Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
Alma Uai
http://almauai.blogspot.com/
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
Senso Crítico
http://sensoura.blogspot.com/2008/01/blog-do-jm-comea-mal.html
terça-feira, 29 de janeiro de 2008
Abertura no Repolho
No mais, beijos, esteve jóia. O negativo marca mais, é ele que faz isto conosco, mais do que os sebos e traças.
http://queroserumrepolho.blogspot.com/
Extraterrestres em Riolândia: Imagens no Youtube
Enquanto eles não aparecem, são nosso desejo de contato com o sagrado; quando aparecerem, serão como a descoberta da América. Precisaremos de Montaignes para escrever Os Canibais do Futuro!
http://rotaimpopular.com/2008/01/24/turismo-extraterrestre/
Fora de Moda (Uma Letra da Horta)
As referências musicais de Fora da Moda podem ser encontradas nos anos 70 (Deep Purple, AC/DC, por exemplo). Estão fora de moda, diria um crítico apressado; no entanto, estão atuais num tempo onde não há uma moda tão clara e imperativa como no tempo dos hippies e dos punks.
Não quero fazer o que você faz
Só por costume de fazer
Não vou me vestir como você se veste
Porque não quero ser igual
Não vou repetir palavras tão comuns
Que só nos fazem estagnar
Não quero proclamar sentenças afetadas
Que não procuram procurar
O interessante está fora da moda
E subverte o que é comum
Sentado em sua sala cheio de incredulidades
Procura o que é o natural
Não posso entender como você consegue
Gostar de ser igual a todos
Como um objeto com vários modelos
Utilidades e acessórios
Na verdade você não é você em muitas coisas
Na verdade você não é você em quase nada
Tente esquecer o que os outros ditam
E mergulhar dentro de si
Ao encontrar caminhos inimagináveis
Seja escolha
Seja livre
Seja poucos
Não quero fazer o que você faz
Só por costume de fazer...
Não vou me render a tudo que é aceito
Por ser mais cômodo...
Eu aprecio o idiossincrático
E admiro o original
Me relaciono com as nuances do tempo
Por causa da verdade
Tente esquecer o que os outros ditam
E mergulhar dentro de si
Ao encontrar caminhos inimagináveis
Seja escolha
Seja livre
Seja louco
Mái Jânqui Blóguis: Hemoglobina 9
Escrevo sobre a banda Junkie Dogs pensando diferente do que eles próprios se definem em seu perfil no MySpace (http://www.myspace.com/thejunkiedogs). Eles se dizem “just another new band”, ou seja, só uma nova banda qualquer, no entanto, eles contam com uma densidade poética visível em suas letras, ainda que a maioria seja escrita
O nome da banda remete, por sua vez, a William Burroughs, autor de Junkie e Almoço Nu, escritor tido como inspirador da contracultura e do rock dos anos 60
as horas passam
os homens passam
as tardes caem
enfim
acabou
o século vinte
se apenas conseguisse comunicar sentimentos sem a lógica dos sentidos como quem ressuscita da semente para dizer adeus e caminhar na tempestade tentativa de atrasar um minuto perdido sonhando com os mitos elementares que ocupam o imaginário das cidades delirantes de tragédias anunciadas e sangue de juventude esgotada sem o princípio de uma nova vida em pleno inverno de pequenos objetos que consomem todo o nosso afeto e distraem direções de olhares para dramas em lâmpadas de querosene comburentes de noites inteiras na sua chama amarela onde vejo minha alma extinta nos braços de um amor que olha para mim e ri como se soubesse que sou cruel e verdadeiro e sempre o mesmo para além do sol que chicoteia meu crânio nas marcas de unha do chão que ficou para trás porque sei que a imagem colossal do mundo povoado pelo homem se baseia em meu reflexo estampado na superfície do espelho apavorado pela existência que contempla a si mesma eternamente até mesmo quando olha outra pessoa e vê o próprio olho nas descobertas retidas pelas mágoas do olhar de quem não mais o ama
(declamado com vigor e demência)
para os olhos
movimentos circulares no sentido horário
para o pescoço
movimentos circulares descendentes
no sentido anti-horário
(urro primal)
ah
segunda-feira, 28 de janeiro de 2008
Lição-Poema
Fritz paga: onde você estava?
Cento e vinte marcos
Coma!
os ponteiros
Tomarás sopa.
É um bom programa.
Espere o rio
Uma viagem: todos verificam
a tempestade no copo.
Tem trovejado.
Eu tenho tudo.
Atravessa o espelho.
De ônibus
para toda parte
com sua casa
Á sua saúde,
As tardes ficaram frescas.
Cavalgar as folhas...
Formidável! O aeroporto tornou-se professor.
No outono
A pergunta vende as passagens.
No fim
Na cidade
Ficou escuro
o minuto
A coisa não nos escreveu.
Os cruzamentos se sentam em cadeiras numeradas
Já está chovendo.
É um dia ensolarado.
Dobra à esquerda nas montanhas.
Elegia para Júlio
O cadáver que você plantou no ano passado no seu jardim
Já começou a brotar?
Dará flores este ano?
O papa Bento XVI faz "Heil Hitler!" numa fotografia
Protestos no Afeganistão, 16 mortos
Há resistência no Iraque
O terceiro mundo explodindo
Sem anões, sem Rogério Sganzerla
O bandido da luz vermelha está na Cidade de Deus
O cadáver, o seu cadáver
Plantamos não no jardim
Nem brotou
Não deu flores este ano
Suas blusas e camisetas continuam penduradas, erguidas
Pérfidas sem você
Penduradas em cabides secretos,
Ocultas como árvores doídas.
Vovó sofre com ferrolhos no braço.
São Paulo, angústia no metrô das seis da tarde,
Sua sombra, Júlio, seu silêncio no fundo da sala
Gozado distanciamento entre o som & o sentido.
Olhei para trás e não te vi mais, fantasma construtor de igrejas.
Quanto custa para mim lhe gritar.
Neste túmulo de Deus, lhe envio sua neta.
Dirijo a você palavras mudas,
Ana & Efigênia dizem que deviam muito a você,
Mas que não poderão pagar, pai do pai do Espírito Santo.
Pomba abatida, cabelos brancos com terra agora, nenhum cão para te desenterrar, não.
Banda Horta
http://www.myspace.com/bandahortabh
Abraços do Lúcio Jr.
Banda Horta
http://www.myspace.com/bandahortabh
Blog da banda:
http://bandahorta.blogspot.com/
Abraços do Lúcio Jr.
Banda Horta
Convido a todos para MEGA SHOW da minha banda, que
acontecerá no Garage D' Caza, um pub de rock muito
bacana, no dia 10 de fevereiro, para curar (ou piorar)
a ressaca de carnaval!
O Garage D' Caza é um pub já com nove anos de
existência, lugar muito aconchegante, e se localiza na
Alameda do Ingá 121, Vale do Sereno, na região do Seis
Pistas, atrás do BH Shopping. A entrada é 6,00 reais,
o horário do show é 20:30 hs e o site do garage, para
quem quiser mais informações é
www.garagedcazapub.cjb.net.
Aproveito para convidar todos os meus amigos para
entrarem na comunidade da Banda Horta no Orkut, para
dar uma força pra banda. Ela está na minha lista de
amigos.
Um grande abraço e espero ver vocês no show!
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
Blog de Stanley Fish
Blog do crítico literário Stanley Fish no New York Times.
Júlio Daio Borges no Estadão Já!
terça-feira, 22 de janeiro de 2008
João Evangelista Rodrigues: Um Poeta da Via Láxia
João é poeta na linha de Drummond, mas não é prosador da linha de Pedro Nava e sim na de Fernando Sabino. Faz crônicas leves, mundanas, quase fúteis, como a que escreveu no Digestivo Cultural recente (www.digestivocultural.com.br). Embora não escreva na grande imprensa, João, jornalista, poeta e filósofo, tinha capacidade para tal (afinal, tem sete talentos...)
Quando o conheci, ele queria que eu fizesse um prefácio para seu livro de poemas dedicado a Arcos. Eu não fiz, pois ele já tinha encomendado um prefácio a Anelito de Oliveira (que acabou saindo como posfácio) onde ele o comparava a Marcelo Dolabela e classificava como "poeta da falação". Achei deselegante desbancar o então amigo Anelito e isso quase me custou a amizade de João Evangelista, que foi muito frio comigo quando do lançamento do livro.
Depois, para agradar João, fiz uma resenha do livro no Jornal Plenário, depois, resenha que perdi, senão reproduziria aqui. São João Evangelista não gostou muito, pois o título da resenha era "A Oeste do Contemporâneo". São João Evangelista, para tanto, soltou os dragões e, em seus textos a seguir, escreveu me respondendo indiretamente, citando Octavio Paz, poeta de posição política neoliberal que estava muito em moda, junto com Vargas Lhosa, nos anos 90.
Tempos depois, quando aviões se suicidavam destruindo torres gêmeas no Norte, nos reconciliamos e conversamos sobre Pedro Moraleida, artista plástico suicida e filho de jornalista.
João mostrava, como professor e coordenador, alguns leves traços de doidice, tais como ficar me explicando e justificando as reivindicações dos alunos ou cantar, improvisando, a partir das palavras que dizia o meu coordenador.
Grupo de Vivências Vidya Shanti
Coordenação :Cibele Oliveira
(Psicóloga e Cantoterapeuta)
Vidya, em sânscrito, quer dizer conhecimento e Shamti, significa paz, isto é, conhecimento de si que leva à paz. Neste grupo você terá a oportunidade de desenvolver-se e harmonizar-se através de princípios e práticas relativas à meditação, relaxamento, exercícios respiratórios e cânticos sagrados. As vivências objetivam o desenvolvimento de uma atitude positiva e integral – física, mental e espiritual - diante da existência, visando realizar todo o potencial criativo que existe dentro de cada indivíduo.
Os encontros serão semanais, às segundas-feiras, de 19:30 às 20:45. Informações e inscrições: 3522 5995, com Cibele Oliveira.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2008
domingo, 20 de janeiro de 2008
A Ante-Sala da Destruição do Mundo ou Adeus a Kundry
Todas as biografias têm sempre uma conclusão. O biografado morre em certas circunstâncias, ficamos sabendo detalhes - dia, hora, local. Trata-se de um consolo.
Mas Kundry não nos deixou estas satisfações. Evaporou-se, nem sua mãe sabe de seu paradeiro. “Kundry” é um nome que aqui eu lhe dou. É mais por gosto em dar nome às coisas e por uma satisfação maligna em usar um signo que não possui referência. Hoje o nome do meu amigo também não possui igualmente referência. Este nome, “Kundry”, é uma pedra lançada num abismo. Tento ouvir o barulho que ela deveria produzir ao atingir outro elemento sólido--mas nada. Não há nada.
Kundry ziguezagueou na vida, foi da Causa Operária ao curso de Filosofia e daí para a Somaterapia - e daí se liquefez. Ou teria ele se sublimado, passando do estado sólido ao gasoso?
Emil Cioran dizia: “Acredito na salvação da humanidade, no futuro do cianureto...” Kundry não. Ele não nos deixou saber de sua morte. Aniquilou a própria vida para além da nossa percepção sensível, talvez através do deslocamento de seu corpo para um ponto qualquer na galáxia, quem sabe.
Amigo? Eu chamei Kundry de meu amigo? Hipocrisia? Paranóia? Claro: eu escarneci de Kundry em sua cruz e lhe ponho agora uma coroa de espinhos-palavras. “Me dê bastante corda e eu mesmo me enforco”, é como diz o ditado...
Quando conheci Kundry, ele viera da PUC-MG há pouco tempo. Era só louco manso como muitos outros. Um dia um louco bravo surtou e, em plena aula de Filosofia Grega, enfiou um cigarro aceso no braço molhado de chuva do Kundry:
“Meu cigarro está aceso, é fogo, seu braço está cheio de água molhada, apaga o fogo.”
Kundry reconsiderou uma justificativa feita assim com uma lógica tão implacável. Vindo de uma universidade católica, aprendera a perdoar estas pequenas loucuras em nome do espírito cristão.
Um dia fizemos juntos um acampamento. Ele sonhava em voltar à natureza e aos bosques, ser um hippy. Tocava violão e lia o livro “Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu.” Kundry ouvia o canto de sereia psicodélica de Roberto Freire. Enquanto eu contava que lia Cruz e Souza, Álvares de Azevedo, Murilo Mendes, Kundry me olhava e dizia, profético:
“Eu não tive, na sua idade, essas leituras. Eu não era isso, sabe?”
Eu sorri sem achar nenhuma graça.
“Verdade!” Continou ele.
Ele repetiu o “verdade” outras vezes. Depois eu sorria como se tivesse recebido um grande elogio. Kundry movia o bispo três casas à frente, era um jogo de xadrez. Ele, que tinha problemas graves com os pais, gostava às vezes de ser paternal e complacente.
Estava, naquela época, procurando um nome para sua banda. Eu sugeri: “Perdi Minha Bruxinha”. Kundry gostou da idéia, anotou. Era uma banda que levava pitadas de jazz, uma colher de rock progressivo e toques de New Age. Kundry explicava sorridente: “Eles sugerem (os demais componentes da banda) que coloquemos na capa de nosso primeiro disco a imagem de um espermatozóide fertilizando um óvulo.”
Tempos depois, reencontro Kundry:
“Os caras não aceitaram o nome Perdi Minha Bruxinha. Eu acho que quem ouvisse o nome ia viajar perguntando que bruxinha seria essa...” Kundry não atingiu o sucesso com a banda “Gen” nem tampouco continuou com a banda. Kundry ia passando de um projeto a outro e deixava todos incompletos.
O que ele deixou são fragmentos. Cacos de uma vida e da busca: nunca me contou que fora da Causa Operária. Não o vi pregando um governo de operários, camponeses e estudantes, mas Kundry tentaria com audácia e destemor o assalto ao céu.
“Precisamos quebrar este esquema aí”, dizia.
Só não sabia como - e acabaria quebrando a cachola. Fundindo a cuca. Kundry não subiu ao Olimpo da cultura de massa; talvez tenha entrado numa cápsula e ido criar uma utopia
Eu e Kundry fizemos teatro juntos. Abortamos uma peça de criação coletiva, uma colcha de retalhos que acabou ficando pelas metades. Fracassado o grupo, cada um seguiu um rumo diferente. Kundry e sua namorada mergulharam de cabeça na terapia anarquista. Eu não tenho ilusões quanto a ser ator. Mas Kundry não conseguiu se concentrar em nada que tentasse fazer. Acabou deixando a moça que o amava ao léu, ao desaparecer só com a roupa do corpo.
Um colega outro dia me propôs um problema: para onde vai o masoquista após a morte? No céu ele não vai pagar seus pecados. Será no inferno? Lá ele iria se divertir, seria o céu para ele. Meu amigo sugeriu que talvez ele fosse para o limbo, onde estariam os sábios gregos que tiveram o azar de ter vivido antes do cristianismo.
Eu quero propor outra solução. Ele vai ficar na ante-sala do fim do mundo. Vai esperar pacientemente milhões de anos até o sol se tornar uma estrela vermelha gigantesca e devorar Mercúrio; a Terra estará tão quente que quaisquer vestígios de presença humana serão derretidos em meio à lava. Os mares irão se evaporar. Milhões de anos se passando e o masoquista impaciente. Só ficará feliz quando o sol se tornar uma estrela anã branca e ir encolhendo. Aí a Terra será somente um mundo gélido e completamente deserto de vida.
Kundry pode ter escolhido ir fazer companhia ao masoquista e ido esperar sentado num quarto nu, uma solitária onde teria acesso somente a uma estante--mas a estante conteria um livro somente--Vênus em Peles, do barão de Sacher-Masoch. Uma solução para um problema...A ante-sala...Da destruição do mundo... Kundry se foi. Apenas se foi.
Reflexões de um "Zé Ninguém" de Reich
segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
Resenha de Ficção, História, Literatura (Luiz Costa Lima)
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
O livro História. Ficção. Literatura (Companhia das Letras, 2006) de Luiz Costa Lima é um texto onde o autor buscou elaborar e aplicar esses três conceitos referidos logo no título. O autor, trabalhando a história e a linguagem sucessivamente, transitou entre esses campos, a bem dizer, por todo o livro. Inicialmente, ocupou-se em aproximar aedos e historiés, que a historiografia habitualmente afastava. Afastou também a inclusão do ficcional no literário, encontrando para ele uma categoria própria e afastando a conceituação medieval da “fictio” como fraude. A literatura seriam “textos oscilantes”. No entanto, se a princípio, quando se tratava de Homero, Heródoto e Tucídides, foi preciso aproximar poesia e história, minorar o ataque que eles fazem a uma base comum (Homero), mais adiante, porém, foi preciso fazer uma separação entre história e literatura para melhor definir Os Sertões.
Para Costa Lima, literatura e ficção não são sinônimos. A reflexão foi também movida pela situação de Costa Lima, que leciona ao mesmo tempo no Instituto de Letras da UERJ e no Departamento de História da PUC-RJ. Ele não é tão estranho ao meio como parece. Se é um estranho no ninho, é um estranho aceito.
A aceitação da mímesis abre para uma relação do crítico literário tanto com a sociologia quanto com a história. Mas Costa Lima claramente optou pela história: a sociologia foi deixada de lado, juntamente com as vertentes dos Estudos Culturais e da crítica sociológica. Para Costa Lima, o problema fundador da história (“tudo remetia à verdade, à verdade do sucedido”) (COSTA LIMA, 2006, p. 104) mais adiante, transformou o princípio (a poesia) em aporia (história). A aporia da história deve considerar que seu conteúdo, a verdade, é sempre incerto. Permaneceu intocada, além da questão de saber porque os homens guerreiam, um mau tratamento da res facta e da res ficta.
Tempos depois, no Renascimento, ainda existia distância entre poesia e literatura, poesia era um termo específico e literatura era algo geral; foi quando Schlegel, autor da admiração de Costa Lima, aproximou esses conceitos. O hístor apresentava semelhanças com a formulação verbal da poesia e da literatura, das quais ele procurava se distinguir. Para Costa Lima, o historiador não se liberta de uma certa mímesis: existe uma marca do tempo que a fez e um lugar social que aí ocupava. A mímesis do historiador é mímesis-estigma e a do “poeta ou de ficcionista” (nessa passagem, se equivalem, p.156) é mímesis ativa. Se o historiador não consegue mesmo se libertar de uma certa mímesis, o crítico literário pode optar por mantê-la cativa e ativa, a propósito de alimentar a partir dela a “sua” questão.
No decorrer das reflexões sobre a narrativa e a história, Barthes é evitado, mas não só por ser escritor e não crítico, mas também ser anti-mimético. Iser é polemizado por não concordar nesse ponto, mas seus conceitos são levados mais a sério: a ficção ganhou um alto estatuto com Iser. A mímesis, afinal, não é a imitatio, ela faz a seleção de aspectos da realidade que desorganizam a representação de mundo seja porque não é sua repetição, seja porque não obedece a seus campos de referência. Para Costa Lima, a mímesis “fixa a ancoragem do ato ficcional no interior de um quadro de usos e valores e, portanto, de valores vigentes em uma certa sociedade” (COSTA LIMA, 2006, p. 291). A obra, no caso a de um escritor como Herman Broch, salva-se ao se esquivar da ficcionalidade na qual nasceu. A ficcionalidade é “poiesis em estado puro, a ficcionalidade concentra-se em uma forma discursiva que retira de si a possibilidade de exercício do poder” (COSTA LIMA, 2006, p. 310).
Em História. Ficção. Literatura, Costa Lima vai dos gregos ao Big Brother. É assim a linha de raciocínio que levou ao “show de realidade”: a existência de uma moldura (frame) mesmo mínima, identifica um discurso. Por isso, embora multiforme, o discurso do cotidiano contêm modalidades reconhecidas. É o discurso da moda, o discurso televisivo, diverso do discurso midiático em geral. Daí a industrialização do privado, em programas em que um grupo de anônimos é trancado durante meses, enquanto o público, reduzido à situação de voyeur, tem o direito de ver e acompanhar o que fazem durante todo o dia. Se, do ponto de vista do cotidiano em geral, a delação é considerada detestável, aqui ela se torna uma regra. Voto pela exclusão de X porque...qualquer razão é válida. Todos os motivos são aceitáveis, salvo um: ninguém dirá que o excluído será menos um a concorrer no recebimento do prêmio reservado ao último sobrevivente. Á delação oficializada se acrescenta a hipocrisia, não menos solidificada como regra de conduta (COSTA LIMA, 2006, p. 77).
Se, nos textos dos anos 70, os conceitos marxistas que impregnavam algumas passagens de Dispersa Demanda, por exemplo, esses conceitos conflitavam com a vocação anti-mimética da Escola de Constança (Iser, Jauss, entre outros), mais próxima de um subjetivismo que de um realismo crítico. Com o passar dos anos, parece que Costa Lima deixou o diálogo com Roberto Schwarz e Lukács e decolou para as galáxias de Haroldo de Campos. Costa Lima fez um longo percurso que partiu por Benveniste e chegou a Austin. Ele comentou: ao lado dos atos locucionários correspondentes aos enunciados, a frase ou conjunto de frases transmitem um significado; Austin distinguia a possibilidade do ilocucionário e do perlocucionário. O locucionário seria realizar o ilocucionário. Essa digressão formou uma ilha linguística em meio aos continentes conceituais da história, ficção e literatura.
Costa Lima aventurou-se com paixão aos domínios da escrita da história, mergulhando nos meandros entre a poesia e a história, aproximando-as. Quando ele enfocou a história, citou a aplicação dos métodos narratológicos por Mieke Bal (que nada mais faz do que aplicar um apanhado daqueles autores que Costa Lima substituiu por Iser e Jauss no passado: Barthes, Bremmond, Greimas, entre outros). A razão pela qual Costa Lima não se interessou pelos Estudos Culturais talvez seja porque ele está voltado para algo permanente (quase uma fome de absoluto): a herança cultural greco-romana. Não vejo, no entanto, como obras como Orientalismo, de Edward Said, e outras de Benedict Andersen e Homi Bhabha, que se incluem nos chamados Estudos Culturais, poderiam ser consideradas amadorísticas, como considerou Costa Lima quando afirmou que os Estudos Culturais estariam “cumprindo o papel de profissionalizar o amadorismo” (COSTA LIMA, 2006, p. 28).
Mais adiante, o crítico debruçou-se sobre objetos estéticos, o que só fez no final de História. Ficção. Literatura. Para isso ele tomou Memórias do Cárcere e Os Sertões, “romances” permeados de uma narrativa não-ficcional, a história. Nessas passagens, como em algumas sobre Saint-Beuve e Proust, sente-se menos o criar e lapidar de conceitos dos capítulos sobre história, escrita da história e ficção do que a análise crítica de inegável brilho.
Há um ensaio sobre Euclides da Cunha onde história e ficção são imbricadas novamente – e fatalmente o serão ao se tratar de Os Sertões. Para a análise, Costa Lima levou demasiadamente a sério um apontamento ligeiro de Mário de Andrade, que considerou a epopéia fantasiosa, construída sem fundamentos reais a partir do sol do Nordeste e da miséria pura.
Difícil compreender porque o texto fala tanto sobre poesia-história, depois poesia-literatura, mas quando se trata de analisar um texto literário, analisa apenas prosa. E ele deu muito realce a uma observação a nosso ver superficial de Mário sobre Euclides. Mário ao chegar ao Nordeste e não encontrar messias rebeldes, cangaceiros em fúria e cidades sublevadas devastando guarnições do exército, desmereceu Euclides seria preciso uma linguagem despida de luxo e requinte, seca como ela – e tal como os romancistas de 30 teriam realizado.
Depende do ponto de vista de onde se olha: do ponto de vista de um sertanejo como Fabiano, personagem de poucas palavras em Vidas Secas, o vocabulário do livro que o retratou seria pleno de luxo e de requinte. Do ponto de vista de quem fala português não-padrão, essa literatura se encaixa melhor no padrão culto.
O luxo e o requinte da linguagem precisariam (uma vez que Costa Lima concordou com Mário de Andrade) de se encaixar num padrão realista. Padrão que a rapsódia Macunaíma não seguiu. A linguagem deveria exprimir “miséria pura” e não “epopéia”.
No entanto, poder-se-ia dizer o contrário: a grandeza e a força de Euclides foi ver a grandeza da batalha que se travou e a importância histórica daquele levante para as lutas do povo brasileiro. A linguagem usada em 1902 não era “neoparnasiana”, mas parnasiana de boa cepa. Se Euclides usasse outra linguagem, talvez não tivesse obtido a recepção que obteve em seu tempo. Seria um Sousândrade, um Kilkerry, um Qorpo Santo que a vanguarda teria de desenterrar e lançar novamente entre seus primeiros pelotões.
A observação do diário de Mário não seria capaz de transtornar a recepção de Euclides; ela está voltada contra alguém de uma geração anterior, cuja linguagem a geração de Mário questionou. Os diários parecem ser uma fonte constante de Costa Lima para essa ambivalência entre literatura, ficção e história. Num diário de Benjamim, esse autor curiosamente julgou o texto kantiano “grande prosa de arte”, afirmação a ser problematizada por Costa Lima: realmente, é bastante difícil estabelecer o valor estético da prosa de Kant. Quem sabe Benjamin tenha se equivocado e trocado a palavra “kunst” por “philosophie”. Kant, que delimitou a prosa crítica sobre a arte (a estética), tem uma prosa de valor estético muito questionável, ao contrário da prosa de Nietzsche (esse sim, tem prosa e poesia). Acrescento que existe uma boutade que diz que Kant foi o último grande filósofo a comentar com propriedade a respeito de arte sem entender nada de arte.
Uma passagem do livro foi dedicada a resolver algumas pontos divergente entre Costa Lima e Wolfgang Iser, pois Iser persistiu em ser anti-mimético. O padrão realista que Costa Lima não rejeitou na nota breve e superficial de Mário de Andrade foi, portanto, defendido indiretamente. Afinal, sem algum desejo mimético não será possível pensar na escrita da história, ou em uma literatura que faça referências à história. No caso dos romances de Euclides e de Graciliano, trata-se ainda de romances que buscam trazer dados sócio-históricos reais, em nada falseados ou modificados com finalidade de fazer o “jogo do texto”. Aqui Pierre Menard não foi o autor de Dom Quixote.
Costa Lima mesmo notou o paradoxo: Mário de Andrade cobrou de Euclides a rigidez de um paradigma que ele mesmo não seguiu em Macunaíma e que ele, retrospectivamente, aplica como sendo um peso morto. Ou seja: Mário aplicou um paradigma para ele já morto para uma obra anterior à dele, com saldo negativo. A obra deveria ter sido mais realista, embora, se Mário fosse realista extremamente rigoroso, ambientaria sua rapsódia entre Roraima e Venezuela e seu protagonista se chamaria Makunáima (que é como os índios de região pronunciam o seu nome até hoje).
Costa Lima também optou pela mímesis, mas deixou para trás o diálogo com uma vertente que precisava dela para seu realismo crítico: Lukács e Roberto Schwarz. Ocorreu a opção por Iser (com ressalvas) e Haroldo de Campos. Apareceu também uma observação de Graciliano sobre José Lins do Rego coletada por Costa Lima, bastante semelhante à de Mário de Andrade comentada acima. Memórias do Cárcere se saiu bem ao ser comparado com o diário de um seu contemporâneo (Francisco Theodoro Rodrigues). Costa Lima provou, algumas páginas antes, que um texto aparentemente autobiográfico (De um Castelo a Outro, Louis Ferdinand Céline) contêm delírios e distorções quem sabe deliberadas para tornar o autor empírico um bode expiatório do mundo. Quanto a Memórias do Cárcere, não resta dúvidas quanto ao seu caráter de forma híbrida: autobiografia, ficção, memórias. O relato de Memórias, comparado com as notas de Theodoro Rodrigues permanece bem fundamentado e seguro (Um Castelo a Outro desmoronou como um castelo de areia diante dos dados de seu principal biógrafo; é mais delírio e fruto da paranóia do que autobiografia ou memórias).
Nos “estudos de caso” finais sobre Graciliano e Euclides, ele citou Barthes sobre a narrativa da história (COSTA LIMA, 2006, p. 384), apenas para preferir a posição de Paul Ricoeur, que estabeleceu que, para uma obra ser histórica, ela precisa passar por três fases definitivas: 1) fase documental; 2) estabelecimento da prova documental; 3) fase explicativa. Os Sertões não preencheriam essas três fases e conceitos definidos e seria, portanto, obra de literatura e não de história. Ele finalizou escrevendo que “só a passagem dos anos dirá se a insubordinação aqui praticada terá alguma conseqüência” (COSTA LIMA, 2006, p. 385). Ou seja: Costa Lima pretendeu ter resolvido definitivamente o problema do status de Os Sertões; no entanto, se ele mesmo demonstrou, no início de História. Ficção. Literatura que é fácil aproximar os aedos dos historiés, é bem provável que, no futuro, essa aproximação volte a ser realizada, ou mesmo que a obra seja chamada de “forma híbrida entre ficção e história”. Talvez com o passar do tempo até mesmo História. Ficção. Literatura também possa ser visto assim, como obra híbrida.
Bibliografia:
CALDAS, Pedro. A Consciência Híbrida: História. Ficção. Literatura de Luiz Costa Lima. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Julho/ Agosto/ Setembro de 2006 Vol. 3 Ano III nº 3. ISSN: 1807-6971. www.revistafenix.pro.br. Acesso em 17/11/2007.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
domingo, 13 de janeiro de 2008
Um Artigo de Vinícius Dantas
O CANIBAL E O CAPITAL A ARTE DO TELEFONEMA DE
OSWALD DE ANDRADE
Vinicius Dantas
Os métodos modernos de negócio
tornaram obsoleta a antropofagia.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
“Telefonema” é a coluna de quando muito uma lauda que Oswald de
Andrade manteve no Correio da Manhã, entre l944 e 1954 – de todas as suas
colaborações regulares, a mais duradoura (600 artigos)1. O que significa a
arte de fazer o mundo caber num telefonema ?
É claro que passou o tempo em que o telefone simbolizava, com o
cinema e o aeroplano, a própria modernidade, quando até um futurista
paulista lhe devotava embevecida e boba celebração:
Pequeno monstro que tens uma boca e um ouvido, monstro de nervos metálicos e
insensíveis, que, entretanto, vibram mais que uma alma em desespero!
Pequeno monstro vivo e inerte, que semeias o pavor e a ventura, com uma indiferença
de carrasco, eu te amo e te odeio, eu te desejo e te fujo!2
Vinte anos depois o aparelho, sinônimo de alto-falante, é sinal de que a
própria comunicação se tornou problemática e o escritor grita ao mundo
suas opiniões meio ao léu. Telefonema também significa que nessa conversa
íntima em público existem, no mínimo, duas vozes, atendendo o visceral
dialogismo do estilo oswaldiano; o vezo chega a tal ponto que nas ocasiões
em que dispensa os diálogos imaginários ou a transcrição de falas populares,
ele simplesmente paragrafa com travessões ou dialoga consigo na terceira
pessoa. Dialogismo quer dizer também que nenhum argumento vale em si
mesmo, precisando ser cruzado com os demais, nenhum dá conta da situação
que a todos envolve e contra todos se impõe: a opinião de Oswald é seu
estilo de movimentar essas opiniões contraditórias, incorporando suas parcialidades
para abrangê-las num mosaico significativo e em aberto.
Habitualmente, ele dá notícias de um livro, de uma exposição de pintura,
da evolução de um artista, da regressão de outro, ataca o formalismo
das gerações novas (“a peste parnasiana que de novo invade os campos da
arte e da literatura”3 ), apóia as marchas para Oeste e os sertanistas em geral,
manda recados aos poderosos do dia (sempre com ânimo reformista), denuncia
a tacanhez comunista, filosofa sobre moral e costumes, provoca os
companheiros de geração e espinafra o conservadorismo, seu vizinho de todas
as horas. Sua matéria cotidiana tanto podem ser os acidentes e desastres
de todo tipo, os crimes (“A cidade que produz um grande crime pode dar
uma grande literatura.”4 ), os quebra-quebras e as manifestações de fanatismo
popular, quanto os avanços da medicina, a roubalheira da burguesia, a
agricultura que sucumbia à indústria (solidariedade pelo poder econômico
em declínio), o horário de verão, a qualidade do cafezinho, as migrações que
chegam de pau-de-arara. Resumindo suas preocupações intelectuais e inquietações
artísticas, ele decifra os destinos da política e os acontecimentos,
sempre interpretados como sinais de uma tendência geral do mundo, a qual
ainda não se configurou, nem enterrou completamente seu próprio passado.
Mas sobretudo Oswald tem dúvidas: não sabe se o espetáculo que lhe é dado
assistir anuncia, com o fim da Guerra, uma sociedade mais livre e mais justa,
ou um mundo sem fraternidade e sem paz5. “Telefonema” não passa de dois
dedos de crônica mundana e cultural, escrita com espírito subversivo de
modernista radical que teve um dia de se duplicar em reformador social,
visto que a modernização não coincidiu com suas próprias expectativas. É
uma posição que tem pontos de contato com as posições finais de Mario de
Andrade, por exemplo, no balanço da conferência do Itamarati, embora
Oswald fabricasse diariamente – e o “Telefonema” é prova disso – uma teia
enredadíssima de esperanças. Só isso é suficiente para que avaliemos a humanidade
e a grandeza da posição artística e intelectual dos modernistas – capazes
de compreender o Modernismo no momento em que ele fizera água.
A crônica, na versão oswaldiana, não pretende se integrar no cotidiano,
nele habitar com naturalidade, falando uma linguagem solta e simples para
aproximar os homens numa momentânea comunidade lírica6 . Existe aí um
ânimo teórico e uma agressividade especiais, de quem dispõe em sistema
seus dados, procurando compreendê-los ideologicamente a partir de um remoto
significado político mundial. Oswald não é um amante do miúdo,
com o enleio de uma conversa fiada sedutora, escrita com oralidade e
humanismo conservador. Seu cronismo tem muito de comentário jornalístico
e filosofia espontânea – fatos, idéias, posições políticas, medidas governamentais,
atitudes artísticas são o apoio de sua breve divagação que, sem preconceito,
coloca todas as coisas na mesma igualdade de condições expositivas7 .
Se a experiência intelectual está voltada para o cotidiano, que a magnetiza,
seu estilo atesta a dificuldade de aderir à vida, de se reconhecer nos outros ou
no Brasil, cuja realidade tem um teor de brutalidade maior que o de poesia –
daquela “poesia que existe nos fatos” dos tempos do “Manifesto da Poesia
Pau-Brasil”. Quase sempre Oswald procura com a ciência das pequenas observações,
com o refabrico do fato registrado, alguma faísca de ficção que
atice sua imaginação, produzindo um fabular marcadamente literário. Uma
grã-fina com seu copo de uísque é o imperialismo que já se intrometeu nas
festas da burguesia paulista, é o fracasso dos jesuítas que fundaram São Paulo,
é o paroxismo racial dos que não se misturaram, é a estreiteza nacionalista
que a cada dia adquire hábitos americanizados (esses croquis repetem na
coluna do Correio da Manhã o clima de conflagração e debate existente na
sociedade paulista de Marco Zero). Tudo vibra alegoricamente dado que a
caricatura generaliza as reações, desindividualizando-as numa extensão vasta
de grande literatura, embora o espaço seja exíguo e os figurantes nunca planem
por sobre o diz-que-diz paulistano. Temos portanto um escritor implantado
numa sociedade moderna, circulando entre classes sociais opostas,
atento às coisas do dia a dia, às opções ideológicas e práticas, à vida intelectual
e às oficialidades, cujo vasto conhecimento da política é exposto e posto
à prova. Justamente a figura do escritor realista, se não for deselegante a
lembrança, capaz de participar dos acontecimentos e se enfronhar na transformação
do processo social, que Georg Lukács acreditava que 1848 havia
enterrado.
Seu instrumento é uma frase carregada de estilo, às vezes preciosa nas
imagens e humorística nas designações, que dramatiza por sinédoque o
mundo, transferindo os vocábulos de seu uso habitual para a dimensão mais
conceitual da generalização. Referindo-se a certa figura modesta que virou
ladrão influente, ele diz que vivia “enterrado na antiga geléia dos bons costumes”;
o sr. Animal de Barros, Adhemar, é “esse ladrão de galinha de ouro”; a
conjuntura é a “pororoca mundial”; um deputado é um “caramelo de mediocridade”;
de um intelectual, autoritário nas maneiras, diz que “não tendo
cabeça tem voz”; do chefe integralista fazendo discurso numa festa diz: o
“túmulo desdentado do sr. Plínio Salgado deitou falação”. O estilo brilhante
dessa escrita viva e sarcástica dinamiza em grau máximo o universo do cronista
e ao seu toque o mundo se torna pitoresco e essencialmente engraçado.
É um estilo folhetinesco no metaforismo intenso, na adjetivação latejante,
no ritmo de surpresas e fundos falsos da argumentação. Sua prodigiosa invenção
verbal transforma em noção abstrata palavras concretas, mantendo
na abstração o travo do localismo ou da gíria familiar, deixando-as porém
impregnadas pela proximidade do mundo do trabalho ou pela experiência
cotidiana da cidade, embora não menos transfiguradas em um plano de poesia
que é também interpretação da sociedade contemporânea. A linguagem
desses “Telefonemas” está longe da simplicidade e despojamento da tradição
brasileira da crônica, renovada que fôra há pouco, graças ao Modernismo8 .
Ao contrário, seu encadeamento retórico, com alguma altissonância, tem
muito do esteticismo pré-modernista, o que não é óbice para a desmistificação
contundente e a espinafração sem dó (convém lembrar que a expressividade
sintática da frase a muitos fôlegos, cerrada e subordinante, de Mário de
Andrade e Gilberto Freyre, sofre do mesmo atavismo sem prejuízo da beleza
e força dela).
Depois que Vera Chalmers organizou e apresentou a coleção completa
de Telefonema, ficou mais fácil avaliar a qualidade e também o limite desse
estilo transbordante de sugestão, movimento, zoada, cujas vistosas figuras de
linguagem lutam com o real9 . Um pouco como se fosse função obrigatória
da escrita (modernista ?) captar o mundo com vivacidade e produzir entre
chistes e quiproquós verbais um encanto desautomatizador que quer para si
toda a atenção. A dimensão trágica do pesadelo da história surge assim transfigurada
nessa taquigrafia de imagens que mais se parece a um desenho animado,
cheia de non-sense com cor local. A despeito de registrar uma época
em que a falta de liberdade da vida se amplia, Oswald reitera com seu estilo
agitado toda a liberdade de expressão de que é capaz, misturando fuxico e
teoria da História, crítica literária e esbregues que só duram até a manhã
seguinte, pois ele se reconcilia sem rancor. Drogado por sua espirituosidade
e alegria, Oswald não teme colocar a moldura do pitoresco sobre tudo e
encontrar a esculhambação exata e cômica que redima expressivamente aquilo
que combate e destrói. Veja-se a maneira como noutro lugar referiu-se à
Guerra Fria que começava, resumindo pitorescamente a tragédia: “Estamos
num regime democrático, sob a proteção da bomba atômica”10 . Estamos em
certa São Paulo (“essa província lusa do Juízo Final”) dos anos 40 e 50 em
que a alta burguesia toda se conhece e se freqüenta, em que a vida cultural
está sob a égide da grã-finagem que soube se adaptar ao Estado Novo e à
industrialização. Seu cenário típico é um apartamento vasto da Praça de
República ou a casona do Jardim América onde desfilam numa reunião festiva
os principais personagens do pós-Guerra: os ricos que só planejam abusar
da margem de lucro, burlar o fisco e enriquecer à custa do estatismo, as
novas gerações que adquirem uma naturalidade que não dá para saber se é
uma nova barbárie ou uma humanidade pacificada com o instinto, a
intelectualidade que se acomoda em inquietações existenciais inflando veleidades
universalistas. É uma comunidade primitiva na qual as relações pessoais
prevalecem sobre a inexorabilidade dos processos econômicos e a ciranda
do jogo político, o que permite que Oswald se dirija pessoalmente aos
governantes e aos grandes empresários, tomando satisfação, aconselhando
ou bronqueando em clima cordial. Tenho para mim que essa personalização
excessiva deforma sua percepção: a proximidade é humanizadora e muito
paternalista, vincando inclusive o estilo oswaldiano que, salvo erro, pressupõe
o efeito da piada sobre o salão e o posterior congraçamento da audiência.
Todavia, nosso Antropófago sublinha a ferocidade dessa classe e sua infinita
capacidade adaptativa, descrevendo-lhe o comportamento anti-social
em toda a gama de venalidade, corrupção, esperteza política e falta de traquejo.
A humanização em parte é devida a seu fraco pelos ricos que patrocinam as
artes, compram quadros e promovem este ou aquele artista, afinal estamos
numa sociedade em que um mero concerto de música contemporânea vira
uma eterna estréia de Le sacre du printemps e um empresário amigo das artes
adquire logo as feições de um Lourenço de Médicis11 . Oswald também tem
uma caidinha pelo assistencialismo e pela filantropia, não obstante o viés
humanizador provenha sobretudo do papel que, segundo ele, a cultura passaria
a desempenhar no mundo do pós-Guerra com a atenuação do poder
econômico.
Oswald jogava desse modo sua última cartada de utopia – o fim da
Guerra acarretará, profetiza, uma inflexão histórica ora no “crisol de um
amanhã melhor”. Tanto a volta ao estado de direito com a queda de Getúlio
Vargas, quanto a vitória dos aliados sobre o Nazifascismo, acenderam nele
tal otimismo que a redemocratização é vivida como o fim do clientelismo (“a
política de clã”) e o tratado de Teerã sinaliza o início de uma coabitação
pacífica dos dois sistemas. O imperialismo aceitará (só Deus sabe como) as
regras de uma civilização contratual e democrática em que a ingerência do
poder militar e econômico já não será aberta12. Controlados os interesses do
capital, haverá uma democratização geral, com melhoria material da vida e
primazia do tempo livre, pois a diminuição da necessidade do lucro conduz
à auto-reforma do capitalismo. Por outro lado, o socialismo se humanizará
com o fim da ditadura do proletariado e da luta de classes, ocasião para se
pleitear na linha de Earl Browder a autodissolução dos partidos comunistas13
. Logo, porém, os fatos rechaçam uma por uma as esperanças atiçadas
com fervor, propondo novas realidades que escapam à lógica linear da sua
idiossincrasia utópica. Todos os acontecimentos e tendências sociais
registrados cotidianamente nessas crônicas o desmentem, e ele muitas vezes
o reconhece, porém Oswald enfuna as velas da utopia do matriarcado e da
Antropofagia, tudo para não admitir, como faz ainda hoje um Fukuyama,
que o particularismo cultural não salvará o capitalismo. Mas é preciso dizer
que a utopia não embaraça certa compreensão do processo mundial, chegando
a ser originalmente sistêmica nos momentos em que o esforço soviético
de industrialização parece idêntico à tentativa levada a cabo por Vargas,
cujo resultado porém...não vai muito além do capitalismo. De passagem,
note-se que os artigos sobre política brasileira são a maioria e, em geral, têm
grande interesse e graça, desmentindo sob a pátina de sarcasmo a idéia de
que Oswald era um franco-atirador irresponsável – a crônica “Palavras a Prestes”
por exemplo demonstra, mesmo depois de afastado dos quadros comunistas,
a sua correção e senso de justiça com aquele de quem há pouco, num
desatino, disse ser “depois da morte de Roosevelt, a maior figura política das
Américas”14. É importante frisar que Oswald rompeu com o comunismo
por atritos pessoais e sem uma crítica consistente ao stalinismo, desentendendo-
se com o rumo local da linha política imposta e com a ortodoxia que,
segundo ele, não via a mudança das condições objetivas no pós-
Guerra15 (Stálin continuava apesar de tudo aquela mesma “Ponte de aço conduzindo
a humanidade ao futuro” da hipérbole hedionda e publicitária de
dez anos atrás16 ).
Enfim, Oswald se converteu malgré lui num moralista que encara contrafeito
a modernização do país, a destruição da vida popular, a americanização
dos costumes e a manipulação da linha de massa do populismo que, em
países como o Brasil, barra os avanços da classe trabalhadora e a democratização
profunda das estruturas sociais17 . Continua a amar senhorialmente o
povo, este povo que saltava da miserabilidade para a proletarização e, por
isso, demonstrava reconhecimento e admiração pelos demiurgos desse salto
– o que explicaria a base social do populismo (vejam a cena no enterro de
Roberto Simonsen dos populares disputando as alças do esquife burguês...).
Ou, como diz num “Interurbano oficial” (dirigido ao General Dutra): “O
Brasil é um país de escravos que teimam em ser homens livres. É essa toda a
nossa tragédia”. A proletarização também fica aquém da expectativa, traz
consigo diversa anomia e o mais despoetizado plebeísmo, a que, noutro lugar,
ele reage com decepção: “Estamos longe da Casa Grande mas não da
Senzala”18 . Tendo em alta conta as conquistas sociais do trabalhismo, denuncia
a burrice comunista que preferiu se submeter às ordens de Moscou e
parasitar o sindicalismo oficial. Em grande número de crônicas protesta contra
a liquidação do lirismo popular – aquela reserva florestal de brasilidade (que
Caetano Veloso até hoje acredita que existe na Bahia) estava acabando justo
para o poeta que lhe vislumbrara a beleza vanguardista nos anos 20. Graças a
Telefonema, a gente acompanha a transformação desse povo lírico e bom em
proletário, em consumidor americanizado, em mão de obra espoliada pelo
trabalho fabril e mecânico, a caminho da sindicalização e do paletó preto – o
símbolo da reificação trazida pelo Varguismo. Se é verdade que houve melhoria
de vida e diminuição da miséria, o povo desrecalcado e desneurotizado sumiu
do mapa. Paradoxalmente, a difusão da civilização técnica e a cultura de
massa desassossegam o velho poeta pau-brasil que, sem entusiasmo, as observa
no diário, registrando o consumismo, a falta de caráter, o comercialismo
das mulheres automáticas, a desmoralização do lar, a crise do parentesco,
que destruíram as fontes dionisíacas (portanto, pré-freudianas) da vida19 .
Todavia o otimismo crianção de nosso Antropófago luta o tempo inteiro
com aquilo que vê e descreve e, com o orgulho de quem contribuiu para
tirar o país da pasmaceira da República Velha, reafirma suas convicções se
agarrando nostalgicamente à tradição que ajudou a abalar. Tem muita fé no
Brasil, “este velho país sem pecados, sem remorsos e portanto sem culpa”, o
país “secularmente democrático e popular” que assiste o desenrolar de nosso
tempo, ao largo de seus horrores (o tradicionalismo aqui é similar ao de
Gilberto Freyre, embora a teoria seja outra). A experiência de vida do cronista
desmente porém sua positividade ingênita, tanto que seu populismo radical
sabe que agora é preciso salvar o povo da cultura de massa, das classes
dirigentes e do exemplo desagregador dos políticos – mas salvar como20 ?
Mesmo que o comunismo tenha permitido que ele refundisse seu sentimentalismo,
aguçando-lhe o senso de indignação contra a pobreza e as desigualdades
sociais, as possibilidades de transformação têm pernas curtas, geralmente
decepadas pelo trabalhismo apoiado pelo PCB. Diga-se o que se disser
dessas posições polêmicas, acho que elas tiveram contudo o mérito de
incorporar para a crítica e a discussão política o perfil novo do proletariado,
da classe média, atentando na distribuição da riqueza no país com seu padrão
de desigualdade peculiar, num mundo em que, segundo ele, a luta de
classes se atenuou, a ideologia se tornou técnica social e o progresso material
não teve equivalência espiritual. Vejam só:
Meu caro, o conceito de proletariado mudou de Marx para cá. Houve uma redistribuição
da mais-valia, houve as leis sociais. A ciência nos países avançados fez do trabalhadorum técnico. Nos países atrasados tem havido uma proletarização
pode mais invocar seriamente a ditadura duma classe que deixou de ser “revolucionária”,
que se aburguesou. O que resta é mesmo o grupo, o partido, o fascismo. Eles!21
Se a mitopoética antropofágica não é senão outro modo de tratar a cena
contemporânea, devemos compreender sua retomada nas condições do pós-
Guerra como uma resolução positiva e brasileirista do mesmo processo histórico-
social que produziu a dialética do Iluminismo de Adorno e
Horkheimer, o teatro do absurdo, a escultura de Giacometti ou o neo-realismo
italiano. Recolhendo a experiência recente e formulando uma espécie de
diagnóstico de seu tempo, essa mitopoética esquematicamente se propõe
assim:
[...] é a seguinte a formulação essencial do homem como problema e como realidade:
1o termo: tese – o homem natural
2o termo: antítese – o homem civilizado
3o termo: síntese – o homem natural tecnizado
Vivemos em estado de negatividade, eis o real. Vivemos no segundo termo dialético da
nossa equação fundamental. 22
A meta dessa teoria é o homem natural tecnizado – uma solução para a
crise final do ciclo do individualismo burguês. O bárbaro tecnizado na antiga
Antropofagia representava, como se sabe, o rebelde colonial, ou da periferia,
que ousava se apropriar da cultura e da civilização européias para fazer
por meio da técnica alheia a emancipação nacional, ou então, completar sua
modernização – consumando aquela vingança extrema que subsiste, segundo
Montaigne, na idéia da antropofagia indígena. Oswald não dormiu no
ponto: discerniu rapidamente que a emancipação genuína só podia mesmo
ocorrer no campo da sociedade revolucionária e comunista – sua adesão ao
comunismo por assim dizer decorreu do visionarismo antropofágico e teve
por isso qualquer coisa de lógico, comprovando a consistência social e política
da invenção poética. Mais adiante, não lhe escapariam tampouco as
implicações que esse primitivismo, com seus aspectos de expropriação direta
e estilização da violência, adquiria numa época marcada pelo Nazismo. Tanto
que um personagem de Marco Zero, o Major da Formosa, latifundiário
em decadência, grileiro, alcoólatra, na mocidade estudante de Oxford, onde
viveu uma época de nietzschianismo prático, no presente espírita e integralista,
a certa altura de Chão, observa:“- A Antropofagia, sim, a Antropofagia só
podia ter uma solução – Hitler! No entanto os integralistas cristianizaramse.
Deus, Pátria e Família! E eles, os antropófagos que tanto prometiam,
foram para o marxismo. É ininteligível! Eles cantavam o bárbaro tecnizado!
E que é o bárbaro tecnizado senão Hitler?”23
Em 1943, ao advertir em depoimento a Edgard Cavalheiro que a imagem
antropofágica estava suspensa até segunda ordem, pois fora usurpada
pelo Nazismo, Oswald não perdeu o azo de ironizar que a Antropofagia
tinha tudo para se tornar uma filosofia da devoração pela devoração, podendo
legitimar qualquer forma de regressão e barbárie como aquela a que se
assistia, agravada pela Guerra. Chega a aventar com algum sarcasmo a possibilidade
de que surgisse uma Antropofagia transcendental, pregando a
devoração como um estilo de ataque conservador, a favor do Fascismo. Mas
vai logo esclarecendo: seu primitivismo opunha-se a tal vertente de Direita
porque apostava inequivocamente no progresso técnico com socialização de
seus benefícios e transformação das relações sociais24 . Cabe à retomada da
teoria antropofágica no pós-Guerra desbarbarizar o bárbaro tecnizado, reencontrando
um fundamento progressista para responder de modo peremptório
ao impacto do nazismo e ao autoritarismo da engenharia social totalitária.
É curiosamente nas crônicas de Telefonema que o leitor começa a conhecer
a formulação filosófica, antropológica e existencial da devoração pela
devoração, a mesma que ele havia descartado. Contudo, nos deparamos para
a nossa surpresa com um arremedo da Antropofagia transcendental mencionada,
o qual no entanto tem clareza suficiente para vincular progresso técnico
à utopia de uma sociedade revolucionada pelo ócio, pela liberdade e pelos
afetos. Oswald insistirá na utopia, doravante fundindo temas da Antropofagia,
do Marxismo, do Existencialismo, do Comunismo, com o retorno do
Matriarcado, às vezes sem muita consistência, mas sempre dando precedência
à literatura sobre a ciência. A verdade é que a esperança antropofágica,
travestida de cultura matriarcal, lhe resta como o único legado do tempo das
possibilidades extraordinárias abertas pela Revolução. Que ele não quer deixar
morrer.
Causa espécie que o impulso dessa retomada se deva – é o que esses
telefonemas só confirmam – às leituras existencialistas, as quais estimularam
Oswald a converter a Antropofagia numa argumentação filosófica ou num
kit de filosofemas para defender um fundamento anti-messiânico e nãoautoritário
de uma teoria do ciclo cultural. Sobretudo depois de Auschwitz,
ela ainda oferece um destino espetacular e auspicioso ao Brasil (e não menos
ao Novo Mundo) – e não custa lembrar, sem qualquer traço do piadismo
dos anos Vinte. Tendo a aparência de uma autêntica teoria da História, essa
Antropofagia tardia leva a realidade nacional a se debater com os destinos
mundiais da civilização. Outros temas igualmente assimilados foram a valorização
absoluta da liberdade e da irredutibilidade individuais, conciliáveis
com o sentimento religioso e místico. A influência do Existencialismo se
prestaria por outro lado a barrar o materialismo freudiano que desmantelou
o mistério do inconsciente e da interioridade (Oswald repete antigas posições
anti-Psicanálise dos anos Vinte). A fenomenologia dos encalacramentos
da intersubjetividade impulsionou essa nova dialética da devoração a se tornar
mais e mais existencial e se tingir de uma angústia temporal que faria rir
a turma da Revista de Antropofagia. Nada disso quer dizer que nosso Antropófago
tenha virado como Chiquita Bacana um “existencialista com toda a
razão”, pois sua filosofia desconhece o absurdo primordial e não privilegia a
ação ou a escolha individual (tudo se resolvendo pela evolução cultural).
Porém, a influência existencialista me parece decisiva para Oswald aceitar a
submissão como liberdade, tal como fica patente nessa Antropofagia devotada
à “irreversibilidade do acontecer”: “Mas, de pé diante do irreversível, o
homem deve se deixar devorar sem medo. Não é outra a função da vida”25 .
Aqui não há lugar mais para a devoração guerreira, ao contrário o homem se
oferece à vida num gesto de conciliação, ou fusão moral, interpretado como
abertura ao mundo ou ida ao Outro, que o devora
vira comunhão, compartilhamento da alteridade, um “viver nos outros”
que modifica a relação Eu-Outro e permite que a relação intersubjetiva
traga em si uma célula anti-concorrencial, portanto, anti-capitalista. A
devoração moral traz para dentro do Eu a responsabilidade pelo Outro, ao
qual agora o Antropófago dedica desvelos de mãe ou amor ao próximo (como
queiram). O Eu é o Outro numa figuração humanizadora em que a devoração,
sem qualquer canibalismo, é um modo de vencer a solidão e superar o desamparo,
tendo porém assegurada dentro de si a vigência da totalidade. A
Antropofagia, cada vez mais enfraquecida, como se vê, se deslocou do âmbito
do conflito cultural, do colonialismo, da dominação técnico-militar, dos
mecanismos de apropriação e da insuficiência de formação cultural, para o
espaço da experiência interior e da teoria dos ciclos e arquétipos culturais.
Ela não é mais uma tática, um procedimento crítico, uma ação revolucionária
para surpreender o inimigo ou a reivindicação espalhafatosa da parte do
vencido na história do vencedor. Na versão nova, ficou de fora inclusive o
tema da inautenticidade nacional, tão importante nos anos Vinte; mas o que
é mesmo uma pena é Oswald lhe ter quebrado a viva aresta polêmica.
Com a perda de sua fibra libertária, esse pensamento da devoração passa
a expressar uma consciência histórica difusa, mais característica de um ser
complexo e torturado (nascido de hibridizações e bifurcações da história da
humanidade) do que de um mau selvagem, jamais de um homem natural e
livre. A cúpula dessa arquitetura especulativa é justamente a ressurgência da
cultura matriarcal – um mundo íntegro de sentido, tal qual fora para ele o
Comunismo. Oswald argumenta que o estilo de dominação patriarcal, tendo
atravessado a Antiguidade e os tempos modernos, culminando no
stalinismo, foi o responsável pelo recalque das potencialidades de uma civilização
coletivista. Imagina que a sua tarefa intelectual é agora inventariar os
indícios da passagem do Matriarcalismo pela História, atestando a presença
de uma possibilidade não-cumprida e sempre abortada. Até a imagem da
Idade de Ouro (tempo de suspensão de toda contradição, plenificado pela
inexistência de bem e mal) é restaurada para que a especulação matriarcalista
seja dotada de um vetor apoteótico, o que desequilibra a sua negatividade
crítica26. Porém, se Oswald persevera insistindo no desenlace positivo é porque
o tabu, pela própria lei do progresso antropofágico, será permanentemente
transformado
presente nas crônicas de Telefonema) acabou sendo o último sopro anticapitalista
de Oswald, com sua defesa visionária do ócio contra as pressões
da concorrência e do negócio. Tudo isso no entanto nos previne contra o
culturalismo de seu remoto marxismo, entregue à luta entre matriarcado e
patriarcado e que, outra vez, volta a apregoar a chance nacional de países
anticapitalistas como o Brasil, feito de liberdade, confusão racial e preguiça,
num tempo em que o capitalismo estaria superando a vulgaridade do lucro.
Se o otimismo da teoria foi ultradesmentido pelo andamento da História, o
mesmo não pode ser dito do estilo literário que a formula: muitos telefonemas
nos interessam e ainda podem ser lidos apetitosamente porque a imaginação
do escritor é maior, muito maior, que a sua filosofia, já arquivada C O
R T E mas sempre ressuscitada toda vez que se quer exibir na mídia e nas
instituições oficiais de cultura uma imagem de quanto o Brasil oligárquico é
confusamente transgressivo e nacionalista.
Em linha contrária à da sua prosa filosófica ou da sua teoria do
Matriarcado, a crônica jornalística descreve uma sociedade que está longe da
síntese tão apregoada e que tem tudo para infirmá-la. O Brasil de Telefonema
assinala direta e indiretamente a gratuidade da especulação utópica, enraizando
suas teses numa matéria de interesses concretos, alheios (e como!) à
racionalidade civilizatória do prometido ciclo cultural. A técnica está enredada
nas relações sociais brasileiras, que dela se apropriam e a parcializam, o
que a modifica inteiramente, a ponto de desidealizá-la por seus resultados
limitados. A prosa do cronista não a mitifica, diversamente do que faz a
prosa do filósofo, que a transformou num conceito dissociado da reprodução
do social, embora fosse o motor das potencialidades abstratas de transformação.
Encarnada no dia-a-dia brasileiro, a técnica não está separada da
reprodução do social e tem uma função econômica que desabona a especulação
teórica, aqui sua vigência desqualificada é também espoliadora. Nos
“telefonemas”, ela é descrita, à maneira expressiva do escritor, sob a batuta
paulista de uma galeria de gente inescrupulosa, simpática e insaciável, cuja
cegueira política e social, para bem da miséria geral, não impede o bom êxito
nos negócios. O aceno à esperança subsiste, porém denota tão somente o
lado pio do próprio Oswald, que sempre que pode elogia a eficiência moderna
da técnica – no hospital limpo, na dedicação do enfermeiro ou até na
criança que gosta de mecânica de automóvel; vê-se que ele aprecia mesmo a
superação da miséria e um pouco de progresso, sem os quais não dá para
viver. A crônica oswaldiana não mascara o abismo entre projeção utópica e
realidade, abismo verdadeiramente grotesco que lucidamente é escancarado.
Reagindo como cidadão enxovalhado, o cronista é obrigado a enfrentar atenta
e criticamente as formas novas e terríveis de sociabilidade capitalista que
surgiam, ao mesmo tempo que não lhe escapa a parte (inesperada) que as
forças progressistas tinham nelas. “Telefonema” é o picadeirinho onde o
mundo desfila suas guerras e escaramuças, animado (em primeiro plano)
pela política de âmbito nacional, em que ainda se pode ter iniciativa e mesmo
mudar o jogo, e (em segundo) pelos destinos do mundo, cujos peões já
não podem ser movidos (a não ser, conforme os desdobramentos de sua
filosofia, na vigência do tão aguardado ciclo do matriarcalismo). Na coluna
”Telefonema”, a tirada aguda não precisa forjar uma doutrina para se justificar,
dispensando o apoio do amadorismo especulativo e da erudição improvisada.
Nesse picadeirinho, a vedete é a frase cheia de exemplificações concretas
que mimetiza argumentos de muitas vozes e desenha um perfil complexo
das dificuldades que esse homem admirável tem para definir, sem voltar
atrás, uma posição à altura de seu horror ao mundo da concorrência e da
neurose.
Bem se viu que o antropófago sobreviveu ao canibalismo – feio e vulgar
– do capital. Por isso, o antropófago que sai dessas crônicas mais parece o
homem polido e cordial que, antigamente, na boa civilização patriarcal de
nossos avoengos, estava a salvo da lógica do dinheiro e da sociedade de massas.
Só lhe resta agora descobrir aos trancos, e muito a contragosto, a lógica
conservadora da modernização real27 . Trinta anos depois, num aforisma,
Carlos Drummond de Andrade concluiria sem hesitações: “Os métodos modernos
de negócio tornaram obsoleta a antropofagia”28 . Claro que, por superestimar
a utopia, Oswald não pode ter essa clareza drástica, afinal pequenos
e grandes sinais de progresso na vida brasileira, todos eles, derretem seu
velho e carcomido coração – como se estivéssemos nos movendo devagar
mas sempre para adiante, por comparação com o passado. A série de meditações
hospitalares com que Oswald dá um balanço na vida é um momento de
extrema resignação e apaziguamento; por fim a Antropofagia se converteu
para ele numa consolação filosófica, um espiritualismo moderno e órfico,
um autêntico cristianismo tropical, socialmente generoso e ecumênico29 . A
trajetória se encerra com amargura e muita fé, acrescida do sofrimento da
doença e do cansaço. Um dado a mais da humanidade de Oswald é a sua
consciência de que chegou ao fim iludido sistematicamente por seu otimismo
social, pois o tempo que lhe foi dado viver encobriu e distorceu sua
percepção. Ao fim e ao cabo, tanto a República Velha quanto o Estado Novo
e o governo Vargas, uma embalada pelo último ciclo do café, os outros, pela
industrialização de base, foram interregnos em que as condições internacionais
favoráveis fizeram-no acreditar ilusoriamente numa chance nacional de
modernização genuína30 . Mas ele não é homem de escomotear que a miséria
permanente desse povo que já nem povo é, a brutalidade modernizadora, o
absurdo beckettiano da política brasileira31, a parcialidade da revolução artística,
estão aí a machucá-lo. Digamos que foram ilusões históricas poderosas,
mais do que ilusões meramente pessoais desse filhinho de mamãe canibal,
tanto que se precisou esperar até 1964 para serem dissipadas de vez
(acho que minto) do nosso horizonte.
Notas
1 Oswald de Andrade. Telefonema. Pesquisa e estabelecimento de texto, intr odução e notas de Vera
Maria Chalmers. São Paulo: Editora Globo, 1996.
2 Menotti del Picchia. “E logio do telefone. Poema futurista”. In: O Gedeão do Modernismo: 1920/22.
Intr odução, seleção e organização: Yoshie Sakiyama Barreirinhas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
/ São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1983, p. 218. Publicado originalmente na “crônica
social” assinada por Helios no Correio Paulistano, em 1º/5/1921.
3 ANDRADE, Telefonema, p. 303.
4 Idem, ibidem, p. 298.
5 O itinerário das colaborações deste Telefonema está marcado, todo ele, pela dialética da esperança e
da decepção. Iniciando-se sob o Estado Novo, aí se expõe largamente de que modo a discussão sobr e
a noção de r esponsabilidade intelectual, a crise burguesa, a fase de transição, se beneficiou da gravidade do clima de guerra e fez em seguida emergir uma onda de agitação e participação que logo se
articularia com o debate público da Esquerda. Este clima pode ser notado na única coletânea editada
pelo próprio Oswald de seus escritos de jornal: Ponta de Lança (São Paulo: Livraria Martins Editora,
1945), uma reunião de artigos, conferências e crônicas, todos tocados pelo desarr ocho do debate
ideológico e pela relativa liberdade de expressão, já possíveis em 1943 depois da entrada do Brasil na
guerra. Recentemente foi publicada outra antologia que, não só completa o conjunto de artigos da
coluna “Feira das Sextas” (1944-1945), como lhe acrescenta alguns mais do período: Feira das Sextas.
Organização e introdução de Gênese Andrade. São Paulo: Globo, 2004.
6 Antonio Candido já afirmou que Oswald “[...] foi grande polemista e jornalista, pondo no ensaio
curto, no artigo, na breve nota, algumas das suas melhores intuições e das suas melhores realizações
estilísticas”; e também Mario da Silva Brito se indagou: “S erá apressado afirmar-se que o melhor
Oswald está disperso pelos vários jornais onde esbanjou o seu fulgurante talento valendo-se de um
estilo nervoso, imprevisto e original. Mas certamente nesses ar tigos se encontra muito do melhor que
pensou e tinha a dizer.” (respectivamente em “Prefácio” a Oswald de Andrade, Memórias sentimentais
de João Miramar. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964, p. 5 e em BRITO, As metamorfoses de
Oswald de Andrade . São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1970, p. 95). Especificamente sobre a
prosa dispersa existe matéria esclarecedora no apanhado sintético de L uís Martins, “Oswald de Andrade
– jornalista”, incluído no seu Suplemento Literário (São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1972,
pp. 55-64) e na tentativa de lhe examinar bakhtinianamente a trajetória esboçada por Vera Maria
Chalmers em 3 linhas e 4 verdades (O jor nalismo de Oswald de Andrade). São Paulo: Duas Cidades /
Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976.
7 O conjunto é desigual e per corrido por ondas de interesses. Numa fase, a política sobrepuja, noutra,
o ramerrame paulistano, chegando Oswald até a praticar um colunismo social intelectualizado. Nos
últimos tempos, o telefonema é curto, quase uma nota. Vale registrar alguns momentos altos do
conjunto: “Diálogo contemporâneo”, “Bilhete aberto”, “O homem que jogou no bicho errado”,
“Interrurbano oficial ”, “Virar índio”, “Civilização”, “Por uma recuperação nacional”, “Serão”, “Monólogo
do tempo presente”. A periodicidade da coluna é irregular com grandes lacunas, mas por vezes
em horas mais intensas se torna diária.
8 “Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se consolidou no Brasil, como gênero bem
nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus
mestres. Nos anos 30 se afirmaram Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade e apareceu aquele que de cer to modo seria o cronista, voltado de maneira praticamente
exclusiva para este gênero: Rubem Braga.” (Antonio Candido. Recortes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993, p. 26)
9 Anteriormente a pesquisadora havia organizado com o mesmo título uma seleta brev e de artigos das
colunas fixas de Oswald em jornal desde 1909: ANDRADE, Telefonema. Brasília: INL-MEC / Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
10 É um aparte de Oswald ao debate que se seguiu à conferência de Caio Prado Júnior sobre “Capitais
estrangeiros” em
interessantíssimo foi reconstituído e publicado por Paulo Henrique Martinez
1, set-dez, 1996,pp.81-97.
11 “Se há um homem que indique e documente as transformações do Brasil, é ele Assis Chateaubriand.
Do jornalismo, as suas atividades passaram a intervir na aviação, na indústria, na vida social e política
e afinal vieram desaguar num setor até aqui abandonado – o das Belas-Artes. Transformar uma sociedade
de pif-pafeiros, de preciosas e de brokemakers numa platéia inter essada por quadros e esculturas é obra inesperada e gigantesca.” (ANDRADE, Telefonema, p. 283; fiz três correções no texto).
12 É preciso lembrar que mutatis mutandis são posições compatíveis com a propaganda comunista que
não só apresentava a União Soviética como a grande vencedora da Guerra, mas via sob a sua égide a
inauguração de uma nova era da humanidade. “O imperialismo está moribundo” também afirmav a
Luiz Carlos Prestes no comício de São Januário em maio de 1945. O s argumentos de que estavam
esgotadas as condições históricas da ditadura e do imperialismo eram de larga aceitação e testemunham
a ilusão dos que acreditaram que a vitória aliada, dada a participação soviética, instauraria uma
coexistência pacífica duradoura.
só seja compreensível se imaginarmos o quanto ela participa dessa poderosa ilusão coletiva da coexistência
pacífica (no lusco-fusco de sua saída da prisão, quando Prestes v acilava entre programas e ainda
não definira posição, até ele adotaria brevissimamente o liquidacionismo de Browder, conforme nos
recorda Tito Batini nas suas Memórias de um socialista congênito. Campinas: Editora da Unicamp,
1991, p. 257). No entanto, a posição de Browder confirmav a também em Oswald convicções anterior
es (formuladas a partir dos anos Quar enta, certamente amadurecidas ao longo do processo da industrialização
brasileira e da experiência do Estado Novo), como por exemplo a defesa de uma burguesia
social com espírito empreendedor, ligada à produção e não às finanças, capaz de correr risco e multiplicar
a riqueza contra o egoísmo do lucro. A idealização titânica do empresário de vocação social
antecedeu a adesão às teses de Browder, encontrando-o já predisposto à cooperação de classes e ao
apaziguamento dos ânimos r evolucionários. Vejam-se nesse sentido “Os princípios eternos...”, de 23/
7/1943 em ANDRADE, Feira das sextas , pp. 91-95. As viravoltas de Oswald são menos erráticas ou
oportunistas do que parecem...
14 Oswald de Andrade, Os dentes do dragão. Entrevistas. Pesquisa, organização, introdução e notas de
Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Editora Globo / Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo,
1990, p . 97.
filosofia messiânica , porém no bojo da crítica à cultura messiânica que emperra o adv ento do Matriarcado,
veja-se em Oswald de Andrade, Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Manifestos, teses de concursos
e ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL - MEC, 1972, pp. 115ss.
16 Oswald de Andrade, Dicionário de bolso. Apresentação, pesquisa, estabelecimento e fixação do texto
por Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Editora Globo / Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo, 1990, p. 83.
17 Notem a empostação de pai de família na pele do observador de seu tempo: “Quando a família se
desmancha em glamour-girls, mulheres automáticas e folgados amigos do alheio automóvel e do alheio
drink é que lavra um evidente desajustamento nos v elhos quadros que presidiram a nossa formação.
Nem se vai para diante, pois persistem os preconceitos e as leis da velha gente patriarcal, nem se volta
para trás, pois acabaram-se as rótulas e não é possív el vigilância sobre a meninada de ambos os sexos
que parte cedo para as escolas, os centros de esporte, os acampamentos, os grêmios recreativos, o
ganha-pão.” (ANDRADE, Telefonema, p. 319)
18 ANDRADE, Feira das sextas, p. 130.
19 “...não há mais nem biologia, quanto mais mitologia. Que é o Carnaval senão diferenciação, marca,
personalismo, ar te e floresta ? Tudo isso afundou no caos, não porque o povo haja subido. O povo,
coitado, está trabalhando e vivendo com vigor osa honestidade e era simplesmente a Grécia que ele
ressuscitava no Rio, na Praça da Bandeira, nos tempos idos, anteriores a Getúlio Vargas. O que subiu
foi a ilusão de cultura, isto é, o pernosticismo.” (ANDRADE, Telefonema, p. 140).
20 Para ex emplificar a transformação por que passou o populismo literário após o Estado Novo, lembro
que dez anos antes havia uma adesão comovida à força do povo, que transmitia uma imagem de
insurreição contida, desespero, alegria e vida sufocada pela exploração, como a retratava digamos
Rubem B raga na crônica rev olucionária dos tempos da Aliança Libertadora Nacional: “D e longe vem
um rumor, um canto. Vem chegando. Toda gente quer ver. São quinz e, vinte moleques. Dev em ser
jornaleiros, talvez engraxates, talvez moleques simples. Nenhum tem mais de 15 anos. É uma garotada
suja. Todos andam e cantam um samba, batendo palmas para a cadência. Passam assim, cantando alto,
uns rindo, outros muito sérios. Todos se divertindo extraordinariamente. O coro termina, e uma voz
de criança canta dois versos que outra voz completa. E o coro recomeça. E les vão andando depressa
como se marchassem para a guerra. O batido das palmas dobra a esquina. Ide, garotos de Vila I sabel.
Ide batendo as mãos, marchando, cantando. Ide, filhos do samba, ide cantando para a vida que vos
separará e vos humilhará um a um pelas esquinas do mundo.”(Rubem Braga, O conde e o passarinho.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1936, p.100). Nessa época, Rubem Braga estava inventando
na crônica um estilo de inquietação política altamente pessoal: “Aqui encontrareis os queixumes
e os palpites de um jovem jornalista pequeno-burguês, de um país semi-colonial. Também encontrareis
um ou outro sorriso. Mas não muito alegre. Sempre tive maus dentes e não conheço, por isso, o riso
rasgado, fácil e feliz” (idem, ibidem, p.7. Este “Prefácio” foi tirado das edições seguintes.). Era a mesma
conjunção de lirismo e luta de classe, inspirada pelos experimentos oswaldianos, que tanto Braga
quanto Jorge Amado, em seus romances dos anos Trinta, incorporaram para radicalizar as contradições
sociais, sem deixar no entanto de poetizar a consciência política crescente das classes pobr es e
espoliadas. É preciso estudar o impacto de O Homem do Povo, de Serafim Ponte Grande e seu prefácio,
das colaborações jornalísticas de Oswald sobre estes dois escritores que estavam inovando a partir da
experiência modernista (diferentemente do Romance do Nordeste que a rechaçava) a agitação política
na literatura brasileira.
21 ANDRADE, Telefonema, p. 316. O “Telefonema” é de 12/11/1949.
22 ANDRADE, Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias, p. 79.
23 Oswald de Andrade, Chão. Marco Zero - 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL - MEC,
1974, p. 202.
24 “...continuo a afirmar que cada fase conduz em si a sua própria subversão. Veja como num período
em que dominou o individualismo exaltado de Adam Smith a Jeremias Bentham, houve os adeptos de
Maquiavel, houve os jesuítas e houve Kant. As contradições permanecem e se avolumam.
VOCÊ - E isso não tem fim ?
EU - Se fosse um antr opófago transcendental, eu diria que não.
Na apresentação da obra de Bachofen, escrita em 1935 para o público francês, Walter Benjamin se
ocupou em discernir a teoria do M atriarcado do sábio suíço da apropriação que faziam dela os teóricos
do Fascismo, entre os quais Klages. Esses continuadores a empregavam, insistia Benjamin, para justificar
uma sociabilidade tutelada e a submissão masculina às forças orgiásticas do símbolo (necessárias
à ideologia nazista), em detrimento do equilíbrio do ponto de vista de Bachofen: “Equilíbrio entre a
veneração do espírito matriar cal e o respeito à ordem patriarcal. Equilíbrio entr e a simpatia pela
democracia arcaica e o conservadorismo da aristocracia de sua cidade [Bâle, na Suíça]. Equilíbrio entre
a compreensão do simbolismo antigo e a fidelidade às crenças cristãs. Retenhamos este último . Pois
face às teorias de um Klages, nada merece tanto ser sublinhado como a ausência de neopaganismo em
Bachofen. [...] Pois se os sentimentos de Bachofen o inclinavam para o Matriarcado, sua atenção de
historiador permanece sempre fixa no advento do patriarcado, cuja forma mais alta está representada
para ele pela espiritualidade cristã.” (Walter Benjamin. “Johann Jakob Bachofen”. Eco. Bogotá: nº
221, março, 1980, p. 549).
27 Talvez haja algum paralelo com a situação descrita por Marcuse para o Existencialismo francês: “A
absurdidade histórica que reside no fato de o mundo não ter sucumbido após a derrota do fascismo,
mas sim retornado a suas formas anterior es, de não ter empreendido o salto para o reino da liberdade,
mas sim restaurado com honras a disposição anterior – essa absurdidade vive na concepção existencialista.
Mas vive nela como um fato metafísico, não como um fato histórico.” (Herbert Marcuse. Cultura e
sociedade . Vol. 2. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p.53).
28 Carlos Drummond de Andrade. O avesso das coisas. Aforismos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora
Record, 1990,p. 16.
29 Refiro-me à série numerada de “Meditações”, escritas durante o internamento no Hospital Santa
Edwiges em abril de 1954 (a poucos meses de sua morte, portanto) - ver Telefonema, pp. 411-414.
Lembro que Benedito Nunes já associara a persistência desse “sentimento órfico” à influência do
“Catolicismo arr ebatado” de Oswald no período anterior ao Modernismo, do qual ele guardara “um
núcleo teológico irr edutível” (Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 47).
30 “Tudo tendia se não à revolução pelo menos à renovação e à renovação profunda. Mas atuava um
grande amortecedor – o sr. Getúlio Vargas.” (ANDRADE, Telefonema, p. 420). O texto é de 26/9/
1954.
31 Entre as invenções fortes de Telefonema está o comentário político que ressalta a ciranda de posições
e o apequenamento da conjuntura brasileira. Nessa linha, O swald produziu páginas excelentes como
“Da política local”, “Da luta”, “Da ressurreição dos mortos”.