OS ALICERCES DA MATRIZ E AS PROCISSÕES DE PENITÊNCIA
LÚCIO EMÍLIO DO ESPÍRITO SANTO - Não é fato histórico desconhecido que a imponente edificação que embeleza o ponto central de nossa cidade – a Igreja Matriz, foi obra, tão sonhada quanto ousada, da própria comunidade católica de Bom Despacho. Sob a liderança do legendário Padre Augusto, que mobilizou a população e suas lideranças, todas unidas em torno de um projeto que hoje é símbolo da nossa força e coragem. Natural que as lembranças fragmentadas dos lentos e dolorosos passos estejam vivas na memória escrita e oral, sobretudo de quem carregou pelo menos uma pedra para depositar nos alicerces daquele monumento que irá atravessar os séculos, como ponto convergente da fé e esperança da família bom-despachense.
Nos meus alfarrábios, encontrei um depoimento do ex-inspetor do Banco do Brasil e depois pecuarista no Norte de Minas, Ângelo Madeira Gontijo (1919-2020), descendente dos primeiros povoadores das paragens do São Francisco, na Fazenda Piraquara, enlaçando sua linhagem à do Padre Belchior, à Júlia, a francesa, ao Zé da Vó Gontijo, seu avô, talentoso poeta, e tantas outras figuras que marcaram época no século XX. Eis o registro feito por Ângelo:
“Você talvez não saiba, meu jovem conterrâneo bom-despachense, que grande parte das pedras dos alicerces da Matriz não foi transportada por carroça ou caminhão e sim na cabeça dos humildes devotos. O valor da penitência na remissão dos pecados era exaltado nas homilias e sermões do Padre Augusto. Entre as penitências se destacava aquela que resultasse em benefício da construção da Matriz. Padre Augusto organizava então as procissões de penitência, que partiam da Praça da Matriz e iam até a Rua da Pedreira, onde cada devoto pegava uma pedra e carregava na cabeça ou no ombro até a matriz em construção. Valiosas procissões que remiram muitos pecados e contribuíram para o barateamento da construção da bela matriz, resultante da criatividade do Padre Augusto e do gênio de um homem simples, o inesquecível José Etelvino.”
Esse depoimento, na sua singeleza, mostra uma faceta que acaba dando uma conotação até agora pouco explorada ou não explorada da construção de um dos templos mais belos da arquitetura católica. As pessoas que transportaram pedras, que variavam de peso de acordo com as culpas e pecados de cada devoto, não o fizeram simplesmente para ajudar a construção ou por espírito de imitação. Na acepção de Ângelo Gontijo, um ex-aluno do Seminário do Caraça – homem de fé, com certeza – as procissões remiram muitos pecados e a remissão dos pecados deixou uma obra grandiosa. Quando contemplamos a Matriz, com suas cúpulas, vitrais, agulhas, a torre de altura inusitada, o raro mármore de seus altares, muitas vezes só admiramos a riqueza desses detalhes, que, sem dúvida, provocam intensa emoção estética. Mas, o simbolismo desse monumento passa, às vezes, despercebido. Conforme o testemunho de Ângelo Gontijo, nos alicerces da Matriz, sob o signo das pedras que sustentam o peso da grandiosa edificação, está a mística da redenção das culpas. Padre Augusto sabia que, se quisesse realizar o seu sonho, não tinha outro caminho.
Contou com a fé que arrasta montanhas. Lembrando aqui as reflexões de Mário Morais, em seu livro de memórias Rastros na poeira, houve quem doasse grandes somas para a obra da Matriz, talvez pensando em remir suas culpas, mas a mais importante contribuição foi “a do homem comum, do homem do povo. Anônima, desprendida, constante, à custa de sacrifícios: essa participação não foi lançada em registros personalizados.” As pedras aliviaram as culpas, a cidade ficou mais leve e ganhou um monumento de rara beleza.
Lúcio Emílio do Espírito Santo é coronel reformado da PMMG, colunista, escritor e membro da Academia de Letras João Guimarães Rosa, da PMMG.
*****
NOTA DO EDITOR: O site do Jornal (www.ibom.com.br) está passando por renovação. Enquanto isso, as matérias completas estão sendo publicadas aqui no Facebook.
Nenhum comentário:
Postar um comentário