quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Imagens do Brasil em O Estrangeiro

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Belo Horizonte, v. 6, p. 211-216, ago. 2003
* Mestre em Letras: Estudos Literários (Área de concentração: Literatura Brasileira), 2001.
AS IMAGENS DO BRASIL EM O ESTRANGEIRO
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior*
RESUMO:
Neste estudo pretendemos analisar o romance O Estrangeiro
(1926), propondo uma nova abordagem ao texto e discutindo as
imagens de Brasil presentes nele. Nós concluímos que as
imagens de Brasil dentro do livro são construídas e
desconstruídas, e terminam em melancolia e amargura.
PALAVRAS-CHAVE: imagens de Brasil, nacionalismo, nação e narração.
A nossa vida [de brasileiros] é, no seu aspecto geral, e de um certo
período para cá, a marcha incerta e lenta, desgraciosa e constrangida,
de um povo que a cada passo que avança se volta, inquieto, para a
estrada de onde o estrangeiro o está contemplando a procurar, da massa
fria dos espectadores indiferentes, o sorriso de aprovação que lhe dê
alento para seguir.
Plínio Salgado
Durante a década de 70, Plínio Salgado (1895-1975) e sua ideologia, o
integralismo, foram objeto de atenção intermitente nas universidades brasileiras,
resultando em alguns estudos. Porém, o Plínio Salgado literato encontrou bem poucos
autores que analisassem suas obras. Com freqüência, historiadores e cientistas
políticos comentaram a literatura de Salgado apressadamente, para logo partirem
para hipóteses abrangentes.
O texto mais recente a ser publicado sobre o assunto, o posfácio de
Antônio Rago Filho para O Integralismo de Plínio Salgado, embora tenha elegido a
obra que ele posfacia, de autoria de José Chasin, como marco dos estudos sobre
Salgado, nos forneceu uma separação em duas vertentes, que adotaremos: numa vertente
estariam Hélgio Trindade, Gilberto Vasconcellos, Érico Veríssimo, Antonio Candido,
Marilena Chauí e Ricardo Benzaquem. Nessa, julgou-se o integralismo como fascismo
brasileiro. Já na segunda estariam Dutra, Chasin, Jardim de Moraes, Dorea, por
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julgarem que a obra de Salgado não foi mera cópia. Os dois primeiros autores deste
último grupo partiram desse pressuposto para relacionar Salgado com o Romantismo e
uma determinada tradição autóctone. A crítica literária Maria Augusta Dorea se
encaixou nesse segundo grupo, e junto com Jardim de Moraes, foram os autores que
buscaram inserir Salgado diretamente no Modernismo.
Em seu livro Brasilidade Modernista, Sua Dimensão Filosófica (1978),
Eduardo Jardim de Moraes analisou o pensamento desse autor, principalmente o texto
A Estética da Vida. O capítulo de Brasilidade Modernista que se intitulou “a versão
de Plínio Salgado”, texto onde esperávamos encontrar uma ligação entre Graça Aranha
e Salgado, iniciou-se narrando um episódio em que a ala carioca do movimento
modernista acusou Mário de Andrade de ter plagiado Graça Aranha. Comentou a seguir
a briga entre Graça Aranha e Oswald. Quando enfim se referiu a Salgado, analisou-
o juntamente com Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia, em meio a uma série de
artigos que os três lançaram juntos (O Curupira e o Carão, 1927). Jardim de Moraes
optou por não analisar nenhuma obra propriamente literária de Plínio Salgado. Com
isso, repetiu uma atitude comum aos críticos que falaram da obra, dando crédito ao
que Plínio Salgado afirmou a respeito do texto: O Estrangeiro teria sido o primeiro
manifesto integralista. Por outro lado, Jardim de Moraes estabeleceu relação entre
os conceitos produzidos por Graça Aranha e aqueles emitidos por Plínio Salgado,
abrindo espaço para nossa avaliação de O Estrangeiro como texto ligado à produção
de seus contemporâneos. Por motivos que iremos detalhar mais adiante, não acreditamos
em O Estrangeiro como um prelúdio do integralismo. Julgamos que o romance buscou um
enfoque original para a questão nacional, assunto muito em pauta no tempo da Semana
de Arte Moderna.
Supomos que, na tentativa que fez O Estrangeiro de sintetizar a problemática
nacional, esteve também o projeto paulista: uma vez definido o nacional, seria
possível propor São Paulo como modelo e padrão para todo o país. O Estrangeiro
findou por dar a entender o próprio esforço de abstração e racionalização como
responsável pelos fracassos. Num esforço de entender sua própria trajetória, o
personagem Ivan disse que não era o imigrante ideal para o Brasil, que este deveria
ser bronco e trazer as virtudes européias sem o saber, e Juvêncio concordou. Assim,
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ficou entre eles o consenso de que a tomada de consciência e reflexão trouxe vícios
e defeitos, sendo preferível a inconsciência. Em uma de suas falas, Juvêncio disse
que o caminho seguido pelos “materialistas inconscientes” seria o da decadência. Só
que a narrativa não confirmou isso: o caminho seguido pelos personagens que não
refletiram e se apegaram a oportunidades concretas (os Mondolfi, o Major Feliciano)
foi de ascensão social e política, respectivamente. Portanto, o Brasil que venceu
no final da narrativa foi o Brasil dos pragmáticos e dos não conscientes, dos que
não pensaram a respeito da realidade brasileira. Podemos supor que, embora O
Estrangeiro tenha surgido num ambiente em que existia a necessidade de pensar o
Brasil-nação, a narrativa demonstrou ceticismo em relação aos intelectuais que
antecederam os modernistas.
Como dito acima, O Estrangeiro foi uma narrativa ambientada numa época
motivada pela necessidade de se pensar o Brasil enquanto nação (os anos 10), motivo-
guia que permaneceu na década de vinte, mas esboçou uma ruptura com o modo de pensar
o Brasil-nação. Não surgiram, em O Estrangeiro, intelectuais com uma vocação
iluminista para os negócios públicos, nem os intelectuais foram capazes de gerar
consciência e interpretar corretamente a realidade. Por fim, notamos em O Estrangeiro
uma revolta destrutiva contra o que era a inteligência nacional, tanto em suas faces
mais participantes (Juvêncio) quanto céticas (Ivan).
No princípio do romance, o céu brasileiro era visto como livre de
pecados. Porém, num episódio do final, o imigrante apontou o Cruzeiro do Sul para
uma russa, e o interpretou como a cruz do suplício. Repetiu-se o movimento da
narrativa, que destroçou as imagens anteriormente emitidas por Ivan: “-Sou meu pai
e o meu filho! O devorador de minhas próprias imagens! Eu sou o Saturno da lenda!”
(Salgado, 1937: 223). A própria narrativa seria saturnina, no sentido referido pelo
personagem principal: a princípio ela gerou imagens ufanistas do Brasil, apenas
para canibalizá-las mais à frente. O imigrante era russo, mas se identificava com
a Europa, continente que vivia a guerra e a revolução. Ele gerou imagens de um país
jovem, uma terra da promissão onde ele se construiria, uma Atlântida reencontrada.
Mas a seguir tudo desmoronou: o tipo brasileiro não se definiu, a evolução social
não se completou, os primeiros mestiçamentos (brancos com negros e índios) falharam,
e, finalmente, o país seria mera cópia.
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Em O Estrangeiro, o que desencadeou esse processo autofágico foi a não-
realização pessoal, tanto na trajetória de Ivan quanto na de Juvêncio. Nenhum destes
conseguiu se realizar: Ivan poderia se entregar a uma vida de prazeres junto com os
Pantojos (que pareciam ter ido para São Paulo apenas por hedonismo), e Juvêncio
poderia ter se aliado ao Major Feliciano num triunfo nacionalista e oposicionista,
graças à entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial. Diante da possibilidade de
realização concreta, transformaram-se novamente em personagens insatisfeitos.
No romance, as imagens transitaram conforme o deslocamento geográfico
dos personagens: a desintegração da imagem de paraíso de Ivan começou no campo, mas
foi em São Paulo que ela desmoronou. Juvêncio também apresentou essa característica:
acreditava na assimilação do imigrante pelo espírito da terra e pelo folclore
enquanto morou em Mandaguari, e no sertão essa imagem anterior foi definitivamente
abandonada. A conclusão final de Ivan remeteu aos interditos: “Tudo é repetição de
cansados martírios e, nem a luta, nem a esperança dissimulam a nossa miséria. Este
país nasceu velho como a nossa Rússia; e tudo quanto aqui fizerem não será mais do
que acelerar a construção de novas barreiras e novos impossíveis” (Salgado, 1937: 281).
Se Ivan veio tentar construir uma identidade numa nova pátria, ele foi basicamente
um colono fracassado. Julgamos que esse tipo de reflexão, verdadeira autoflagelação
crítica, se fez presente no Brasil dos anos 10.
O personagem Ivan acreditou que o Brasil estava comprometido e entregou-
se à destruição total. Pesquisando a especificidade das imagens de Ivan e Juvêncio,
acompanhamos suas mudanças de postura no decorrer de O Estrangeiro, o que comprovou
que ambos não eram apenas estereótipos ou figuras fáceis de rotular. Indagamo-nos
também sobre a afirmação pliniana de que a mentalidade brasileira seria Ivan.
Percebemos também o mecanismo narrativo que, seguidamente, repõe imagens de Brasil
para serem destruídas. Esse processo, que levou a narrativa a transitar da exaltação
ufanista à melancolia da autoflagelação crítica, reduziu o nacionalismo de Juvêncio
a um devaneio e acabou consumindo o próprio protagonista.
Centrado no percurso do estudante universitário Ivan, a narrativa percorreu
meio rural, cidade provinciana e grande centro urbano. Ivan discutiu, gerou e
destruiu suas imagens do novo país em diálogo com o professor Juvêncio, que passou
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por transformações no decorrer da narrativa. Em Cedral, junto a uma cachoeira,
ocorreu o episódio dos papagaios: o tal “espírito da terra” se mostrou inexistente,
e o professor se transformou num defensor do Brasil agrário sem os imigrantes.
Juvêncio, a partir da decepção com os papagaios, percebeu que com o simples contato
com a terra não restaurou uma “brasilidade”, e passou a acreditar que os brasileiros
é que tendiam a serem influenciados pelos colonos e que o meio não bastaria para
reverter o processo.
No final do romance, a imagem de Brasil que restou não foi favorável. No
campo, com a chegada dos imigrantes, estes tendiam a se misturar aos brasileiros,
mas colocando os antigos moradores em situação subalterna. Ivan, que tentou sempre
racionalizar e explicar a situação do país, acabou derrotado. O mesmo aconteceu a
Juvêncio, que se viu obrigado a mudar para o interior. O professor acabou gostando
da mudança, preferindo o Brasil longe dos imigrantes.
O Brasil que o romance deixou ao seu final seria um país enriquecido no
campo que desceu para as cidades e a ostentação, e não o que procurou a fortuna na
cidade (Ivan) ou a dissipação hedonista de riquezas no centro cosmopolita (os
Pantojo). O Major Feliciano disse que o Brasil era possível do mesmo modo como
estava, ou seja, nas mãos das oligarquias: “Isto de voto secreto é muito ótimo
quando se está na oposição, apenasmente. Neste ponto estou de acordo (...). Faça
como eu, o futuro nos pertence, e cada povo tem o governo que merece, consoante um
escritor cujo nome não me lembro” (Salgado, 1937: 238). A narrativa sancionou essa
explicação sobre o Brasil, encerrando com ela e com a trajetória do brasileiro que
melhorou de posição, mas que, ao contrário do professor, não foi removido e
consolidou uma posição mais cômoda em Mandaguari. Enquanto em Canaã apareceram
imigrantes intelectualizados discutindo o Brasil, em O Estrangeiro apareceu um
imigrante também intelectualizado, estudante universitário na Rússia, que construiu
e desconstruiu imagens de Brasil no diálogo com um professor brasileiro. O Estrangeiro,
insistimos, não terminou como canto anunciador de um movimento nacionalista católico,
nem tampouco serviria como chamada para a renovação política.
O que estamos chamando de “cerne” de O Estrangeiro seria o mecanismo
pelo qual ele exibiu imagens de Brasil e as denegriu mais adiante, terminando sem
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nenhuma imagem. Nisso, o romance seria bem diverso dos seus contemporâneos Macunaíma
e Memórias Sentimentais de João Miramar. Esses textos geravam imagens, algo paródicas
e algo negativas, mas que, ao final das contas, permaneciam. O Estrangeiro seria
diferente também por levar a devoração de imagens de Brasil mais adiante que Canaã
de Graça Aranha, romance onde podemos dizer que existiu um processo parecido. O
romance de Salgado foi além, e a narrativa não poupou nem o próprio protagonista,
que acabou igualmente devorado.
ABSTRACT:
This study aims at an analyzis of the images of Brazil in
Plínio Salgados O Estrangeiro (1926), searching for the
images of Brazil therein. We suggest a new approach to
the book, and conclude these images are constructed and
deconstructed, a process which results in melancholy and
bitterness.
KEY WORDS: images of Brazil, nationalism, nation and narration.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Garnier, 2000.
ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João
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Livraria José Olímpio Editora, 1937.

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