O
Estranho Caminho de Hemin-gay
Sentado
em seu gabinete, Yuri fumava um charuto. A seu lado, Juliano, candidato a
orientando, expunha sua teoria sobre Hemingway.
_Você
sabe que dou aula de Religião II. Não sei se cabe...
_A
estranha divisão que depois Greg Hemingway apresentou já estava em Ernest.
Ernest aparece vestido de menina na infância, e há, na obra do grande escritor,
passagens tocantes em que um homem e uma mulher que se amam são tentados por
uma inversão de papéis pela qual o homem se tornaria mulher nos braços de sua
amada.
_Eu teria que pensar em
como encaixar esse projeto em uma pesquisa sobre religião aqui junto aos
jesuítas...
_A
pesquisa vai envolver as cenas da festa religiosa de São Firmino no romance O Sol Também se Levanta...
Yuri
sorri e olhou com ceticismo o rosto entusiasmado de Juliano. O rapaz continuou
falar:
_Jake Barnes tem uma
admiração platônica pelo físico do personagem Cohn.
_E
com o conceito de platônico você abarcaria o cristianismo em seu arcabouço
intelectual? Yuri ria internamente, mas exteriormente mantinha-se sério.
--Exato! Juliano quase
deu um salto na cadeira de entusiasmo, como se outro lesse seus pensamentos.
O
professor de Religião II do Instituto Soldados de Cristo tragou o charuto e fez
uma expressão séria. A estratégia era deixar o outro falar, falar e falar, até
que finalmente chegasse aos paroxismos do absurdo, ponto onde ele poderia
arredar pé de todo o discurso formulado anteriormente.
_Sabe,
poderíamos relacionar a festa do Congado mineiro com a festa de São Firmino
comentada no romance de Hemingway...Tem tudo a ver!
_Não,
Juliano, isso é ir longe demais. Você está mais ousado do que Juliano, o
apóstasa.
_Mas
note que interessante teoria histórica o romance desenvolve. Abraham Lincoln
era um efeminado e estava apaixonado pelo General Grant!
_O
sexo explica tudo, isso é a causa da guerra civil. Como ninguém pensou nisso
antes, Juliano?
__Jefferson
também.
_O
que é que tem Jefferson? Yuri buscava, novamente, assumir o papel de superego
do rapaz.
_Jefferson
também era gay, também estava apaixonado pelo General Grant.
_Hum...o
que temos aqui? Um triângulo amoroso gay. O sexo explica a guerra civil
americana. Mas o que tem isso a ver com religião? Procure inteirar o
departamento de História desses seus devaneios!
_Não
é devaneio. É científico.
Yuri
deu um suspiro.
_Sabe
o poema The Ladies, de Rudyard
Kipling? Aquele verso sobre Judy O´Grady e a mulher do coronel.
_Vai
entrar também?_ Yuri já demonstrava estar próximo do limite _ Num projeto seu
na Letras, né?!
_A
mulher do coronel e Judy são irmãs debaixo da pele, um verso que hoje é
considerado preconceituoso, pois as mulheres não são iguais debaixo da pele.
_A
mulher do coronel e Judy O´ Grady são lésbicas até a medula.
Yuri
finalmente mostrou-se saturado.
_Sabe,
Juliano, gosto de seus papos, de seus devaneios, aprendo muito, mas redija os
projetos, para Letras e História, eu leio, tá? Mas para eu te orientar, não dá,
infelizmente.
Juliano então junto sua
pasta e saiu da sala. Ainda na porta, ameaçou:
_Eu volto amanhã, viu?
Na
outra tarde, Yuri resolveu pensar muito antes de atendê-lo. Deixou-o esperando
a tarde toda. Quando obteve uma brecha, Juliano já entrou no gabinete de Yuri
na universidade com uma pergunta na ponta da língua:
_Yuri, você acha que
Hemingway foi homossexual reprimido?
_Não
sei...Será que podemos usar o conceito de Freud, conteúdo manifesto enquanto
contrário ao conteúdo latente?
_Em seu romance póstumo
e inacabado, O Jardim de Éden, o alter
ego de Hemingway, um escritor chamado David Bourne, pede a sua mulher que corte
o cabelo e depois o sodomize com um consolo, prática que o próprio Hemingway
teria praticado com sua esposa Welsh.
_Talvez fosse apenas
uma fantasia para apimentar um romance já em vias de fracassar, né, Juliano.
Juliano prosseguiu, ávido:
_A hipermasculinidade
era parte do que ele era. Era real e autêntica.
_Não teria sido apenas
uma máscara de seu ego?
_Fraudulenta...
_Era real e
verdadeira...
_Acho que foi
homossexual, mas com sentimentos contraditórios. Nunca sugere atração por
outros homens.
_Há também a questão da
relação com seu filho mais novo, Gregory.
_A bicha louca?
_Gregory pode ter
realizado o que o pai só admitia em seu foro interior.
_É a lógica da franga
encurralada, como disse o escritor Marcelo Mirisola.
_Um Hemingway autêntico
teria dito que seu nome de família não poderia nunca servir de pôster infantil
de Viagra, como Mirisola colocou em um dos contos dele. Aliás, Mirisola não
presta.
_Você quer fazer juízos
morais sobre os autores, sem entender nada de literatura.
_Se
você vai me tratar assim, desisto.
_Não
se aborreça com minha sinceridade, Juliano. Eu só exerço a verdadeira
severidade com os bons.
_Resta
saber se você também é bom...Disse Juliano amargamente, encerrando a conversa.
Para
surpresa dos amigos, em especial de Juliano o solteirão recatado Yuri vestiu-se
de cocktail preto e dirigiu-se a uma
pequena festa privada no sofisticado Retiro das Pedras, condomínio de luxo
perto de Belo Horizonte.
Ele
se apresentou aos amigos como "Vanessa" e passou a maior parte da
noite na cozinha, conversando com condôminos em trajes de country club. Os amigos disseram que ele não ficou bêbado.
"O
estranho era que ele parecia feliz", pensou Juliano, que nunca havia visto
seu velho amigo vestido de mulher antes.
Menos
de 24 horas depois de apresentar com sucesso sua identidade feminina a alguns
de seus amigos mais antigos e respeitáveis de Belo Horizonte, ele ressurgiu em
um bar da Savassi. Talvez ele quisesse comemorar seu triunfo em um bar local,
disse Juliano.
O
fato é que, por volta das quatro da tarde do dia seguinte, 9 de julho, Yuri foi
visto desfilando nu pela Avenida Nossa Senhora do Carmo, com um vestido e
saltos nas mãos. Ele foi preso, então, por exposição indecente e resistência à
prisão.
No
dia primeiro de outubro, seu sexto dia na prisão, Yuri, que sofria de sofria de
pressão alta e doenças cardíacas, levantou-se cedo para comparecer ao tribunal,
começou a se vestir e de repente caiu de cueca no chão de concreto.
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