quinta-feira, 19 de junho de 2008

Mirisola revela: escritores brasileiros não ganham cachê na Flip

Cafezinhos e pães de queijo (segunda parte da carta ao Jovem Dostoiévski do Jardim Casqueiro)


Marcelo Mirisola*



Então, meu caro Dostoiévski, eu lhe falava de como havia conhecido o Pavão Cabeçudo. Aconteceu em 2001, no Fran’s Café da rua Fradique Coutinho.



Foi assim:



A pretexto de falar sobre literatura, vários candidatos a celebridade desfilavam suas vaidades no Fran’s Café. O Pavão flanava por ali, e anotava os primeiros nomes em sua agenda. Os vermes reuniam-se em grupos que se abriam à infecção, isto é, imiscuíam interesses, trocavam líquidos suspeitos, ocupavam espaços em troca de outros espaços. Cumpriam o protocolo. Todo sábado tinha um convidado de honra. Um figurão escolhido à clef.



Fui convidado a participar do grupo. À época eu era a bola da vez. Uma celebridadezinha dos cadernos culturais e pasquins especializados. As bichinhas culturais me adoravam. Claro, eles não haviam lido os meus livros, e nem vão ler os seus. Como é? Escreveu um livro chamado O jogador? Isso é irrelevante, me escuta.



O que posso dizer a respeito desses convescotes é algo ululante, e um pouco constrangedor (só um pouco) para mim: que, afinal das contas, chafurdava alegremente naquele lixo.



Em primeiro lugar, posso dizer que as vaidades de todos sem exceção eram devidamente afagadas. Não havia quem não escondesse a ambição e não disfarçasse a falta de talento.



A possibilidade de um virgem naquele bordel definitivamente inexistia. Estou falando de homens de negócios, cafetões ilustrados, despachantes. Quer fazer uma analogia? Então imagina uma reunião da alta cúpula no Palácio das Laranjeiras, na época em que Garotinho era governador do Rio de Janeiro. A mesma coisa acontecia no Fran’s. E, a meu ver, as conseqüências (como você poderá comprovar em seguida), foram muito piores. Em vez de “encontros”, seria melhor chamar de “formação de quadrilha”.



Pois bem, dei muita corda para verme se enforcar naqueles “encontros”, e acabei eu mesmo sufocado no meio das lombrigas que sevei a cafezinhos e pães de queijo. Talvez eu não tivesse sabido blefar.



Ambiente sórdido de fofocas e interesses escancarados. O objetivo principal do Pavão Cabeçudo era, ele mesmo, ser editado, e influenciar críticos, jornalistas e medalhões (todos carentes de afago), a proclamar seu talento para os quatro cantos do mundo.



Agora, meu caro, imagina as cabeças mais poderosas, coroadas e influentes da grande imprensa e da academia. O famigerado e temido Eixo Rio-São Paulo. Todos gravitando na órbita do Pavão Cabeçudo. O tipo de gente que larga os livros apenas em três casos: ou para investir na bolsa de valores, ou para “interagir” em masmorras sadomasoquistas, ou para ir ao psicanalista.



Imagina a solidão desses coitados que nunca jogaram uma sinuca na vida. Imagina um bordel de tímidos. O tesão represado dessa gente que num dia escreve editoriais devastadores pedindo a cabeça do presidente e, no outro, com a mesma indiferença e elegância, limpa o cocô dos seus poodles nas ruas de Higienópolis. Todos eles passaram por lá, meu caro. Eu vi! USP, Unicamp, Unesp, Uerj com extensão na Folha e no Estadão, Universidade de Paris e Berkeley. Sem contar os banqueiros e os industriais líricos.



O Fran’s da rua Fradique Coutinho foi o primeiro endereço da festa de Paraty, sabia? E o Pavão Cabeçudo desfrutou da intimidade de todos, e anotou os respectivos segredos e as confissões de um por um em sua agenda genial.



Em pouco tempo suas rimas e trocadilhos eram festejados nos salões do poder. E ele evidentemente conseguiu o que queria. Essa é a natureza dele: aparente singeleza e ambição devastadora. Assim, como alguém que desinteressadamente – e cheio de charme – abandona o Jabuti da véspera nas prateleiras da Mercearia São Pedro.



O afago e a premeditação – repito – são as maiores especialidades do Pavão Cabeçudo. Em 1949, Borges o nomeou. Ele estava tocaiado naquele porão nos arrabaldes de Buenos Aires, mas sempre foi pernambucano, ele e Deus. Arrumar padrinhos, dar tapinhas nas costas é com ele mesmo.



Pode parecer que estou escarnecendo de você... o autor de “Memórias do Subsolo”. Quem diria, justo você acabou no acostamento da Imigrantes, vendendo caranguejo! Desculpe, mas vou ter de revelar mais uma coisa. É o seguinte: uma delícia receber os afagos do Pavão Cabeçudo. O sentimento de gratidão era tanto que eu ficava imobilizado até quando o Pavão afagava meus piores inimigos.



O Pavão Cabeçudo era/é e continua sendo o espelho da nossa canalhice. E esse espelho não é apenas o nosso reflexo, ele brilha, mas brilha tanto, e é tão fulgurante, que fatalmente nos conduz a ribalta. Isso se não desviarmos dos seus planos de inclusão. Onde imperam os editais e os rapapés e vale tudo, menos o talento e a contestação. Ou você está ao lado dele (e da “comunidade literária”), ou está morto e enterrado. Adivinha o que aconteceu comigo?



O que me interessava naquelas reuniões era arrumar uma mulher para trepar. O interesse do Pavão Cabeçudo era fazer compadres, e ser editado. Queria agradar, enriquecer sua agenda. Colonizar, dar espelhos.



Os encontros no Fran’s Café foram lastimáveis sob vários aspectos. Trepar não consegui, mesmo porque a única gostosa que apareceu por lá era lésbica. O resto era aquela estampa USP-dona Ruth Cardoso.



A bem dizer, os encontros foram nefastos.



Mas não quero, aqui, exercitar a demagogia que exercitei lá: uma coisa é ser desonesto comigo mesmo, outra completamente diferente é ser inverossímil com a minha decadência. Tô na merda, sabia?



Mas não sou do tipo que cospe no prato em que comeu. Vou logo vomitando. Seria patético e ingênuo da minha parte lastimar os desdobramentos daqueles encontros. Fui enganado (me deixei levar), e agora é tarde demais. Foi lá inclusive que inventaram uma tal de Geração 90, da qual participei com entusiasmo – não nego.



Grosso modo, tratava-se de um convescote de medíocres amparado pela carência de ilustrados. Hoje, tranqüilamente, posso dizer que era isso mesmo, e nada mais: promoção de pangarés. Ou seja, complôs, intrigas e inconfidências generalizadas de um grupinho divertido, covarde e mal-intencionado que, afinal de contas, alcançou seus desideratos. Os mais espertalhões dão oficina de literatura, ganham medalhas e editais, influenciam a pauta dos jornalões, vão passear em Paraty e desfrutam do dinheiro público; todo esse jabá e mais lançamentos intermináveis dos respectivos lixos produzidos por eles e pelos apaniguados na Mercearia São Pedro... às custas da referida chancela, Iso “Geração 90”.



Aí você me pergunta: o que as cabeças coroadas e os realmente fodões ganharam com isso? Ora, como eu já disse, ganharam afagos, demonstrações miseráveis de humanidade e, em última análise, entretenimento, passatempo. Depois voltariam às suas rotinas de poder, psicanálise e cocô de poodle.



O Pavão tem uma sala Vip na Mercearia São Pedro. Aliás, foi nessa sala que ele, em 2006, me convocou para escrever sobre a festa de Paraty. Claro, não correspondi aos seus planos. À época, eu apontei– entre outras aberrações – o não-cachê dos escribas brasileiros. Disse que os nossos ilustres figurantes compareceriam por conta da militância. Isto é: ou acreditavam nas causas do Unibanco ou do marketing próprio.



Também disse que todo mundo – menos os escritores brasileiros – ganhava dinheiro naquele arraial, desde os donos de pousadas, passando pelos livreiros, editores até os vendedores de queijadinhas, e acrescentei: “os escritores gringos, na certa, além dos dólares (ou alguém pensa que um Christopher Hitchens da vida viaja de graça?), levarão cocares, mulatas, belos suvenires de nossa amada pátria, e lembranças dos tempos em que a colonização era somente um pretexto para arrancar nossas alminhas caipiras dos respectivos couros. Depois de 500 anos, esgarçadas as alminhas, os gringos não precisam sequer de pretextos para tripudiar da gente. Ninguém aqui tem coisa diferente de tubérculos no lugar do caráter, esses gringos tem mais é que se esbaldar. A literatura brasileira está de quatro. Viramos mandiocas. Bela festa, ainda bem que não fui convidado.”(“Paraty 2006”, Proibidão, ed. Demônio Negro).



Resultado. A festa daquele ano foi um sucesso. Em 2007 a mesma coisa. E neste 2008 – podem ter certeza – os figurantes brasileiros empinarão o rabinho novamente. Sintomático que a grande estrela brasileira dessa edição seja um crítico literário.



Tiro o chapéu para João Ubaldo Ribeiro, que matou a charada desde a primeira edição de Paraty. Quando recusou-se a participar do safári. Ninguém o contestou. E dava para contestar?



· Na próxima semana vou explicar como fui mirisolado. Isto é, virei motivo de repulsa nas redações de jornais, revistas e sites de todo o país. E como – depois de Paraty 2006 – me transformei em persona non grata nos rega-bofes e nas festinhas e prêmios literários correspondentes.

· Muita gente me escreveu perguntando quem, afinal de contas, é o Pavão Cabeçudo. Sugiro a leitura de “O Aleph”, de Jorge Luis Borges. Mas posso adiantar que ele existe (e sempre existirá) para que tipos como o Dostoiévski do Jardim Casqueiro e Baudelaire da Vila Tupi vendam caranguejos no acostamento da Imigrantes.



*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.




PUBLICADO EM:09/06/2008

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