Vinte e dois anos depois de escrever tese clássica sobre José Agrippino de Paula, a professora Evelina Hoisel relê PanAmérica com exclusividade para o Pensar
Evelina Hoisel
Especial para o Correio
Relendo PanAmérica com os operadores críticos que tenho hoje à minha disposição, neste início de século, posso confirmar, após 34 anos de sua primeira publicação, como esta epopéia de José Agrippino de Paula (foto) permanece atual. Ela reaparece agora, em terceira edição, pela Editora Papagaio, de São Paulo, suscitando questões que fazem parte das reflexões teóricas contemporâneas e proporcionando aos leitores uma fantástica viagem na irrealidade cotidiana.
Meu primeiro contato com o texto de PanAmérica — e também com José Agrippino — há 25 anos, foi extremamente surpreendente e provocativo. Sua narrativa estilhaçava de maneira aberrante, hiperbólica e precursora os parâmetros que se tinha para definir e ler um texto literário ou, mais amplamente, para avaliar uma produção artística. A diferença já era visível desde a formatação do próprio objeto livro, pois a primeira edição de PanAmérica (Tridente/RJ, 1967) era impressa em papel pardo, tipo havana, com a utilização de um tipo de letra redonda e serifada, em negrito, o que acentuava o caráter lúdico e visual da narrativa e apelava para outras formas de relação com o leitor, a partir de um pacto de ‘‘curtição’’, terminologia muito difundida pela geração 60, que deslocava a postura séria e bem comportada da tradição literária estabelecida. PanAmérica inaugurou com entusiasmo uma vertente na literatura que assinala a ascensão da cultura e o questionamento do artístico e do literário.
Explicitando melhor: na literatura (brasileira), PanAmérica, de maneira precursora, anuncia o processo de democratização do literário e da arte, apropriando-se de um material até então considerado pouco adequado para a construção artística: os temas e ícones dos mass media, os objetos da sociedade de consumo e da indústria cultural. Estes aspectos não são apenas citados, mas incorporados à narrativa, constituindo sua própria substância, rompendo as dicotomias até então instituídas entre alta/baixa literatura, literatura erudita/literatura popular, literatura/paraliteratura, estético/não estético.
Temos, então, um texto que não se constrói seguindo os padrões tradicionais da representação, mas se configura como um simulacro: cópia de cópia. Não é a realidade imediata que lhe fornece o seu conteúdo (as relações e os sentimentos humanos, os conflitos íntimos dos personagens, que não comparecem ao texto), mas uma realidade secundária — a imagem de um ídolo de massa, um clichê que aparece repetidas vezes nos meios de comunicação, o vasto repertório de ícones e marcas da publicidade, a tecnologia da produção cinematográfica, das histórias em quadrinhos ou da publicidade.
Literatura ou um vasto painel antropológico da sociedade do espetáculo? Em se tratando de PanAmérica, o ‘‘ou’’ se torna improcedente, pois este texto se apresenta múltiplo e afastado de qualquer dicotomia binária. Incorpora diversos discursos e movimenta-se através de variadas fronteiras culturais, ou multiculturais, delineando uma cartografia que já demarca os processos de globalização que vão caracterizar o capitalismo multinacional. Paradoxalmente, esta epopéia expõe os processos de globalização emergentes nas sociedades contemporâneas — hoje em plena consolidação/expansão — articulando-se a partir de um país da América Latina, econômica e tecnologicamente subdesenvolvido, como se caracterizava o Brasil naquele período de expansão do monopólio imperialista dos Estados Unidos e da pax americana.
Mundo pop
Um dos fios construtores da narrativa de PanAmérica focaliza a filmagem de uma superprodução de Cecil B. de Mille, a Bíblia, e, nas páginas iniciais — cenário e bastidores de um estúdio hollywoodiano — circulam astros do cinema que constituíram a mitologia e a iconografia da cultura de massa naquele período: Marilyn Monroe, imagem do objeto de desejo erótico do narrador, é sempre projetada a partir de suas fantasias oníricas e alucinadas; Marlon Brando, Tony Curtis, Clark Gable, Sophia Loren, Carlo Ponti e outras estrelas ou ícones que se tornaram mercadorias e se transformaram em sua própria imagem, como Di Maggio e Cassius Clay.
Neste aspecto, Agrippino de Paula nos fornece um ágil close — às vezes também uma movimentada panorâmica — do processo de mercantilização da cultura e da arte, por meio de um texto que joga ludicamente com o fascínio pela civilização da imagem e, simultaneamente, desmonta as bases ideológicas que sustentam e põem em circulação este fascínio. Como as produções de Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, Tom Wesselman e tantos outros artistas plásticos da pop art dos Estados Unidos, as imagens de PanAmérica, com seu brilho reluzente e suas cores berrantes, enfatizam o fetichismo das mercadorias e das embalagens, mas também o fascínio pela paisagem ‘‘degradada’’ do brega e do kitsch, situando-se no período de transição para o capitalismo tardio, o pós-modernismo, conforme as reflexões desenvolvidas por Frederic Jameson em Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio (Ática).
Por essa via — que é também a da pop art — o texto de José Agrippino estabelece conexões com a produção artístico-musical dos tropicalistas brasileiros: Caetano Veloso e Gilberto Gil (músicas como Alegria Alegria, Superbacana, Tropicália); a peça O Rei da Vela, encenada por José Celso Martinez Correa; o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e os parangolés de Hélio Oiticica. Estas produções pop-tropicalistas explodem no Brasil na década de 60 e, com o movimento da contracultura, aceleram a crise da arte burguesa, que se anunciava desde o início do século 20, com os movimentos de vanguarda.
Como nessas diversas produções, a lógica textual de PanAmérica obedece a outros parâmetros, distintos do que se produzia no período, inscrevendo-se na lógica da textualidade contemporânea. A história, ou melhor, os fragmentos de história são montados a partir de um eu narrador, que se repete insistentemente, obsessivamente, através de um processo de colagem que evidencia a superficialidade e o achatamento dos acontecimentos narrados, ou seja, da própria história, bem como do sujeito que se dispersa na narrativa. Nesse sentido, PanAmérica, como texto da cultura do simulacro, que é também a cultura da imagem do mundo como espetáculo, encontra nessa superficialidade um dos componentes principais do processo de construção, deslocando o modelo da profundidade narrativa que caracterizou a arte da primeira metade do século 20.
O eu narrador/protagonista, que pode ser um Superhomem ou Superherói, desliza pelo espaço textual assumindo diversos papéis — diretor da superprodução cinematográfica, homossexual, soldado e guerrilheiro na América Latina — juntando os fragmentos de episódios ou cenas que se conectam segundo a lógica alucinada das fantasias e das associações oníricas. Este narrador não concatena os episódios seguindo uma ordem temporal, mas transforma o passado/presente/futuro em uma vasta coleção de imagens que se superpõem e se amontoam ludicamente no espaço textual, um espetacular simulacro, mera imagem de si próprio.
Estilhaços
Multiplicando-se repetitivamente em uma pluralidade de eus que, no entanto, não são identificados por nenhum nome, este personagem é também desprovido de traços psicológicos, produzindo uma narrativa — e se produzindo enquanto narrativa — a partir de uma série de fragmentos temporais não relacionados no tempo. Esta característica, que Fréderic Jameson denomina de textualidade, écriture ou prática esquizofrênica, resulta em uma ‘‘prática da heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatório’’ (p. 52). Neste tipo de textualidade, rompem-se os elos entre significante e significado (o sentido ou o conteúdo conceitual não é aqui produzido a partir de uma relação interna dos significantes ou dos sistemas narrativos). Com esta ruptura da cadeia narrativa, a escrita de PanAmérica se reduz, como na linguagem do esquizofrênico, à experiência de vários presentes não relacionados no tempo, tornando-se um fabuloso exercício de ‘‘descontinuidades desconexas’’.
Ao tratar dessa característica, considerando-a como uma das marcas mais fortes da produção cultural contemporânea — da pós-modernidade, Jameson alerta para o fato de que ela é mais uma descrição de um modelo de uma estética sugestiva do que um diagnóstico do tipo de cultura-personalidade de nossa sociedade e de sua arte, como na crítica cultural psicologizante. O que Jameson considera é que a produção cultural contemporânea parece ter adotado a fragmentação esquizofrênica como sua estética fundamental.
Esse exercício de lúdica descontinuidade prolifera no desenrolar da epopéia, que focaliza uma outra face do panamericanismo e da incipiente futura globalização, apresentado por José Agrippino em suas múltiplas implicações ideológicas. Diversos capítulos superpõem às imagens do poderio cinematográfico de Hollywood — espetacular alegoria do poderio econômico e político dos Estados Unidos — os episódios políticos da América Latina, num explosivo processo de desficcionalizar os acontecimentos históricos: guerrilhas, golpes militares, lutas políticas. Nestes capítulos também circulam as imagens e os ícones difundidos pelos meios de comunicação de massa e pela indústria cultural da época, dentre eles, chefes políticos e religiosos como John Kennedy, Eisenhower, Lyndon Johnson, De Gaulle, Che Guevara, o Papa Paulo VI.
Ao enquadrar e superpor imagens geográficas, políticas, históricas e culturais tão díspares — cenas da filmagem hollywoodiana com episódios sócio-políticos da América Latina — PanAmérica, através de sua montagem heterogênea, nos coloca diante de uma dispersão de imagens, como se fossem telas de cinema/televisão empilhadas, impossibilitando qualquer tipo de totalização e de unificação do sentido das cenas projetadas.
Aliás, esta técnica aparece como proposta de encenação dramática e teatral de um outro texto de Agrippino, Nações Unidas, ainda inédito. No prefácio dessa peça, que teve algumas cenas montadas com o título de Rito do Amor Selvagem, Agrippino explicita que o objetivo principal dessa superposição de cenas, instrumentos eletrônicos, movimentos coreográficos, é produzir o caos. E foi esta proposta que tomei como fio condutor da minha primeira leitura dos textos de José Agrippino, que se encontra publicada em Supercaos: os Estilhaços da Cultura em PanAmérica e Nações Unidas.
No prefixo super — o mesmo que está na satírica colagem Superbacana de Caetano Veloso: super-homem/ superflit/ supervinc/ super-hist/ superbacana — inscrevem-se as imagens de uma produção cultural que, nos idos de 1967, PanAmérica já incorporava de maneira tão turbulenta e anárquica, e de forma inédita na literatura brasileira. Este caráter anárquico da escrita de PanAmérica suscita outras conexões, estabelecidas com os movimentos de contracultura e demais movimentos pop — a geração beat, o rock, os hippies, o cenário das drogas e das manifestações estudantis, as atividades políticas e culturais da esquerda antiautoritária.
Colocavam-se então em crise valores culturais, literários e artísticos, rompendo-se as fronteiras entre uma arte considerada culta, instituída, e uma outra que se produzia à margem das instituições. O processo de democratização que se anunciava na literatura e nas artes abalava tanto os procedimentos de produção quanto de apreciação e recepção, evidenciando-se ainda o caráter mercantilista da produção cultural e artística na sociedade capitalista.
PanAmérica reaparece nesta nova edição, em momento oportuno à sua recepção, como texto atual, atualíssimo em relação às questões mais prementes do debate que se realiza a respeito da arte e da literatura na contemporaneidade.
Evelina Hoisel é professora de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia. Autora de Supercaos: os Estilhaços da Cultura em PanAmérica e Nações Unidas (Civilização Brasileira e Fundação Cultural do Estado da Bahia). E-mail: hoisel@ufba.br
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