terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Café, escritores, livros e citações

 


* Por Luciene Guimarães *

Se você é leitor e se a companhia de um livro atrai uma xícara de café, imagine como é esse ritual para o escritor, em que a criatividade  parece ser beneficiada pela intensidade do sabor do café expresso. Mas não se trata aqui de discutir o próprio café, seu aroma, a sensação, se é turco, ristretto, ou com creme,  mas do ritual da escrita, que se passa muitas vezes em torno do café, dos lugares de encontro e discussão literária, mas também da solidão do escritor, quando quer matutar as palavras.

Escritores e cafés estabelecem entre eles uma relação simbiótica. Foi frequentando cafés que muitos escritores fizeram a fama dos recintos , que por sua vez,  só se tornaram conhecidos porque foi onde Borges, Fernando Pessoa, Machado de Assis, ou mesmo Zola ou Rimbaud, passaram por ali. Passavam para se aquecer ou esquecer de algo, ou mesmo permanecer, ficar, discutir, se juntar às efervescências sociais, ou se isolar num canto para elaborar sua escrita.

Se você é um leitor curioso, uma visita a  Buenos Aires pedia ir ao centro e comer um churros com chocolate no Café Richmond, famoso porque Borges ali se reunia com seu grupo literário, quando jovem, ritual diário.  Conhecido também por Júlio Cortázar, que em um dos contos do  seu fabuloso Histórias de cronópios e de famas, faz  referência ao recinto : “ Enquanto toma café no Richmond da Flórida, o cronópio molha uma torrada com suas lágrimas naturais.” A rua Flórida, onde ficava o café, hoje deu lugar a uma loja de departamentos americana, para a tristeza dos cronópios.

No Rio,  a tradicional e histórica Confeitaria Colombo, ilustríssima pelas passagens de  Machado de Assis e Olavo Bilac, esse último, frequentador assíduo, foi fundada em 1894, na transição para a República. Em Esaú e Jacó, Machado evoca uma suposta confeitaria, que serve de motivo para as ironias   do fim do Império: “Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembleia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita (…). Levantada a cortina, Custódio leu: “Confeitaria do Império”. Era o nome antigo, o próprio, o célebre (…)” A confeitaria, que seria a do “Império” ou a da “República”, aludiria à Confeitaria Colombo.

Mas entre a História e a literatura, qual é a definição de um café literário? O termo “literário” que acompanha certos cafés pode ser bastante restritivo, diz a  Encyclopédie Universalis. O fato é que o que o ritual de encontro nos cafés que marcaram a história não se restrigem só à literatura, mas logo se juntaram a eles representantes dos outros campos da criação, das artes dramáticas às artes plásticas, e por todos aqueles que tinham algo a ver com estes círculos, tais como comerciantes de arte, livreiros, editores, colecionadores, bancas de jornais, etc. Filósofos, acadêmicos e cientistas têm ali um lugar, assim como ideólogos, políticos e até teólogos. O Café de Flore, em Paris, é um ícone nesse sentido, de encontros de discussão das humanidades, como o grupo da Rue Saint Benoît, grupo intelectual de esperançosos do pós-guerra, da resistência da ocupação francesa, centrado na figura da escritora Marguerite Duras, mas onde participavam também filósofos e escritores, como  Maurice Blanchot, Georges Bataille, e aqueles que se tornaram políticos importantes, como François Miterrand. É preciso ressaltar, no mesmo café, a presença também icônica do casal filósofo Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Estes também frequentavam o Café Les Deux Magots, lugar  marcado pelas visitas assíduas de Verlaine, Rimbaud e também Ernest Hemingway.

Além da forte sociabilidade, “os estabelecimentos foram, em um ou outro grau, uma espécie de escritório acadêmico, projetado para trocar opiniões e confrontar ideias da maneira mais livre possível.” Para muitos escritores, estar num café fez atiçar a criatividade e a imaginação, mantendo a inspiração acessa. Fugir da solidão, abstrair o burburinho da vida urbana, fazer-se de voyeur, trocar a escrivaninha pela mesa do café virou hábito de alguns. Hemingway escreveu Paris é uma festa, livro em que ele mesmo deixa escapar que escreveu parte dele num “café na Place St. Michel”.  A vida boêmia dos escritores na Paris de vanguarda misturava desejo e escrita: “Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. (…) Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.” Eis uma presença efêmera, uma cena de relance, que evoca a passante de Baudelaire. Apollinaire foi outro escritor que permanecia longas horas no Café de Flore, escrevendo. Sartre e Simone de Beauvoir escreveram um livro inteiro ( “Os mandarins”) no Café Les Deux Magots. Hoje, o título do romance dá nome a uma sala do café parisiense.

Entre os contemporâneos, a escritora Patti Smith, também se rendeu ao sabor e charme dos cafés. Em seu livro Devoção, em meio a tantos nomes da cultura francesa que ela mesma cita, ela também se reconhece num estilo “voyeur”, em  que imaginar a cena inspira o livro. “Acordo mais cedo que o normal. Chego ao Flore bem na hora em que a cafeteria está abrindo, peço uma baguete com geleia de figo e café preto. O pão ainda está quente. ” Ao regressar à sua casa, nos EUA, ela diz cair em nostalgia: “Já em Nova York, tive dificuldade para me reacomodar quimicamente. Mais do que isso, sofri crises de nostalgia, uma saudade de estar onde estivera. Tomar café da manhã no Café de Flore, as tardes no jardim Gallimard, surtos de produtividade num trem em movimento.”

A química do café ou dos cafés também agiu em Enrique Vila-Matas, escritor espanhol. Em seu livro  Paris não tem fim, dedicado a uma longa estadia na França, entre confissões e fugas, ele diz : “Creio que naqueles dias, era eu quem dava as costas para o mundo, para o mundo todo. Sem leitores, sem ideias concretas sobre o amor nem a morte, e, para completar, escritor pedante, que escondia a fragilidade de principiante, eu era um horror ambulante. (…) E passei a fumar cachimbo, que julgava (talvez influenciado por fotografias de Sartre no Café de Flore.)”. Seja pela xícara de café que reanima os ânimos da escrita, ou seja pelo lugar repleto de surpresas e passagens dignas de Baudelaire, café e escritores parecem ter uma química perfeita.

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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.

 

Marguerite Duras para além da literatura

 


* Por Luciene Guimarães *

Poucos escritores do século XX tiveram o mesmo fôlego de Marguerite Duras em sua intensa obra. A conhecida escritora de O Amante (prêmio Goncourt nos anos 1980), não publicou apenas romances, como também suas crônicas jornalísticas para o jornal francês Libération, escreveu peças de teatro, roteiros para TV, ainda se dedicando a uma vasta atividade cinematográfica (cerca de 20 filmes produzidos). Como se não bastasse, foi tradutora, vertendo para o francês, peça de Anton Tchekhov e contos de Henry James. No Brasil, a obra dessa intensa escritora e cineasta ganhará novo alento com a publicação e reedição de algumas de suas obras, por algumas editoras brasileiras, como o livro Escrever, pela editora Relicário, além de outros títulos que estarão em breve no prelo. Mesmo que a obra de Marguerite Duras suscite bastante interesse dos leitores brasileiros , o público entretanto, talvez desconheça outras facetas da genial escritora.

Nascida na antiga colônia da Indochina, (hoje Vietnã), em 1914, Duras passou a vida exorcizando os fantasmas da infância, trazendo à tona através da escrita a própria memória: de um lado, os eventos que abalaram o século, como a Segunda Guerra e a efervescência de 1968, de outro, os conflitos familiares e afetivos. Em alguns livros, como Barragem contra o Pacífico, de inspiração autobiográfica, é no espaço da Indochina da infância, que as mazelas da vida colonial são desveladas. De fato, Duras conviveu com a frustração de uma mãe instrutora escolar que sonhou com a riqueza prometida na colônia francesa, onde o mar invadiu as terras da família provocando sua ruína. Outro livro escrito nos anos quarenta e depois esquecido, retomado anos mais tarde, A dor, relato confessional na angústia em salvar a vida do então marido, Robert Antelme, escritor e militante da Resistência que foi perseguido e quase morto pela Gestapo.

Os lugares de criação

 Ao longo da vida, Marguerite Duras escolheu viver em três lugares, destinados ao trabalho de criação, lugares esses carregados de simbolismos e significativos para as fases de sua carreira. O apartamento em Paris, na rue Saint-Benoît, que acolhia discussões de intelectuais; sua casa em Neauphle-le-Château, adquirida com a venda dos direitos de Barragem contra o Pacífico para o cinema; e os verões em Trouville, onde ela habitava no apartamento onde morou Marcel Proust. O apartamento à rua Saint-Benoit, endereço nobre perto do Café de Flore e lugar de efervescência política e intelectual, sobretudo nos anos da Guerra, tornou-se ícone do envolvimento da escritora com a vida intelectual na França, levado em particular pelo círculo de intelectuais conhecido como o “ grupo Rue Saint-Benoît”. Entre alguns de seus membros estavam filósofos, escritores e cineastas, como Maurice Blanchot, Dyonis Mascolo, Edgar Morin, Maurice Nadeau, Claude Roy e Elio Vittorini. O grupo formado por intelectuais unidos por uma forte amizade desde a Resistência, procuravam se opor a certos princípios, subvertendo o poder. Se, depois da guerra, a maioria de seus membros estavam inscritos no Partido Comunista, alguns o abandonaram, como Vittorini na Itália, outros foram excluídos, como Antelme, Mascolo e Duras, em 1950.

A casa na pequena cidade de Neauphle-le -Château, nos Yvelines, tornou-se também locação para alguns de seus filmes, como Nathalie Granger (1973). Gerard Depardieu, Jeanne Moreau, Delphine Seyrig e Bulle Ogier foram protagonistas do seu cinema, praticado sobretudo nos anos setenta e início dos anos oitenta.

Entre a escrita literária e a atividade cinematográfica

 Foi justamente a exigência da escrita, para ela, solidão e fardo, que a levou se ausentar da literatura durante a década de setenta para se dedicar exclusivamente ao cinema. A transição para o cinema, foi para ela, escritora já consagrada, uma experiência árdua. A inserção no meio cinematográfico deu-se à margem do cinema comercial ou de grande público, contando com orçamento modesto, o que a levou a sobreviver fora do circuito de distribuição em grandes salas. Seus filmes eram projetados em festivais de cinema experimental na França, e em países vizinhos. Um desses festivais, foi o Festival d’Hyères, que surgiu no início dos anos setenta, motivado pelo cineasta experimental radicado americano, Jonas Mekas. O Festival d’Hyères – que tinha esse nome por ser realizado em Hyères, uma pequena cidade turística no sul da França – surgiu ainda quando a relação da cinefilia com o cinema de autor eram férteis, o que propiciava verdadeiros rituais de encontros entre filme, público e autores. Cineastas como Jean-Luc Godard, Chantal Akerman, Jean Eustache e Jean-Marie Straub, todos franceses que despontaram no cinema de autor, eram frequentes em festivais, mostrando seus filmes na programação. Duras, não só projetava seus filmes produzidos nos anos setenta, como fazia parte do júri. Sabe-se que a estética experimental influenciou seu estilo. Sua inserção no meio cinematográfico deu-se então pela via do cinema alternativo, longe dos holofotes de Cannes e que ela apreciava e valorizava como forma política de resistência e oposição à indústria do cinema. Com dois filmes indicados para o Festival de Cannes (India Song et Le Camion) em 1975, e 1977, sua posição era de renúncia absoluta ao mundo do cinema europeu e das estrelas de Hollywood. Ela frequentou Cannes mas sem nenhuma afinidade com o glamour do evento cinematográfico, preferindo se recolher no quarto de hotel. O Festival d’Hyères que sempre privilegiou seu cinema, foi para ela, um lugar de encontro, cumprindo o ritual cinéfilo de debater com cineastas e com o público. Sua exigência com um espectador que “não sabia ver, não sabia ler” (as imagens) foi quase seu lema de protesto ao espectador passivo que se rendia ao cinema de sábado à noite para ver filmes americanos.

Duras excêntrica

 Outra excentricidade da escritora, diz respeito à venda dos direitos autorais de seus romances. Duras os cedia a cada vez que eram solicitados, mas depois, arrependida – não se sabe – ou talvez, frustrada pelas adaptações não corresponderem às expectativas, ela renuncia a todos. Foi assim com Barragem contra o Pacífico, filme de Renée Clement, o mesmo se deu com Peter Brooke, quando vendeu Moderato Cantabile e foi ainda mais grave com seu livro mais célebre, O amante, publicado em 1985. O cineasta francês Jean-Jacques Annaud comprou os direitos, convidou Duras para opinar nas filmagens e no roteiro, uma espécie de conselheira. Antes das filmagens começarem, Duras teve que se afastar por problemas de saúde, e então Annaud realiza o filme mesmo assim. Ao perceber o estilo comercial do filme, ela se arrepende do projeto, mas sem sucesso. Em revanche, ela responde ao projeto , não com outro filme, mas publicando um novo livro: O amante da China do Norte. Com uma linguagem próxima da cinematográfica, ela afirma: “é um livro, é um filme. “

Duras não se confessava grande cinéfila, dizia não ter estímulo de procurar filmes em cartaz, preferindo os filmes da TV . Havia uma razão para tal: fórmulas repetitivas, como se fossem enformados, realizados como produtos em série. Era exigente quanto à forma do filme. Apenas um cineasta era admirado por ela: Jean-Luc Godard. Por algumas vezes, se encontraram e registraram suas conversas, essas publicadas em livro anos mais tarde, como diálogos. Godard a convidou para atuar num de seus filmes, ela conta em Les Yeux verts, longo ensaio para o Cahiers du Cinéma. O filme era Salve-se quem puder (Sauve qui peut : la vie) em que ela deveria aparecer numa entrevista. Como o ambiente não foi favorável, Godard resolve na montagem da cena, deixar apenas a voz off de Duras. Essa escolha não parece ser por acaso. É sem dúvida a voz off dela o que prevalece em todos ou na maioria de seus filmes, principalmente os dos anos 70. Eis a homenagem do amigo Godard.

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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Olha o Grau, Imprensa Digital!

                                         

                                                    Banda Bone Machine



Olhe o Grau, Imprensa Digital!

 

                Há algum tempo atrás, curiosamente, encontrei em um site na internet meu blog Revista Cidade Sol elencado entre os órgãos de imprensa da cidade, ao lado desse Jornal de Negócios! O meu blog existe há quatorze anos. Ele tem desde ensaios e peças teatrais até trabalhos de faculdade, links de vídeos que cheguei a realizar (como um sobre Maura Lopes Cançado), até poemas, resenhas, indicações de outros sites ou blogs, uma verdadeira barafunda.

Queria nessa coluna retomar isso, então, e comentar a imprensa digital local. O canal Defeitos, de Ragner Lemos e o Delonge, do Tom (no youtube) são voltados para o humor mais popular. O canal da banda Bone Machine é bom canal musical

O canal Liverson Carvalho é um canal voltado para o público juvenil, focalizando no humor. Ele coloca, por exemplo, a mãe para ouvir e comentar suas impressões sobre canções de funk. O resultado é um curioso choque de gerações, uma vez que canções como Boca de Pelo narram situações inenarráveis para a minha geração e as anteriores.

Choque entre gerações também ocorrem quando se trata do mundo das motocicletas. Esses são os principais assuntos de Juka do Grau, o Julianinho da Estrada Veículos, em seu perfil no Instagram. Foi através desse comunicativo rapaz que, sem dúvida, tem talento para jornalista que descobri, ao ver coberturas de eventos como “Motocando” (onde jovens se reúnem para empinar moto), o “grau” (puxar roda) é considerado por alguns um esporte em vias de ser legalizado! E vi o ex-PM Gabriel Monteiro, defendendo, de forma vanguardista, a legalização desse esporte “emergente”.

À luz desses fatos, achei muito curiosa e profética uma “sinopse” que fiz de um filme de Coppola: O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish) Francis Ford Coppola, 1981, publicada no blog revista cidade sol há quatorze anos:

“O Selvagem é um filme sobre a contracultura ambientado nos anos 60, mas filmado no início dos 80. A rebeldia da juventude é o tema do livro de Susan E. Hinton em que o filme é baseado. Susan faz uma defesa da juventude rebelde, mas Coppola parece ter adicionado à história um pouco da descrença que marcou os anos 80. O filme observa a falência da crítica ingênua ao capitalismo americano. Rusty James(Matt Dillon), imagem primordial do “rebel without a cause”, é um jovem agressivo, que mora na parte pobre da cidade e deseja liderar uma gang-e elas estão “fora de moda” na época retratada no filme. O irmão mais velho de Rusty, o motorcycle boy, retorna então da Califórnia. Ele é “como a realeza no exílio” e “nasceu no lado errado do rio”. Ele pode fazer tudo o que quiser, mas ele não encontra nada que queira fazer.” O que motiva sua eliminação pela polícia é uma louca tentativa de libertar os peixes de briga de uma loja de animais (em inglês, Rumble Fishes) e levá-los para o rio. O que o establishment teme, na verdade, é a capacidade que o garoto da motocicleta tem de liderar, de encantar os jovens, de ser um herói para eles; eles o seguiriam, ele e Rusty James poderiam dominar o lado da cidade onde vivem se o garoto aceitasse. A desidratação da contracultura está explicitada nestas palavras: A Califórnia é como uma garota chapada de heroína e doida, alta como uma pipa, sentada no topo do mundo sem saber que está morrendo, nem mesmo quando você lhe mostra as marcas.”



                                                                


quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Cine Regina: A Última Sessão de Cinema

 





Cine Regina: A Última Sessão de Cinema

                                               Lúcio Emílio do E. S. Júnior

 

            Uma de minhas lembranças mais persistentes é o fato de que acompanhei o fechamento do Cine Regina. Lembrei-me do antigo cine ao ler Resposta ao Tempo (Editora Literatura em Cena, 2020), de Alberto Coimbra: “No fundo, bem no meio do hall, a bilheteria (...). Ao entrar no cinema, primeiro o hall com o baleiro no meio. Cartazes de filmes na parede, uma porta e outro hall com os sofás e vários cartazes na parede dos dois lados (...)”. A seguir, ele explica que os cartazes eram de filmes de Marcelo Mastroianni: Esposamante e O Belo Antônio. Esse último contava com Cláudia Cardinale.

            Quando eu tinha dezesseis anos, no ano de 1990, fui a esse cinema ver Lambada, a Dança Proibida, na sessão de domingo à noite. Eu me recordo que eu ia junto aos escoteiros, um deles chamava-se Wilson e passávamos na farmácia logo ao lado, ele ia do trabalho direto ao cinema.

A lambada só era proibida no cinema, pois, na época, você abria uma torneira dançando lambada. A atriz principal (Laura Harring) representava a princesa Nisa e tentava evitar a devastação da Amazônia ao dançar um misto de música caribenha com carimbó de Belém, ao lado de um índio urbano que fazia magia macabra com sua pena de pavão explosiva. Nos dias que correm, Nisa com certeza seria chamada de comunista ao vestir vermelho e exibir “agenda pró-nativos”.

            Em outra sessão diferente, chegam imagens de outro filme visto ali: Os Dragões (1989), filme com o ator Jackie Chan, ainda em sua fase ambientada em Hong Kong e que é conhecida como “anos do Kung Fu”. Se em Lambada ríamos, nesse de luta meu amigo Wellington Mota imitava os golpes. Como em Cine Paradiso, a plateia era um espetáculo à parte.

            Dois anos depois, em 1991, o Cine Regina anunciou seu fechamento, mas como despedida realizou sessão exibindo Cine Paradiso, clássico de Giuseppe Tornatore (1988). Era o cinema falando de si mesmo. Mamãe chamou-me para ir, mas eu não quis fazer essa experiência mágica que seria vê-lo na telona, uma vez que tinha visto o filme em vídeo. O filme fala da volta de um cineasta bem sucedido a uma pequena cidade (Giancaldo), quando morre seu amigo Alfredo, projecionista que lhe ensinou o amor pela sétima arte e que sempre trabalhou no cine que acabou demolido ao final. Na trilha sonora de Enio Morricone, o violino é de cortar o coração. Eu não sabia que filmes como esse podem ser vistos durante a vida toda várias vezes, sempre com novo proveito. Como sinto arrependimento visto essa última sessão de nosso cinema! Logo depois que ele fechou as portas, escrevi um poema sobre o fato:

 

Cine Regina

 

Este cinema, encaixado nas duas lojas.

Uma de tecidos, Cine Regina, uma barbearia.

Este cinema

Flutuando com seu branco letreiro,

Pisca na madrugada,

No abismo,

Sempre piscando.

Na grade, círculos verdes tecem quadrados intrincados.

Na verdade

A entrada é franca.

Entrada tá fechada, vidro fosco.

O vidro fosco abraça as grades.

O Cine se esconde em frágeis andares

De um prédio de ruivas nas janelas.

Quadrados minúsculos seguem feito facetas

Da asa multicor de uma borboleta.

Sentados no meio-fio

Garotos estão vendendo cigarros de menta.

Quisera eu entrelaçar tal cenário

Numa foto em preto e branco retintos.

Para esfregar a imagem nos narizes metálicos

Da metrópole surda-muda & nua.

sábado, 11 de dezembro de 2021

José Maria de Vargas Vila: Um Nietzsche Colombiano Diante dos Bárbaros

 

José Maria de Vargas Vila: Um Nietzsche Colombiano Diante dos Bárbaros

 

                José Maria de La Concepción de Vargas Vila Bonilla (1860-1933), conhecido simplesmente como Vargas Vila, é um dos maiores escritores colombianos, mas pouco conhecido no Brasil. Eu o conheci através de Ezio Flavio Bazzo, admirador de Cioran e de Nietzsche. Seu estilo apaixonado foi frequentemente comparado a Nietzsche, de quem foi contemporâneo. Vargas Lhosa admitiu ter lido seus romances quando adolescente. Os romances de Vargas Vila, tais como Ibis, eram recheados de cenas eróticas e donos de um estilo apaixonado, colorido e cativante, altamente libertário e anticlerical. Ibis lhe valeu a excomunhão pela Igreja Católica. Vargas Vila agradeceu publicamente. Antonio Candido chegou a dizer que aceitava Nietzsche, mas não Vargas Vila. No entanto, Vargas Vila é essencial: foi o primeiro romancista latino-americano a comprar casa e fazer sucesso editorial em língua espanhola internacionalmente, muito antes de Garcia Marquez e Vargas Lhosa conseguirem essa façanha.

            Vargas Vila escreveu mais de vinte romances, tais como Lírio Vermelho, Aurora e as Violetas, dentre outros. Seu ódio às mulheres e o tema presente da homossexualidade também criaram espanto já em sua época. Como era polêmico, a forma que os amigos conseguiram que fosse protegido era o trabalho diplomático. Mesmo assim, como cônsul do Equador na Itália, negou-se a dobrar o joelho diante do Papa, causando escândalo. Ao que ele respondeu: “nunca me ajoelhei diante de nenhum mortal”.

            Como era um liberal entusiasta e figura importante nas disputas políticas envolvendo as ideias liberais na Colômbia, seu verbo vigoroso era comum nos jornais liberais, o que lhe ganhou muitos inimigos na Colômbia rural de então. Trabalhou como professor em liceu, mas a situação como professor complicou-se devido à sua inimizade contra os católicos. Filho de um general militar liberal que morreu degregado no Panamá, então colônia penal colombiana cheia de pântanos, deixando a família na miséria, Vargas Villa cresceu autodidata. Escrevia uma prosa barroca, retorcida, deslumbrante.

            Após participar daquela que é considerada a última revolução colombiana significativa em 1883 e ser derrotado, Vargas Vila passou a correr risco de vida e mudou-se sucessivamente para Nicarágua, México e Venezuela, países onde fez muitos amigos. Nesse último país chegou a ocupar postos públicos em 1893. Em 1898 foi a Nova York ajudar a fundar a Revista Hispano-Americana. Publicou, então, Diante dos Bárbaros, apaixonado panfleto literário contra o que chamava “yankismo”, publicado em meio aos norte-americanos, que chamava de bárbaros nos seguintes termos:

 

Washigton apunhala Bolívar pelas costas, e rouba seus tesouros; E os yankees se entregam ao butim e a pilhagem da América Latina e o mundo ignora esse butim feito pelos piratas de Cartago, acreditando na derrota de Roma (...) Para vingar a derrota de sua ganância, eles caíram no Haiti; a Ilha, verde e dourada, os seduziu, como uma joia caída do céu; pousaram lá, se declararam senhores daquela turbulenta democracia de negros atrasados [que] foram fuzilados em praças públicas, foram assassinados no campo, se apoderaram de sua alfândega, e se declararam seus senhores, aproveitando o fato de que a França, sua antiga metrópole, não poderia ajudar a indefesa Ilha caída sob o escudo de Kir (Vila, 2021).

 

 Logo a seguir, em 1900, ocorreu o que Vargas Vila chamou de “o crime do Panamá”, crise em que USA ajudou a província do Panamá a tornar-se independente, complicando as relações com a Colômbia e despertando sentimentos anti-yankees e patrióticos na juventude colombiana, que deu razão a Vargas Vila em seus gritos em forma de panfletos.

Os problemas junto aos USA começaram logo a seguir, quando Vargas Vila fundou a revista Némesis, levando adiante a campanha contra a intervenção yankee na América Latina. Ficou amigo de José Martí nesse período, tendo dedicado a ele um livro, Martí, Apóstolo e Libertador. Escreveu também um livro sobre o poeta nicaraguense Rubén Dario. Némesis despertou atenção na polícia e a solução encontrada, mais honrosa, foi que Vargas Vila mudou-se para a Espanha como cônsul nomeado por seus amigos na Nicarágua. Nemesis passou a ser editada em Paris.

Para complicar, Vargas Vila era uma figura temperamental, extravagante, misógina e a única mulher com a qual, durante toda vida, teve relações sempre amistosas foi somente a mãe. Na Itália registrou-se o suicídio de uma das mulheres com as quais envolveu-se. Embora sempre nacionalista colombiano fervente, suas posições políticas intransigentes contra os USA e contra os católicos fizeram com que fosse proscrito em seu país natal, embora sempre sonhasse em voltar. Morreu em Barcelona e suas cinzas só foram levadas para a Colômbia em 1981.

 

Bibliografia:

 

José María Vargas Vila: biografia, estilo, obras, frases. <<https://maestrovirtuale.com/jose-maria-vargas-vila-biografia-estilo-obras-frases/>>.

 

Vila, Vargas. Ante Los Bárbaros. <<https://www.gftaognosticaespiritual.com/wp-content/uploads/2012/08/32-03-ANTE-LOS-BARBAROS-VARGAS-VILA-www.gftaognosticaespiritual.org_.pdf>>

 

José Vasconcelos: A Raça Cósmica e o Professor da América

 

José Vasconcelos: A Raça Cósmica e o Professor da América

 

                José Vasconcelos (1860-1959) foi o autor mexicano que fez a “redenção cósmica” dos mestiços. Era filósofo, escritor, místico, educador, político. Era uma figura muito intensa e apaixonada e uma das principais figuras do século XX mexicano.

Nasceu em Oaxaca em 1882 e seu pai aceitou, junto de sua família, trabalhar no deserto de Sonora, onde era perigoso trabalhar devido aos ataques dos apaches. Estudou na infância numa escola norte-americana bilíngue da fronteira. Foi criado junto da mãe muito religiosa, a quem mesmo depois de morta manteve o cordão umbilical espiritual. Aos 18 anos, na época da morte de sua mãe, foi estudar na capital e misturava ciência e misticismo: positivismo de Comte, espiritismo e maçonaria.

Vasconcelos foi um apoiador do presidente Madero bastante convicto, combatendo os porfiristas e empolgando-se com a revolução mexicana; Posteriormente com a morte de Madero, ligou-se a Carranzas e Pancho Vila. Com o assassinato de Carranzas, foi para a Europa, fugindo das lutas políticas que, segundo ele, tinham feito a revolução mexicana perder-se em  rivalidades mesquinhas.

Nesse período dos anos 20, tido como seu período progressista, era chamado “Professor da América”. Nessa época, entre 1921 e 1924, Vasconcelos tornou-se secretário da educação pública, criada no governo de Alvaro Obregón. Lançou grande campanha de alfabetização. A seguir, criou o periódico O Mestre, pois queria instaurar no magistério de seu país o seu espírito redentor. Nesse período, Vasconcelos vislumbrou, no livro Raça Cósmica (1925), a América Latina como um crisol de todas as culturas do mundo, mas falava especialmente que raça cósmica nasceria no Brasil e em segundo lugar, tinha destaque a Argentina. O México foi descrito por ele como selvagem e fracassado. Pode-se dizer que a influência de Nietzsche faz pensar que em La Raza Cósmica gera a profecia de que o super-homem ia nascer entre o Amazonas e o Prata. Devido a suas idas e vindas ao exílio, Vasconcelos ficou conhecido como “Ulisses crioulo”.

Dentre muitos artistas de vanguarda, Diego Rivera, Siqueros e Orozco eram vasconcelistas convictos. Nas grandes paredes da Escola Nacional, esses muralistas pintaram Quetzalcoatl, Platão, Frei Bartolomeu de Las Casas, dentre outros, para ele, símbolos de sua síntese universal. Era a teoria dos impérios étnicos:

 

Temos então quatro etapas e quatro troncos: o negro, o índio, o mongol e o branco. Este último, depois de organizar-se na Europa, converteu-se em invasor do mundo, e se acreditou que ia predominar, ao mesmo tempo em que acredita que as raças anteriores, cada uma em sua época de império. Era claro que o predomínio do branco seria temporal, mas sua missão é diferente de seus predecessores, sua missão era ser ponte, colocando as bases materiais e morais para união de todos os homens em uma quinta raça universal, fruto das anteriores e superação do passado  (VASCONCELOS, apud: SILVA , 2013)

 

Como educador, na secretaria de educação pública, Vasconcelos desencadeou uma cruzada espiritual sem precedentes no México. Ao tentar candidatar-se, fracassa e deixa a secretaria em 1923, exilando-se. No exílio nos USA e Europa, sempre publica artigos críticos ao regime.

Em 1928, de volta ao país, Vasconcelos marcou época novamente e criou sua famosa campanha presidencial, apoiada principalmente por estudantes e operários. Ficou conhecida como “campanha vasconcelista”. Foi marcada pela violência política, pois era basicamente uma campanha de românticos num país oligárquico.

O fracasso dessa campanha, supostamente fraudada pelo adversário, fez com que Vasconcelos voltasse aos USA e Europa em seu exílio mais amargo e trágico de todos. Seus seguidores sentiram-se abandonados. O exílio foi muito amargo e a esposa e escritora Antonieta Rivas Mercado suicidou-se com a arma de Vasconcellos. Ele voltou, então, a um catolicismo de lembranças maternas. Era muito difícil suportar o convívio com o “profeta solitário” e “Cristo caído” que era, então, José Vasconcelos, segundo a escritora. Vasconcelos já vinha de um outro casamento em que tinha deixado de viver com a mulher para dar aulas junto da amante no Peru, mas a amante deixou-o e foi viver em New York com um de seus amigos, o que foi enorme baque trágico para Vasconcelos.

Como católico, assumiu em 1930 a Universidade de Sonora, mas ao dar opiniões políticas, terminou demitido. Retornou, Igualmente, ao exílio, e, em meio à depressão e angústia, encontrou um ex-inimigo reacionário e conciliou-se com ele, o que para os antigos vasconcelistas foi uma vergonha.

De volta ao México somente em 1938, novamente católico depois do suicídio da esposa Antonieta em plena igreja Notre Dame, estando muito contra a extrema-esquerda, Vasconcellos aproximou-se da Alemanha nazista e fundou a revista Timón, que produziu alguns números onde defendeu vigorosamente suas ideias a favor da raça cósmica, retomou Nietzsche, etc. Nos seus últimos anos, refugiou-se na mística, visitou Batista, Franco e outros reacionários, mas também Fidel Castro, a quem aconselhou ser duro, pois senão o povo não responderia positivamente, citando sua experiência junto ao presidente Madero.

No final da vida, pode-se ver que descobriu uma simpatia grande no brasileiro Érico Veríssimo, “gaúcho de Porto Alegre” que ele menciona como um brasileiro diferente dos demais, pois em geral, comentou ele, os brasileiros que conheceu sentiam-se desdenhosos e superiores diante dos problemas mexicanos, mas Veríssimo dizia ter sangue índio e sentia-se mexicano, logo após pisar o solo do país. Vasconcelos cita-o várias vezes em vídeos disponíveis no youtube. Homem tocado por absoluto, uma palavra pode definir bem esse homem de múltiplos talentos: a palavra grandeza.

 

Bibliografia:

 

SILVA. Ascenso João Gabriel da. A redenção cósmica do mestiço: nversão semântica do conceito de raça na Raza cósmica de José Vasconcelos. Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 26, nº 52, p. 294-315, julho-dezembro de 2013.

 

Videografia:

 

Charlas Mexicanas com José Vasconcelos <<https://www.youtube.com/watch?v=Hmhq1bcnrKM&ab_channel=AndrosE.R.Aguilera>>.

 

La Pasion de Vasconcelos. <<https://www.youtube.com/watch?v=fubakzN00AM&ab_channel=Cl%C3%Ado>>

 

O Banquete, Obra Inacabada de Mário de Andrade

 

O Banquete, Obra Inacabada de Mário de Andrade

 

            Esse texto de Mário de Andrade foi escrito por volta de 1943, quando Mário de Andrade escrevia crônicas musicais na Folha da Manhã. O texto foi elaborado em forma de diálogos, de forma a poder adaptar-se à publicação semanal. Trata-se de dez capítulos onde dialogam cinco personagens. Tratam de música, arte e criação na sociedade brasileira. O texto “Arte Inglesa” foi publicado no Baile de Quatro Artes. As crônicas com frequência preocupam-se com o passado, mas também enfocam o folclore, a criação musical brasileira, debatem Debussy, mas também os cantadores.

            O Banquete, escrito deixado inacabado por Mário de Andrade, publicado posteriormente por sugestão de Gilda de Mello e Sousa, tem fluência e humor que o associam ao escrito platônico. Mas, antes de mais nada, reflete as preocupações de Mário de Andrade com as questões que a música grega levantou sobre psicologia e forma, assim como a arte como terapia, a função social do artista, etc.. Mário estava, então, preocupado com a relação entre a música e a sociedade. A situação global é a mesma do banquete grego, um espaço onde os convivas, num jantar luxuoso, debatem sempre um assunto preciso, num determinado momento, o amor, em outro, a música.

            Mário de Andrade, nessa época, aos vinte anos da Semana (1942), fez uma autocrítica sobre a Semana de Arte Moderna. Em suma, ele julgou que deveria ter “pegado a máscara do tempo e esbofeteado com ela merece”. Ao pensar, nos anos 40, sobre a função social do artista e da arte, concluiu amargamente que apenas destruiu velhos valores consagrados burgueses, mas construiu outros, burgueses também. Sua arte não foi proletária, não atingiu as multidões, nem foi capaz de mover as massas. Quando Mário começa a refletir sobre isso, associa sempre o tema do artista como alguém que tem que sacrificar-se, fazer uma arte empenhada, empenhado no sentido de transitória, capaz de interferir no momento.

            Os personagens representam tipos sociais: a judia Sarah Light, nascida em New York, que gosta do salada, “sem cheiro”. Mário dizia que estava “longe de não gostar dos judeus”, apesar disso. Sarah representa os milionários estrangeiros e ricaços que deram as costas aos modernistas, mais do que famílias como os Prado e dona Olívia Penteado (uma das patrocinadoras da Semana de Arte Moderna que faz 100 anos esse ano). Outro “vilão” é o Felix de Cima, político da classe dominante e amante da boa mesa e da farra com mulheres, podendo ser associado ao gigante Piaimã de Macunaíma.

            O flerte com a arte engajada é bastante evidente no personagem do compositor Janjão, personagem que encarna valores positivos em O Banquete e que escreve Escherzo Antifascista e Sinfonia do Trabalho, com simpatias com uma arte proletária na qual ressoam influências comunistas, das quais Mário de Andrade, ao contrário de Oswald de Andrade, estava distante até então. Nisso, Janjão combina com a cantora Siomara Ponga. A ideia de Janjão e Siomara é sempre em torno de construir uma arte que seja irrecuperável pelas classes dominantes, uma arte que mude o mundo e não seja somente para o prazer. Pode-se izer que Mário, na obra O Café esteve mais próximo das concepções de Janjão e Siomara. A cantora (inspirada na cantora  a certa altura diz: “O fazer bem e certinho lhe sossegava uma consciência fácil, o conformismo domesticado, subserviência às classes dominantes” (ANDRADE, 1977, p. 26). Esse tipo de arte que não causa mal estar na sociedade é chamada por Janjão como apenas renovador de valores burgueses, arte para dar prazer para burguês, “capitalismo”. Ele estimula Pastor Fido a ir além e critica o Prefácio Interessantíssimo do próprio Mário de Andrade como sendo apologia desse tipo de arte. Para Janjão, é preciso fazer diferente, fazer uma arte, no seguinte sentido: “No sentido de conter germes destruidores e intoxicadores, que malestarizem a vida ambiente e ajudem a botar por terra as formas gastas da sociedade” (ANDRADE, 1977, p. 33.)

 O estudante Pastor Fido também apoia as concepções de Janjão e Siomara contra Felix de Cima e Sarah Light, tidos como “os dominantes”. Por fim, Pastor Fido destina-se ao jornalismo e cede aos encantos gostosos de Sarah Light.

O personagem de Janjão é inspirado em Carlos Gomes, artista até então não valorizado pelos modernistas. Mário aponta em Carlos Gomes um artista que vendeu a alma ao diabo, ao abandonar as inovações de Fosca, que iam além da ópera italiana de seu tempo, agregando a influência de Wagner e as soluções de Carmen de Bizet, experimentação que deixou de lado em prol de algo mais palatável ao público em Salvator Rosa, numa volta à italianidade com a qual fez sucesso na própria Itália com O Guarani. Siomara Ponga, por vezes, parece inspirada numa cantora da época, Helsie Huston, que fez muito pela música brasileira. Em outras, Siomara é Mário, quando, por exemplo, o tema é o debate sobre a pintura O Homem Amarelo, debate ocorrido com a autora Anita Malfatti, que parece esboçar um episódio autobiográfico realmente ocorrido próximo ao período da Semana de Arte Moderna: ao ver o quadro, Mário riu, foi repreendido pela autora, ao que dedicou a ele um poema...um soneto!

Janjão é um músico rebelde que frequenta os salões da classe dominante falando em arte proletária, fazendo suspirar as grã-finas com suas composições, criando a ponte entre Vicente Celestino e Mozart. Essas simpatias à esquerda nunca ficaram tão evidentes nas produções de Mário de Andrade anteriormente quanto estão em O Banquete.

A obra O Banquete, em parte publicada no jornal Folha da Manhã como um folhetim, foi reunida em livro no ano de 1977 pela editora Duas Cidades e elogiada como um dos grandes momentos da meditação estética brasileira.

 

Bibliografia: ANDRADE, Mário. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

 

            Esse texto de Mário de Andrade foi escrito por volta de 1943, quando Mário de Andrade escrevia crônicas musicais na Folha da Manhã. O texto foi elaborado em forma de diálogos, de forma a poder adaptar-se à publicação semanal. Trata-se de dez capítulos onde dialogam cinco personagens. Tratam de música, arte e criação na sociedade brasileira. O texto “Arte Inglesa” foi publicado no Baile de Quatro Artes. As crônicas com frequência preocupam-se com o passado, mas também enfocam o folclore, a criação musical brasileira, debatem Debussy, mas também os cantadores.

            O Banquete, escrito deixado inacabado por Mário de Andrade, publicado posteriormente por sugestão de Gilda de Mello e Sousa, tem fluência e humor que o associam ao escrito platônico. Mas, antes de mais nada, reflete as preocupações de Mário de Andrade com as questões que a música grega levantou sobre psicologia e forma, assim como a arte como terapia, a função social do artista, etc.. Mário estava, então, preocupado com a relação entre a música e a sociedade. A situação global é a mesma do banquete grego, um espaço onde os convivas, num jantar luxuoso, debatem sempre um assunto preciso, num determinado momento, o amor, em outro, a música.

            Mário de Andrade, nessa época, aos vinte anos da Semana (1942), fez uma autocrítica sobre a Semana de Arte Moderna. Em suma, ele julgou que deveria ter “pegado a máscara do tempo e esbofeteado com ela merece”. Ao pensar, nos anos 40, sobre a função social do artista e da arte, concluiu amargamente que apenas destruiu velhos valores consagrados burgueses, mas construiu outros, burgueses também. Sua arte não foi proletária, não atingiu as multidões, nem foi capaz de mover as massas. Quando Mário começa a refletir sobre isso, associa sempre o tema do artista como alguém que tem que sacrificar-se, fazer uma arte empenhada, empenhado no sentido de transitória, capaz de interferir no momento.

            Os personagens representam tipos sociais: a judia Sarah Light, nascida em New York, que gosta do salada, “sem cheiro”. Mário dizia que estava “longe de não gostar dos judeus”, apesar disso. Sarah representa os milionários estrangeiros e ricaços que deram as costas aos modernistas, mais do que famílias como os Prado e dona Olívia Penteado (uma das patrocinadoras da Semana de Arte Moderna que faz 100 anos esse ano). Outro “vilão” é o Felix de Cima, político da classe dominante e amante da boa mesa e da farra com mulheres, podendo ser associado ao gigante Piaimã de Macunaíma.

            O flerte com a arte engajada é bastante evidente no personagem do compositor Janjão, personagem que encarna valores positivos em O Banquete e que escreve Escherzo Antifascista e Sinfonia do Trabalho, com simpatias com uma arte proletária na qual ressoam influências comunistas, das quais Mário de Andrade, ao contrário de Oswald de Andrade, estava distante até então. Nisso, Janjão combina com a cantora Siomara Ponga. A ideia de Janjão e Siomara é sempre em torno de construir uma arte que seja irrecuperável pelas classes dominantes, uma arte que mude o mundo e não seja somente para o prazer. Pode-se izer que Mário, na obra O Café esteve mais próximo das concepções de Janjão e Siomara. A cantora (inspirada na cantora  a certa altura diz: “O fazer bem e certinho lhe sossegava uma consciência fácil, o conformismo domesticado, subserviência às classes dominantes” (ANDRADE, 1977, p. 26). Esse tipo de arte que não causa mal estar na sociedade é chamada por Janjão como apenas renovador de valores burgueses, arte para dar prazer para burguês, “capitalismo”. Ele estimula Pastor Fido a ir além e critica o Prefácio Interessantíssimo do próprio Mário de Andrade como sendo apologia desse tipo de arte. Para Janjão, é preciso fazer diferente, fazer uma arte, no seguinte sentido: “No sentido de conter germes destruidores e intoxicadores, que malestarizem a vida ambiente e ajudem a botar por terra as formas gastas da sociedade” (ANDRADE, 1977, p. 33.)

 O estudante Pastor Fido também apoia as concepções de Janjão e Siomara contra Felix de Cima e Sarah Light, tidos como “os dominantes”. Por fim, Pastor Fido destina-se ao jornalismo e cede aos encantos gostosos de Sarah Light.

O personagem de Janjão é inspirado em Carlos Gomes, artista até então não valorizado pelos modernistas. Mário aponta em Carlos Gomes um artista que vendeu a alma ao diabo, ao abandonar as inovações de Fosca, que iam além da ópera italiana de seu tempo, agregando a influência de Wagner e as soluções de Carmen de Bizet, experimentação que deixou de lado em prol de algo mais palatável ao público em Salvator Rosa, numa volta à italianidade com a qual fez sucesso na própria Itália com O Guarani. Siomara Ponga, por vezes, parece inspirada numa cantora da época, Helsie Huston, que fez muito pela música brasileira. Em outras, Siomara é Mário, quando, por exemplo, o tema é o debate sobre a pintura O Homem Amarelo, debate ocorrido com a autora Anita Malfatti, que parece esboçar um episódio autobiográfico realmente ocorrido próximo ao período da Semana de Arte Moderna: ao ver o quadro, Mário riu, foi repreendido pela autora, ao que dedicou a ele um poema...um soneto!

Janjão é um músico rebelde que frequenta os salões da classe dominante falando em arte proletária, fazendo suspirar as grã-finas com suas composições, criando a ponte entre Vicente Celestino e Mozart. Essas simpatias à esquerda nunca ficaram tão evidentes nas produções de Mário de Andrade anteriormente quanto estão em O Banquete.

A obra O Banquete, em parte publicada no jornal Folha da Manhã como um folhetim, foi reunida em livro no ano de 1977 pela editora Duas Cidades e elogiada como um dos grandes momentos da meditação estética brasileira.

 

Bibliografia: ANDRADE, Mário. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977.