Rio, 13 de outubro de 1967
Vera querida,
Como vai? Pergunto, agora, porque esquecí-me de fazê-lo há meia hora pelo telefone. Além de minha preocupação em ser rápida, sustentava os olhares quase assassinos dos dois velhos gerentes, (ou donos), do Hotel, principalmente ao me ouvirem falar de minha precária situação financeira.
Mas, Vera, como você é louca e faz as associações de idéias mais esquisitas: perguntar-me por uma mulher “imbecil – desquitada – mineira, sentada numa cadeira de balanço e vomitando asneiras o tempo todo!”. Isto porque lhe mandei um conto rasgado que você já lera, “enquanto eu penteava os cabelos, com um pegador de roupas no nariz, naquela casa estranha, com cachorros subindo pelo pescoço da gente, quadros horríveis, homem de pijama na sala, menina retardada de tênis e perna salpicada de alvaiade”.
Vou escrever um conto juntando toda essa loucura e vai sair lindo, quer apostar? Mesmo porque, você desmoralizou tanto a casa e seus habitantes, deixou tão óbvia sua reprovação ao meu mau gosto em escolher moradia, que fui tomada por todos os sentimentos negativos: briguei com a dona da casa, joguei trinta livros pela janela – e fui parar no Hospício.
O final da aventura foi minha ida desesperada para Belo Horizonte (onde jurara não pôr mais meus sábios pés), com o vestido do corpo, um sapato velho e, não sei porque, um livro de Samuel Bechett ( teatro), lindamente encadernado.
Falei mal de você durante dois meses. Começava, assim:
“ A Vera é, sem dúvida, uma agitadora nata. Ou terrorista. Chega desencadeando a revolta, acompanha até certo ponto o movimento e, na hora do pânico, está em outra parte da América Latina”.Em seguida, narrava a minha odisséia.
O Delpino foi um que ouviu, deslumbrado.
Agora sou bem capaz de ir procurar a tal idiota – desquitada – mineira, só por masoquismo – pois você me despertou desejos incompreensíveis, justamente quando me acho tão bem disposta, equilibrada e dinâmica.
Tenho mil coisas a contar-lhe. Irei por etapas:
A Aparecida esteve aqui, você sabe. Gostei dela, principalmente ao ouvi-la falar mal do Celso, de quase toda a família e de Minas Gerais em peso.
Em contrapartida, falei mal de noventa por cento da humanidade, não respeitando estados, nem nacionalidades. A burrice, a hipocrisia, o egoísmo, tudo – são universais.
Você me achou triste na minha última carta. Eu já nem mais estava triste, Vera, eu estava arrasada, quase ruída. Foi, deveras, uma experiência quase mortal a de tentar coexistir com o Cesarion. Ele não tem o menor respeito humano por mim, tratava-me como a um ser muito inferior, menos do que a sua empregada.
Quando você mandou aqueles cem mil cruzeiros, eu havia dito a ele para não aceitar, pois você trabalha muito, não seria justo. Naturalmente, ele fez o contrário. Ele acha que todo mundo deve ajudar-me – menos ele. Agora, por exemplo, tomo refeições em casa de amigos, jornalistas. São do Jornal do Brasil. O Cesarion sabe, mas não se constrange.Enfim, isto não tem importância.
Estou muito bem, ando o dia todo tomando providências, tenho saído bastante à noite, vou ao cinema, teatro, e tudo.
Um amigo meu, Otoniel, artista de teatro e funcionário do MEC, veio morar no meu hotel. Leva-me ao teatro, diverte-me, também passa fome, mas nenhuma desgraça consegue abatê-lo. Costumo dizer-lhe que só conheço duas pessoas no mundo capazes de desmoralizar todos os infortúnios, desmoralizando-os até a comédia: Você e ele. São, todos dois, muitos sãos de espírito.
Em Niterói eu estava morta. Passei quase quatro meses sem ver ninguém, sem falar, tolerando as agressões do Cesarion e tudo fazendo para não entrar no seu jogo. A doutora explica-me: Ele quer que você brigue, dê um escândalo, pois assim se justifica. Leia: “Fiz tudo para ajudá-la. Todos sabem. Foi inútil”.
“Não entre no jogo dele, Maura”. E eu não entrei, realmente.
Vera, eu ganhei mais de vinte anos de vida, com os meus oito meses de psicanálise. Estou tão diferente. Conservo-me lúcida. Entretanto, não mais agrido. Minhas armas, agora, têm sido a compreensão ou a ironia. Ao mesmo tempo estou percebendo o afeto das pessoas por mim, tenho me relacionado muito bem e com várias pessoas, estou mais ou menos sociável, e não dou muita bola para o julgamento alheio. Só o necessário, para não entrar
Ocorreu-me uma coisa linda para escrever-lhe: A epígrafe do meu Diário, No Quadrado de Joana. Tirei-a de Rimbaud:
“Quando somos muito fortes, - quem recua? Muito alegres, - quem cai de ridículo? Quando somos muitos maus, que fariam de nós? “.
“Sou de uma raça longínqua; meus pais eram escandinavos: eles se trespassavam as costas, bebiam o próprio sangue”.
“Eu me via diante de uma turba exasperada, defronte do pelotão de fuzilamento, chorando a infelicidade de eles não me terem podido compreender, e perdoando, como Joana D’Arc!”. Padres, professores, patrões, enganai-vos entregando-me à Justiça. Jamais pertenci a este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício. Não compreendo as leis; não tenho o senso moral, sou um bruto: vós vos enganais”. Rimbaud.
Você não acha que é a melhor epígrafe para meu Diário?
“Nela apareceu um homem delgado, de débil aspecto àquela distância e àquela altura, que se inclinou para fora e estendeu os braços ainda mais distantes para a frente. Quem era? Um amigo? Uma criatura bondosa? Alguém que participava de sua aflição? Alguém que queria socorrê-lo? Era ele o único? Eram todos? Era ainda possível alguma ajuda? Não haveria objeções que se tenham esquecido? Com certeza que as havia. É certo que a lógica é inquebrantável, mas não pode opor-se a um homem que quer viver. Onde estava o juiz que nunca tinha visto? Onde estava o Alto Tribunal ante o qual nunca comparecera? Elevou as mãos e separou todos os dedos”. Kafka. O Processo.
O Cesarion me disse que você escreve política no jornal. Ótimo. Fale-me de você em suas cartas. Vou mandar-lhe três contos para você escolher o que deve ser publicado. Além do “imbecil – desquitada – mineira”.
Amanhã irei ao “Sol” tirar cópias dos contos. Domingo, ou hoje mesmo, começarei o “Imbecil”. Minha máquina está empenhada. Há dois editores dispostos a publicar meu Diário. Vou propor a um deles tirar a minha máquina do penhor, pois preciso passar um terço do Diário a limpo. O José Álvaro editor, ou o João Luiz Medeiros, que é o dono da Editora, não quer publicá-lo porque considera uma temeridade lançar um livro contendo nomes de pessoas tão em evidência em situações inglórias. Ele é burguês e muito comprometido. Mas vai publicar um livro de contos, meus. Estou copiando os contos do Reynaldo Jardim, que os tem. Será para breve. Eu gostaria muito de escrever crônicas. Vou fazer uma porção e mandar-lhe. Se você gostar, talvez consiga aí uma coluna para mim.
Vera, parece mentira, mas ninguém quer me dar emprego. Há um mês estou no Rio, emagreci oito quilos, ando o dia todo, vou aos jornais – e nada! A Luci Bloch atendeu-me ao telefone de maneira totalmente vaga. Não se lembrou de mim, a princípio, apesar do Cesarion ter-lhe mandado o meu livro. Depois, lembrou-se e pediu desculpas, disse-me ser muito procurada e mandou-me falar com um tal de Arnaldo Niskier – e pedir-lhe para fazer um estágio. Assim mesmo, tentei duas vezes, não o encontrei. Você não acha que ela quis se livrar de mim? Meus amigo consideram um absurdo eu fazer reportagem. Quanto a mim, numa revista como a Manchete, confesso que gostaria de experimentar. Acredito que o Castello Branco se dê com ele.
Agora, imagina você: estou aposentada. Não, oficialmente. O processo acha-se na Social do Ministério. Conversei, hoje, com o Dr.Bergamini (chefe de lá), ele perguntou-me se não fui examinada por uma junta médica da Biometria. Não, não fui. Nem sequer sei onde fica a Biometria, ou conheço alguém (médico) de lá. Estou com um ofício da junta do IPASE, afirmando que posso e devo voltar ao serviço, assinado pelo Professor Neves Manta, chefe. Diante desta confusão toda, o Dr.Bergamini aconselhou-me a pedir ao Edson Franco para segurar o meu processo, enquanto peço revisão dele, isto é, uma passagem pela junta médica da Biometria. Se o processo for engavetado eu continuarei trabalhando normalmente e não se falará no assunto. Mas, acontece que, junto ao Edson, ser-me-á fácil conseguir minha readaptação em outro nível. Depois, me aposento. Não entendo nada de burocracia, Vera, mas o Edson podia, perfeitamente, conseguir tudo para mim.
Aliás, o Edson Franco está bem a par desta confusão. Disse-me que apenas dez por cento dos funcionários ocupam funções condizentes com suas capacidades. Ele foi muito gentil comigo, disse-me que terá muito prazer em deixar-me na secretaria. Estou muito cansada, começo a escrever mal, é meia noite, andei o dia todo.
Um beijo.
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