por Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Esse artigo analisa o romance Cabeça de Negro, de Paulo Francis, buscando um outro olhar a respeito dele: nós o analisamos como introdutor do personagem neoconservador na literatura brasileira. Buscou-se ressaltar as contradições ocultas em seu discurso, assim como a fala dos personagens da esquerda, em especial dois (Álvaro e Renata), que simbolizaram, de acordo com nossa leitura, as principais forças políticas de esquerda dos anos 60 e 70, os pacifistas do PCB e os dissidentes da guerrilha. Dentro do romance, Álvaro e Renata seriam pólos a partir dos quais o romance poderia ser melhor entendido.
1. Introdução
O romance Cabeça de Negro completa em 2009 trinta anos de seu lançamento. Ele se inicia com um crime, a morte de um marginal negro numa residência de classe média no Rio de Janeiro. Não se trata, supomos, de um romance policial nem político e sim de um romance de idéias. O romance analisado aqui é parte de um ciclo de romances que Francis escreveu e que foi iniciado em 1976 com Cabeça de Papel.
Logo de cara, quebra-se o possível suspense que um thriller policial exigiria: Sílvia, elitizada esposa do industrial Maneco, mata o marginal, cujo corpo fica na sala. O oponente de Hugo e Sílvia é vencido logo de início. Abre-se, então, espaço para extensos debates sobre idéias em geral, mas principalmente sexo, gastronomia, política nacional e internacional, literatura e história. Hugo, o narrador, focaliza as falas dos demais personagens conforme seu interesse: Álvaro propõe, com lucidez, politizar os marginais como o Cabeça de Negro, mas sua fala é soterrada pelo discurso negativo de Hugo. Igualmente, Renata é levada a concluir que não é possível uma revolução numa sociedade industrializada.
Hugo, embora articulado e inteligente, é uma máscara cruel de um certo tipo de jornalista: é racista, não paga impostos, vende favores para um empresário chamado Brucutu, serve de papagaio para banqueiros amigos, fecha-se num elitismo arrogante que destrói os argumentos dos participantes de seu círculo social. É de se supor que abandonará esse círculo onde está cada vez mais conhecido como um niilista “pedante, arrogante, estúpido”.
Há uma grande ambição de totalidade na narrativa onde Hugo Mann é ao mesmo tempo quase onipresente personagem e narrador. Há um clima geral de conspiração: qualquer um pode ser um agente da CIA ou da KGB disfarçado, assim como do regime militar. No romance policial tradicional, o debate político é posto em segundo plano e a solução do mistério ganha relevo. Ocorre, no romance que estamos estudando, justamente o inverso: a parte especificamente policial torna-se residual.
Mann nunca foi um militante esquerdista, apenas um empregado de jornais reacionários e sem maior expressão de Paulo Hesse, amigo muito próximo de Mann e ex-marido de Sílvia. No entanto, a morte de Hesse, ocorrida no primeiro romance do qual esse “Cabeça” é uma continuação, transformou Mann em alguém cruel. Ele passa a poder seduzir Sílvia, mas não o faz. Ele termina sem possuí-la: ela é um objeto de desejo inatingível: está em outro campo do espectro político e está casada com Maneco, empresário ligado ao regime militar e que faz jogo duplo.
2. Romance político: introduzindo o neocon na literatura brasileira
Suponho que esse romance, ao debater e descartar as idéias do PCB reformistas e de suas dissidências que pregavam a luta armada, funciona como um acerto de contas de um certo tipo de jornalista com a esquerda, com quem teve de se aliar no período militar. Os personagens de esquerda terminam muito mal: Renata, a politizada e refinada estudante de Medicina simpatizante da guerrilha suicidou-se e Álvaro, comunista culto e tolerante, vendeu-se ao regime. Embora tenha se compadecido do sofrimento de ambos, anteriormente, à altura da morte de Renata, rompeu com os dois. O jornalista encerra a narrativa caminhando para uma terceira posição, que supomos que é a neoconservadora.
O principal conflito fica aqui esboçado, igualmente: como fará a classe média que combateu o regime militar para conter a massa de miseráveis que a modernização do Brasil criou? Hugo nunca dá uma resposta, mas através de suas falas fica implícito que é através de uma maior repressão. Hugo, supomos, é o personagem do traidor da esquerda, o neoconservador, introduzido através desse romance na literatura brasileira. Não se trata de um desertor comum, mas de um ideólogo da deserção.
A visão de mundo de Hugo Mann era tão irreal em 1979 que ficou a impressão, para um ensaísta como José Onofre (1), de que o texto deixava em aberto se Hugo Mann delirava ou se sua visão de mundo de Paulo Francis era aquela mesmo. Ora, a ficção trata de mundos possíveis. Descartada a hipótese de que Cabeça de Negro seja um romance policial, não se deve chamá-lo de romance político, uma vez que a visão preponderante no texto é justamente contra a ação política. Hugo e Sílvia são os únicos personagens que possuem conteúdos positivos investidos: Hugo é inteligente e crítico, Sílvia é bonita, politizada e da alta classe. O “Cabeça de Negro”, marginal sem nome, é símbolo das massas despolitizadas, hordas de criminosos desorganizados prestes a destruir a burguesia irracionalmente, assim como hordas de bárbaros puseram abaixo o Império Romano.
O discurso sobre as chegada iminente das hordas é um discurso da nova direita, um discurso de neoconservadores. Um neocon é basicamente um traidor da esquerda. Nos EUA, foram originalmente um grupo reunido em torno dos intelectuais Kagan e Kristol e que advogava que tudo o que é bom para os EUA é bom para o mundo. Esses ex-trotsquistas praticaram um ativo anticomunismo, discurso com conteúdo moral religioso e postura unilateral na política externa. Para os neocons, o passado é exemplo histórico da boa sociedade, mas eles também prometem um futuro melhor com a hegemonia mundial norte-americana.
Permeado dessa ideologia, então novidade nos EUA, uma vez que de fato articulada e melhor divulgada a partir da saída desses intelectuais democratas da campanha de McGovern em 1972, o romance de Francis pretende-se diferente da “literatura brasileira”, uma literatura onde “contam-se os dedos dos pés das pessoas”, ou seja, uma literatura de minúcia detalhista com a qual a narrativa estaria rompendo. Ele advoga a normalidade de uma vida burguesa marcada apenas pela prática da caridade despolitizada, por um lado, enquanto por outro alerta para a necessidade de reprimir as massas marginalizadas, os “cabeças de negro” que podem destruir a civilização da Zona Sul e que devem, deixa então Hugo subentendido, ser reprimidos. Supomos que Cabeça de Negro é o primeiro romance da literatura brasileira a ter um personagem que traiu a esquerda e aderiu ao neoconservadorismo, então uma novidade recente: Hugo Mann.
Para o neocon aclimatado no Brasil, a questão social é caso de polícia. Hugo já é um neoconservador, já rompeu com a esquerda intimamente, mas ainda preserva amizades nesse círculo social – mas a ruptura e a passagem para a militância no outro lado é apenas questão de tempo: ele adverte várias vezes contra o estatismo dos “autênticos” do PMDB, dentre outras forças que considera nefastas, tais como os trotsquistas Juca e Mário. Quando lhe perguntam se prefere a inação, responde que sim, alegando preferir que a esquerda não aja do que pratique “amadorismo trapalhão”. Esse é o cerne da ideologia da não-ação que Mann alegremente prescreve. Ele destoa, por ser portador de uma ideologia diferente, dos personagens reacionários à moda antiga tais como Cruz e Dr. Agamenon, direitistas ligados ao catolicismo conservador e a Plínio Salgado: Mann não é católico nem nacionalista, sua simpatia está com os norte-americanos.
Os alvos preferenciais de Hugo, durante o romance, representam as forças políticas do espectro onde o jornalista se movimenta. O romance se encerra justamente com o conflito entre Álvaro e Renata: para poder voltar ao Brasil e se reinstalar, o comunista dedurou a esquerda guerrilheira, auge da tensão, bem maior, aliás, do que o assassinato do marginal “Cabeça de Negro”, símbolo das massas despolitizadas. A morte do pobre é recebida com frieza e piada por Hugo Mann, mas a morte da bela intelectual ligada à guerrilha o faz rebelar-se contra Álvaro, o delator, a quem surra, e matar Maneco, cínico industrial e personagem que, ligado ao poder, manipula a todos a seu redor. Ele é o traidor e o grande vilão do romance, mas termina assassinado por Hugo Mann. Posteriormente, no livro que deixou inédito, Carne Viva, Francis focalizou justamente a vida de um grande industrial, um
banqueiro.
por Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
3. O romance: uma construção com andaimes
O tempo da narrativa é 1978, conforme uma passagem onde, debatendo com o jovem filho de Sílvia, Pedrinho, Hugo comenta que no rapaz de dezoito anos eram visíveis os efeitos negativos sobre a juventude que exerceram quatorze anos de ditadura, tais como a amoralidade e a ignorância cultural.
Numa dada altura do romance, de ressaca, Hugo Mann acorda com ajuda de Juca (o erudito médico Joseph Hansen), figura que inicialmente parece reacionária (contou que chegou a escutar discursos anti-semitas de Plínio Salgado), mas que depois, ao final do romance, revela-se um trotsquista. E, acordando, Juca cita um texto teórico de Hugo:
"Não é possível deixar de ser irônico e fragmentário observando a sociedade atual, em que as personagens apenas repetem mecanicamente rituais que perderam toda a credibilidade. A mímica elaborada de desastres dos comediantes do cinema mudo, hoje, tornou-se quase naturalismo (2)."
A passagem acima pode ser tomada para interpretar a própria narrativa da qual esse fragmento faz parte. Os personagens debatem sobre a revolução socialista, criticam a censura e o regime militar, mas o narrador Hugo Mann retira sistematicamente toda a credibilidade e sentido que poderiam ter esses discursos, tirando-os de foco intencionalmente, não os inserindo em seu contexto, tendo um resultado desastroso. Filtrados pelo niilismo de Hugo Mann, personagens como Álvaro e Renata são praticamente emudecidos. Quando dizem diálogos entrecortados, é apenas para que o jornalista Mann edite seus discursos de maneira a dizer que são fracos fazendo mímica e dar-lhes crédito será desastroso. Mann compadeceu-se de Renata quando ela se suicidou, mas também atacou duramente suas opções políticas, que chamou de "terroristas", palavra que também usava o regime militar para designar os que estavam em luta armada, inúmeras vezes.
A maioria dos personagens, até mesmo o protagonista Hugo Mann, é investido de conteúdos negativos e suas falas são direcionadas pelo narrador Hugo a confirmar isso. Existem, no entanto, brechas que sinalizam em outro sentido.
Um exemplo: o filho de Sílvia, Pedrinho, é sempre investido de conteúdos negativos: logo de início pratica incesto com a mãe, Sílvia, é amoral, arquiteto com diploma comprado e sem talento, cheirador contumaz de cocaína. No entanto, num raro momento onde a voz imperativa de Hugo dá lugar às falas dos personagens, podemos escutar a voz de um jovem que entendeu perfeitamente, em seu estilo coloquial e cheio de gírias, a crítica ácida e o preconceito lingüístico de Mann:
"-- Não começa a complicar o papo que te beijo na boca e você fica todo envergonhado. Não sou intelectual, huguenote, mas manjo tua técnica. Alguém fala um troço, tu começa a decompor frase por frase, palavra por palavra, e tudo que o outro disse vira besteira (...). Pô, tu tá rindo de mim.
-- Não, pelo contrário. É muito inteligente essa tua análise de Maria e Maneco. "Podes crer". Palavra. Estou rindo de pena do Aurélio Buarque de Holanda.
-- Pô, tu tem pena de dicionário, de livro? Huguenote, qual é o teu barato? Tu tá escondendo aí um pó melhor do que esse (3)."
Hugo Mann mostra-se, em contradição com a própria narrativa que orquestra, que também é altamente coloquial e repleta de gírias, contendo também muitas construções em português não-padrão. Conservador diante do jovem com suas gírias, o narrador Hugo Mann também se desvia muito da chamada "norma culta" dos textos de Aurélio Buarque de Holanda.
Embora o romance se aproxime da abordagem naturalista, o narrador não segue os padrões do século XIX. Com freqüência a narrativa volta-se para si mesma, fazendo interrogações sobre seus aspectos mais obscuros e que causam maior estranheza, como o fato bizarro de existirem duas personagens com nome de Ângela, a 1 e a 2 (algo digno de Kafka):
"-- Qué isso? Estou falando de mim, a "saudável". Sei que análise ajuda gente como a Ângela, que é horrível vocês chamarem de "1", entre parênteses. "Parece troço de vegetal (4)."
Sendo assim, o próprio narrador parece ter consciência do efeito de absurdo que essa forma de dar nome aos personagens e procura amenizá-la referindo-se a seu processo de maneira explicativa.
O narrador Hugo Mann se refere pejorativamente à própria literatura brasileira. Embora seja algo como um "Malraux nietzschiano do Grajaú", como ele se queixa que a crítica o denominou, (ou seja, é um alguém que debate política e ideologia tendo como referência o pessimismo trágico) ele não aceita a definição. Mann ataca a esquerda, mas confraterniza a corrupção brasileira que critica. Sintomática é a atitude que tomou Mann diante da empregada Marlene, que, distraída em namorar, teria facilitado a entrada do marginal na casa de Sílvia: no final da narrativa, é o próprio Hugo que se envolve e deseja sexualmente a empregada doméstica de Sílvia. E justo de Sílvia, sua amada e que afirmou, em dado momento, que a esquerda precisava agir para "balançar essa senzala" (agitar o Brasil). Embora da "Casa Grande", o jornalista Hugo também ama ativamente na "senzala". Só deseja mudanças efetivas, deseja anular a esquerda; no mais, tudo bem que tudo fique como está.
Com o fim da Guerra Fria e a superação histórica da esquerda com a qual Hugo Mann troca sarcasmos, a parte mais viva e curiosa do romance nos pareceu justamente que ele deixa passagens irônicas, excrescências, passagens non sense. A referência da citação, que poderia ser a canção da Jovem Guarda, seria um romance de 67 sobre a luta armada:
"Jogo-a de lado. Igual a essa como 300 por dia, de sobremesa. Avanço. Espera, não, isso é Pessach: a Travessia, do Cony. Nada de plágios. Vago. Epa, epa, Editora Abril. "Realidade" no tempo da gente boa (5)."
Com freqüência, as frases de Hugo Mann lhe saem assim, barrocas, mesmo quando o estilo é modernista e telegráfico: são um pout-pourri incontrolável de referências e informações sobre as quais o próprio protagonista não parece ter todo o controle.
4. Conclusão
Cabeça de Negro é, concluímos, um romance de idéias que prescreve a inação para a esquerda, introduzindo o personagem do neoconservador na literatura brasileira na figura de um ambivalente jornalista chamado Hugo Mann. Esse é o seu grande mérito, prefigurando um tipo de discurso e de figura que se tornaria hegemônica no Brasil dos anos 90, dando, portanto, uma contribuição para que se possa compreender e combater melhor o perfil do profissional que trai a esquerda. Julgamos curiosas, também, algumas passagens onde o autor faz metalinguagem e deixa contradições ou elementos que não são claros, é o que resta de mais vivo no romance.
5. Notas e Referências
1. ONOFRE, José. As duas cabeças dos romances de Francis. Porto Alegre: Revista Oitenta, 1979.
2. FRANCIS. Paulo. Cabeça de Negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, p. 91
3.. Op. Cit. p. 175
4..Op. Cit. p. 123.
5. Op. Cit. p. 196.