sexta-feira, 11 de julho de 2008

Um conto de Maura Lopes Cançado: O Sofredor do Ver

Ando deveras muito preocupada com o que se passa ao meu redor. Não que tema morrer; em vez disso, sindo medo de me ver eternizada em bloco de pedra, ou mesmo continuar como estou: esperando, esperando, apenas esperando salvar-me dos rostos quadrados, fugir e encontrar pessoas com as quais possa falar, sem que minhas palavras se percam no vácuo, inúteis. Porque vivo sozinha num mundo cada vez mais estranho, fantástico, monstruoso. Não que as coisas tenham se modificado tanto. Desde menina este encarceramento me sufoca, minha coragem foi sempre formada do desejo de evasão, o desespero de fuga deu-me forças até hoje. Ignoro mesmo se existe um lugar onde se movam pessoas e esta dúvida pode ser a causa da crescente inquietação que me domina, pois ameaça ruir minha única esperança. Não: tudo se agravou mesmo depois da morte do espelho.

Não costumo sair de casa. Os dias são distantes, depressa, e quase nunca há sol. Habito um apartamento de andar térreo, um pouco escuro, ainda curante o dia, luxuoso e antigo, onde moram três outras criaturas. Ignoro porque moramos juntas. Conheço-as há pouco tempo. São mais ou menos parecidas com as que tenho visto, apesar de sabê-las mais perigosas - decerto pela proximidade. (Na verdade, gostaria de me mudar. Conheço, porém, a inutilidade das mudanças.) Falam demais, andam constantemente armadas, usam com ferocidade os dentes. Estão sempre gordas de razão. Esqueci-me de dizer que são mulheres, estas tremandas criaturas. Apesar deste detalhes, uma delas deixou crescer vasto bigode, que a tornou um pouco mais simpática, ocultando-lhe as presas, fortes, ameaçadoras. Ao levantar-me de manhã, para ir à cozinha fazer meu café, encontro-a, articulando a possante madíbula, no trabalho pertinaz da primeira refeição. Cumprimento-a delicadamente, esforçando-me em parecer afável. Tenho por resposta o rosnar ameaçador de como se protege a caça. Nem sempre consigo tomar até o fim o meu café. A criatura rosna impaciente, às vezes uiva, dançando pela cozinha, dando-me a impressão de grande exagero na sua manisfestação, creio, de alegria.

Volto ao quarto e me deito sob os cobertores, enquanto outra se veste rápida, precisa, para chegar na hora exata à primeira aula do Curso de Geologia. (Ocupamos as duas o mesmo quarto.) Antes de sair, faz ginástica. Conseguiu desenvolver de tal modo os músculos das pernas que, por várias vezes, julguei entrar um edifício inteiro pelo quarto, em sua construção exótica: pilares gigantescos sustentando pequeno tronco, enquanto a cabeça rodava, bola, distante e pequena como a cabeça de um alfinete. Após a ginástica arruma, sempre ráp[ida, precisa, a metade do aposento que lhe pertence, jogando, debaixo e mesmo sobre minha cama, grandes pedras, por ela colhidas diariamente nas praias. Pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, atiradas pela intrépida criatura: mecânica-rápida-organizada. Gostaria de impedir que meu corpo se expusesse diariamente a estas pedradas. Não vejo solução, já que deitar-me sob os cobertores é a maior proteção por mim encontrada. Se abandonar o quarto, enfrentando olhares antropófagos nas ruas, corro o risco de, ao voltar, achar toda a cama tomada. E me sentiria impossível argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa.

Não que me ache conformada. Tentei protestar uma vez mas a estudante continuou, so9lene, limpando os móveis. Depois, sem pressa, meteu-me uma grande pedra na boca, deixando tranqüila o quarto. Mais tarde, escutei-a relinchando na sala para as outras, que eu cacarejo demais e não sei marchar. Não a compreendi. Ainda assim fui possuída de grande raiva, tomei de uma arma esquecida por uma delas na dadeira, tentei atingi-la nas costas. Não consegui e terminei amarrada em trouxa dentro de meu próprio cobertor, onde passei dois dias. Ao libertar-me, grunhiu qualquer coisa, como sentir pena dos meus compromissos. Que ignoro quais sejam.

A terceira criatura é tirana - e muito boa pessoa. P:roibiu-me mover rápido a cabeça para os lados, temendo que o ar sinta-se demais agredido. Assim, ando pelo apartamento buscando ver sempre o que está à minha frente. Se me viro, faço-o com delicadez. Esse cuidado me traz em constante tensão. É uma mulher pequena, rosto quadrado, cabelos duros de torre; vai sempre ao cabelereiro. Costumo confundi-la com os objetos da casa.

Como já disse, evito sair à rua. Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam. Além dos olhares assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam ruidosas pela cidade, conduzindo dentro delas outras pessoas. Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas janelas dos seus ventres.

Não prefiro coisa alguma. No entanto, saio às vezes, principalmente à noite. Vem buscar-me um ser que desconheço - embora venha buscar-me. Mostra-me os dentes, parece quase sempre irritado, joga-me porta a fora como se eu fosse um saco de abóboras. Costuma também relinchar, mostrando toda ferocidde nos dentes brancos. Nas ruas, busca proteger-me. Apesar de já me haver deixado sozinha, entregue às feras, habitantes de um certo subúrbio. Este ser talvez me quisesse dizer algo. Vejo-o luzente, vestido de alumínio, brilhando de noite à minha frente. Não seria sua maneira de rir? Indago-me se essa lata possui um coração.

Além dele, visita-me, não se para quê, outra criatura, um pedaço de tronco fino de árvore. Sentado à minha frente, discorre longamente sobre pulgas, galinhas e percevejos. Depois do quê, sai sem se despedir, encolhido em sua própria casca, morena, rugosa.



Ruas fervilham. Duelos se dão e todo instante. Mulheres se odeiam, beijando faces umas das outras. Muitas enxertam carne de vaca nas nádegas. Nem por isso perdem o jeito mau e duro de andar. Mostram as presas, se as olhamos dão constantes coices. Homens comem ávidos, o hálito podre provocando náusea. Mas é então que as fêmeas se agitam de todo, coiceam e relincham, movendo caudas e crinas. O asfalto queima.

Encolho-me no apartamento, sofrendo a presença das três horrendas criaturas. Gostaria de viver sozinha, ou pelo menos possuir um quarto, onde não me atormentassem tanto. Móveis animados passeiam o dia todo pelo aposento. Ouço ruídos esquisitos.
Tudo se tornou demais difícil depois do crime da futura geóloga, assassinando o espelho com uma pedrada. Considero esse crime a maior desgraça em minha vida, inútil, calada, vazia. Foi o espelho a única criatura humana que conheci. Desde a infância habituara-me a ele e não havia como temê-lo. Vê-lo diariamente, minha grande aventura. Contemplava-lhe a figura trêmula, hesitante, de olhos escuros, amáveis. O espelho possuía de medo o rosto branco. Tinha de medo o rosto. Aquele belo rosto quase sempre triste levou-me a admitir, em algum lugar, outros rostos, outras pessoas, outros medos, outras lágrimas. Esqueci-me de dizer que, se nenhuma dessas criaturas parece alegre, nenhuma também se mostrou ainda triste. É deveras sombrio. Existe em tudo grande ordem. Jamais vi alguém subir correndo uma escada, saltar dois ou mais degraus. Fazem-no um por um, meticulosos. Sou obrigada a seguir o que se estabeleceu ou desperto cólera. Começo a perder a noção do tempo. Acompanhando o crescimento do espelho acompanhei meu próprio crescimento. Vendo-o se transformar, tive consciência de minha infância perdida. Cada vez mais o espelho se tornava adulto, o que me obrigava a admitir-me também assim. Já não sei, mas talvez eu esteja quase velha. Tenho chorado muito. As caras de cimento armado acusam meu rosto molhado de deterioração. Mas é que tenho chorado. Diariamente tomo entre as mãos a caixa onde estão os restos mortais do meu amigo. E sofro. Sozinha, sem outro rosto, outra esperança, é-me impossível voltar a acreditar.

Do site e revista editado por Sônia Coutinho:
http://www.sidarta.blogger.com.br/2003_03_30_archive.html

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