De volta ao embrião
Marcelo Coelho*
A discussão a respeito já foi bem longe, e talvez nunca termine. Mas são interessantes os argumentos que leio na última Quinzaine Littéraire (16-31 de março) a respeito da vida (ou não) do embrião humano.
O filósofo Francis Kaplan acaba de publicar um livro sobre o tema, L´embryon est-il un être vivant? (Le Félin, ed.), e transcrevo aqui alguns trechos de sua entrevista a Lucette Finas. A primeira coisa que me surpreendeu lendo seu livro é que a afirmação da Igreja Católica segundo a qual o embrião é vivo desde a concepção não provém da fé, contrariamente ao que se pensa geralmente (...)
Francis Kaplan- O fato –geralmente ignorado—é que a Igreja considerou, de modo absolutamente explícito e oficial, até meados do século 19, que o embrião só se torna um ser vivo, e que o aborto só é portanto homicídio, a partir do 40º. dia depois da concepção –e, para as meninas, a partir do 80º. dia. É o que diz São Tomás de Aquino, o teólogo que mais autoridade possui na Igreja Católica: é o que repetem Sixto 5 e Gregório 14; é o que ensina o catecismo romano de Pio 4 e Pio 5. E se a Igreja mudou depois, não é por razões teológicas, mas –como diz Bento 16—em função do que ela acredita ser afirmado pela ciência moderna. É possível, então, uma discussão, e, evidentemente, no puro terreno científico e epistemológico. (...)
Como a ciência –ou a epistemologia—pode demonstrar que o embrião não é um ser vivo desde o momento da concepção? Francis Kaplan—É preciso distinguir entre “estar vivo” e ser “um ser vivo”. Pode-se dizer que um embrião está vivo no mesmo sentido com que se pode dizer que meu olho, porque pode ver, está vivo em oposição a um olho cego, que pode ser considerado um olho morto, e que minha mão, porque ela pode pegar um objeto, é uma mão viva em oposição a uma mão paralisada, que pode ser considerada uma mão morta no mesmo sentido em que se fala de folhas mortas, tecidos mortos, células mortas. Mas nem meu olho nem minha mão são seres vivos. Um ser vivo é um ser que tem funções chamadas, precisamente, de funções vitais, de tal modo que formam um sistema, que não necessitam de nenhuma outra função para mantê-lo vivo, de tal modo que se uma delas não funciona, nenhuma outra funciona e então o ser se decompõe. Minha mão, meu olho, têm uma função (pegar, ver), mas não têm funções que os mantenham vivos; são mantidos vivos apenas graças ao ser vivo ao qual pertencem, no caso, eu, que sou um ser vivo (...) Quanto ao embrião, ele não tem praticamente nenhuma função vital; as funções vitais de que ele precisa para estar vivo são as da sua mãe. É graças à função digestiva da mãe que ele recebe o alimento digerido de que tem necessidade e do qual não poderia tirar proveito se a mãe não o tivesse digerido; é graças à função glicogênica do fígado da mãe que ele recebe a glicose de que necessita; é graças à função respiratória da mãe que os glóbulos vermelhos de seu sangue terão o oxigênio de que ele necessita; é graças à função excretória da mãe que ele expulsa as matérias nocivas, os detritos que de outro modo o envenenariam.
Isso significaria que o embrião é uma parte da mãe, como o olho é uma parte do ser vivo ao qual pertence. Mas o embrião também não provém do pai? E como se pode ser ao mesmo tempo uma parte de um ser vivo –a mãe—e uma parte de outro ser vivo –o pai? Não se deveria concluir que ele é um novo ser independente tanto da mãe quanto do pai?
Francis Kaplan—Mas como pode ele ser um ser vivo se não possui as funções vitais que o mantêm em vida? Com toda a certeza, ele não é uma parte do pai uma vez que não é o pai que o mantém vivo (...)
Não se pode pelo menos dizer que um embrião é um ser vivo em potência e que destruir um ser vivo em potência é quase tão grave quanto destruir um ser vivo “em ato”, uma vez que um ser vivo em potência, se não o destróem, haverá necessariamente de tornar-se, salvo por um intercorrência acidental, um ser vivo “em ato”?
Francis Kaplan—(...) Uma folha de papel não se torna um desenho a não ser pela intervenção de um fator externo ao papel –o desenhista—e ninguém pensará que destruir um papel é quase tão grave quanto destruir um desenho. Uma semente de carvalho é um carvalho em potência, pois o solo onde está plantada só desempenha um papel nutricional, e sua passagem do estado de semente ao estado de carvalho só se deve a fatores internos à semente. Costuma-se pensar que é a mesma coisa com o embrião. Na verdade, não é assim: os trabalhos científicos mais recentes em embriologia mostram o papel necessário da mãe. Não é o embrião que se desenvolve, é a mãe que o desenvolve. (...) Ninguém conseguiu fazer que um embrião se desenvolvesse apenas colocando-o num ambiente que o nutrisse; só se obtém com isso uma multiplicação desordenada de células.
*Articulista da Folha de São Paulo.
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