do jornal do PCB, Voz Operária, acusou Lamarca de agente da CIA. Se é verdade que Alvim e Galdino identificam-se a uma esquerda, eles identificam-se a essa esquerda que nos anos 60 obstaculizou o acesso dos que queriam fazer violência revolucionária a informações vitais e ainda denunciou-os publicamente como traidores. No entanto, ele e sua esposa estão combatendo o “totalitarismo anarquista”:
ou seja:
trabalhamos febrilmente
(e monasticamente)
pela formação de uma sociedade na qual cada indivíduo conquiste sua singularidade,
sua autonomia de percepção,
sua liberdade em relação às formas e discursos hegemônicos;
lutamos
diariamente
pela eclosão de uma sociedade propositiva e consciente (ALVIM, 2014).
Aqui, cabe perguntar: qual é o projeto de poder contra-hegemônico que tem Alvim? Seria uma proposta apenas estética? A idéia seria estetizar a sociedade? Sabe-se do projeto político anarquista: chefiar uma revolução política abolindo o estado. Mais adiante, Alvim, depois de chamar os anarquistas de assassinos e totalitários, mesmo assim ainda quer colocar-se ao lado deles:
e aí os caras
imbuídos de uma raiva indiscriminada
nos colocam
- justamente a nós, que estamos gramando ao seu lado -
como inimigos...(ALVIM, 2014).
No entanto, pelo teor da narrativa acima construída, o que é mais certo é que o Noir é inimigo dos black-block. Há antagonismo profundo, há antagonismo de classe. Em primeiro lugar, a narrativa de Alvim é uma ordenação de sentido onde ele não entende que a violência contra a propriedade torna-se parte do protesto após a violência policial, ou seja, onde está a população responde à violência do estado usando violência. Ignorando esse fato fundamental, a crítica de Alvim torna-se realmente a crítica de um pequeno-burguês indignado, um inimigo que defende o terror do estado contra a classe trabalhadora e a classe média que está protestando. Note que Alvim e Galdino jamais protestaram contra a violência da polícia e as violências vinculadas à Copa. Essas foram aceitas silenciosamente, como se fossem violências que o real produz para aquelas pessoas em suas mentes. Logo abaixo, Alvim questiona-se sobre o resultado prático das ações enquanto construção política de um novo poder:
Há maturidade, responsabilidade, proposição e convicção nestes grupos?
eles distribuiriam o poder
ou agiriam EXATAMENTE como aqueles que detém hoje o poder?
seriam libertários
ou perpetrariam coação e cerceamento
(do mesmo modo como uma série de repúblicas de bananas ditatoriais na América do Sul?)
o que legitimaria e tornaria maduro todo este posicionamento
seria a confiança de que as pessoas (os outros) vão se reconhecer
inevitavelmente nestas ações
em vez de configurarem procedimentos (quebra-quebras generalizados)
tão sem-caráter
antevendo que não haverá fruição libertária por parte dos OUTROS
(isto é: nós, qualquer cidadão que almeja os mesmos ideais de liberdade e igualdade)
a partir dessa operação...(ALVIM, 2014).
Aqui eu creio que o centro do discurso que devemos analisar é a referência pejorativa a repúblicas de bananas ditatoriais da América do Sul. Quais seriam? Cuba e Venezuela? Paraguai e Honduras? Aqui, mencionar de que países ele está falando é fundamental para definir o teor desse discurso político. Mas esse discurso, em geral, gravita em torno do espectro político da chamada direita. Misturou-se aqui todo tipo de esquerda: Marx, os anarquistas, os manifestantes dos anos 60 com os da ditadura militar, as repúblicas de bananas da América do Sul (Revolução Bolivariana?)
O termo “totalitarismo” foi utilizado para estigmatizar qualquer esquerda, praticando uma generalização. Assim como os que acusavam Sininho de estar fazendo política para o futuro, Alvim mostra acreditar que os anarquistas irão, no futuro, agir exatamente como os políticos de hoje e que estão fazendo a Copa. E o que estão fazendo de errado que mereceram protesto, afinal? Ao mesmo tempo, ele assume o papel de conselheiro político dos anarquistas: as ações deveriam ser pacíficas, pressupondo que os demais irão reconhecer-se em imagens edificantes e não em procedimentos tais como a destruição generalizada. E quem forneceria essas imagens edificantes? O Marx dos últimos livros? O teatro de Roberto Alvim e do Club Noir? As telenovelas da Rede Globo?
3.Conclusão
Pode-se dizer que aqui foi traçado um esboço da estética e das concepções do mundo do criador Roberto Alvim, concepções essas que marcam profundamente o Club Noir, projeto artístico ao qual ele é ligado. Sua estética fragmentária é voltada a um ideário filosófico: Alvim deseja ir além do sujeito no teatro, aproximando essa arte das artes plásticas e do abstracionismo. Ao decompor o personagem, focalizando apenas alguns elementos fragmentários como o espaço, a luz, a voz, ambiciona transformar o ator em marionete para o ego transumano do diretor.
Roberto Alvim assumiu uma concepção idealista e subjetivista do teatro, pressupondo que Shakespeare inventou o humano, ao contrário de ter sido inventado pelo contexto social e político. Como um dramaturgo inventou o humano, Alvim busca inventar o transumano. Para isso, ele compara o cenário contemporâneo ao Renascimento. Ao mesmo tempo, ele pretende ir além do sujeito e criar novas subjetivações e novas técnicas. Mas quem criaria essas novas técnicas, se não forem os novos sujeitos ou o sujeito? Para Alvim, é nossa mente que cria o real. O real é criado e recriado por vários sujeitos, dentro de suas mentes. Não há, então, uma intervenção da obra de arte no real. Como o real sempre muda, é criado por nós, não há como mudar o real de forma pensada. Há como alterar os jogos de linguagem dos quais o real é composto. E por isso Alvim esforça-se tanto em criar novas formas e novas técnicas. Junto com as técnicas, estaria uma parte de seu esforço de compor e recompor o sujeito.
Na primeira parte do ensaio, analisamos a estética de Roberto Alvim, enquanto no segundo abordamos sua ética e política, aplicadas a um acontecimento que faz parte do real (para todos nós): a violência dos black blocks durante a Copa de 2014. Diante desse acontecimento, a política de Alvim condenou, em bloco, a esquerda: agrupou marxistas, anarquistas, repúblicas latino-americanas e, ao fim, buscou assumir a postura de conselheiro dos anarquistas, querendo mostrar com imagens edificantes é que se conquista a simpatia das pessoas para um projeto político. Ao mesmo tempo, ele imagina que eles repetiriam, uma vez no poder, o famoso totalitarismo e agiriam exatamente como os governantes que realizam a Copa, admitindo implicitamente que há autoritarismo e violência por parte do estado.
Pode-se encerrar dizendo que, embora possamos fazer todos esses apontamentos acima, a obra de Roberto Alvim e do Club Noir pulsa, com muito vigor, uma proposta interessante de diálogo entre as variadas artes. Com essa potência poética, Alvim e seu projeto justificam essa pesquisa e mostram-se uma grande promessa para a arte brasileira no século XXI.
4.Bibliografia:
ALVIM, Roberto. Dramáticas do Transumano: sobre os atores. Caminhos da dramaturgia brasileira contemporânea 163. Número 18, março de 2012.
_____________.Relato do Dramaturgo Roberto Alvim. http://www.brasil247.com/pt/247/247_na_copa/128214/%E2%80%9CDestru%C3%ADram-a-porta-de-um-teatro-para-protestar-contra-aCopa%E2%80%9D.htm
______________. Pedagogia e Dramaturgia. https://www.youtube.com/watch?v=Ja5xBaGd8Es
BELUSI, Soraya. ROMAGNOLLI. A Ambição da Originalidade. http://horizontedacena.com/2013/04/05/a-ambicao-da-originalidade-entrevista-com-roberto-alvim-2/
LAUB, Michel. O radical. Como Roberto Alvim faz teatro. http://revistapiaui.estadao.com.br/materia/o-radical/
MACKSEN. Festival de Curitiba. Haikai.<
PESSOA, Patrick. Roberto Alvim e o futuro do drama.
ROMAGNOLLI, Luciana Eastwood. Um Campo de Invenção sob o risco de réplica. http://www.questaodecritica.com.br/2012/12/um-campo-de-invencao-sob-risco-de-replica/.
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