sexta-feira, 4 de julho de 2008

A Solidão dos Outros: Lições de Abismo

A SOLIDÃO DOS OUTROS III: Lições de abismo



O que pode sentir um sujeito condenado à morte? O que pensa sobre a vida, sabendo que dela não lhe resta muito tempo, não podendo esconder de si mesmo esse mal, essa fatalidade abissal que sugará o fio de luz que o faz existir?

Um homem condenado à morte pressuponha-se um criminoso, esperando da cadeia que sua sentença seja finalizada. Mas não é só isso, sabemos. É também qualquer um cujo médico já lhe disse “seu tempo é curto”.

“Seu tempo é curto”, foi mais ou menos o que disse o médico de José Maria, personagem do livro de Gustavo Corção (1896 – 1978), Lições de abismo, escrito na década de 50 do século passado, na efervescência do existencialismo.

Aos 50 anos de idade, o narrador-personagem, há dez, abandonado pela mulher e pelo filho, descobre que tem câncer no sangue e que sua vida não dura mais do que seis meses. É a última carta. É o deparar-se com algo muito íntimo e singular. A morte é alguma coisa pessoal e intransferível. Nesse momento, o sujeito percebe que seu caminho é solitário, e se vê só, diante do abismo.

José Maria, descobrindo-se um ser-para-a-morte-próxima, começa a escrever um diário, comentando suas experiências, relacionando fatos, meditando, escarafunchando, tentando, enfim, manter-se vivo por alguma razão. Nessas elucubrações, ele acaba relatando o conflito da alma diante da morte, chegando mesmo a compor uma espécie de ode à morte, um hino à solidão.

É um livro deveras lindo. É tocante o esforço do personagem para chegar a lugar nenhum. O romance de Corção é carregado de imagens maravilhosas. Uma delas encontra-se no começo, quando fala sobre o esforço, por dias a fio, às vezes meses, às vezes anos, para se compor uma bela sonata, com sofrimentos, tentativas malogradas, sono perdido, e no final, faz-se uma obra que dura 30 minutos. Mas 30 minutos que encantam. E ele pergunta: “não será a própria vida uma longa e desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose?”.

A resposta para tal pergunta depende, claro, do humor de cada um, e da experiência de vida que se teve. Em todo caso, quem consegue fazer da vida pelo menos uma sonata, conquanto bela, deve dar-se por satisfeito. Na maioria das vezes, mesmo vivendo muito, tudo que se consegue construir é uma discoteca de polcas mal feitas.

Ao passo que vai morrendo, José Maria lamenta não ter finalizado seus projetos. Tantos planos, tanta coisa que não fez, o livro que não escreveu, o combate que não combateu. Mergulha no lamento, repassa o existencialismo e a metafísica.

No auge de sua solidão, ele recorda seus tempos de criança, quando lia Júlio Verne. E é neste, num de seus livros, que José Maria vai buscar inspiração para refletir sobre sua condição de ser-que-despenca-para-a-morte. Ele cita Viagem ao centro da Terra, em que o comandante professor Lindenbrock, “antes de descer às profundezas, ensinava a galgar as alturas, e a esses salutares exercícios dava o nome de ‘Lições de Abismo’”.

Em crise, José Maria indaga: “E a mim, quem me dará as lições de abismo? Eu também vou fazer uma viagem ao centro da Terra, embora menos interessante que a do sábio hamburguês. Minha penetração na crosta do planeta se deterá a dois metros de fundo, nessa superficialíssima camada sem nenhum interesse geológico ou paleontológico”.

As lições consistiam em aulas sobre as estrelas, que também são abismos para o alto. E dizia o narrador: “Foi sempre assim: o homem, quando quer saber onde pisa, olha para o céu; quando quer regular seus movimentos, procura o imóvel”. De fato, as estrelas sempre foram o norte da humanidade, de coordenadas geográficas a espirituais. Que solidão!

José Maria olha para o alto e vê estrelas, e indaga sobre elas, numa atitude vã, como ele mesmo reconhece: “pra que tantos astros?”. Ou seja, o abismo está acima e abaixo de nós, e ainda dentro de nós, na elevação do espírito e no reconhecimento de nossa insignificância na imensidão desses espaços infinitos.

E José Maria se dá conta de sua condição ínfima: “verme colado a um grão, serei um microscópico monstro de acaso”. O mesmo sentimento de Pascal, consciente de nossa pequenez, e que dizia: “o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”.

E assim a caravana passa. Através dos dias, José Maria alivia seu câncer escrevendo, remoendo as imagens na memória, tentando compreender as lições de abismo. É, acima de tudo, um bravo. Escreve quase todos os dias, desde pouco tempo depois de descobrir que tinha câncer.

Escreve para matar o tempo, para esperar. As palavras são sua cama, de onde ele espera a morte inevitável, e espera só, porque os outros são transeuntes. Como ele mesmo diz, o doente se mantém na espera, enquanto os outros passam.

O que José Maria escreve, em suma, são solilóquios. Solilóquios da solidão e da morte. Sua última lição vale toda a cavalgada. É uma espécie de sonata, composta ao longo de sua agonia.

Ele então diz: “a descoberta do eu (...) se completa nos abismos da subjetividade”, e há algo de Nietzsche nessa frase. Ou seja, a solidão às vezes é necessária, principalmente quando em vida, e não ao pé da morte, porque aí já é redundância.

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