Era a sangria desatada, e se esvaía em tinto vinho a coitadinha sem consolo e sem abraços de ninguém. Restava só resgatar o seqüestrado, o pouco que fosse possível. Vanessa ia digitalizando o remoto do que houvera e não passara, velhas fotos de família já sem família nenhuma.. O scanner, em vai e vem, levava e trazia a luz cegante, que em nada clareava a treva que insistia.
Clarice Lispectorava tudo até ontem à tarde, era abrir uma página sua ao léu e pronto, paraisava-se paralisando-se. Mais um gole, talagado. Grande vinho. Essa escritora e sua escritura é o que coça, incomodando. É o que arremessa cálculos, conclusões e latitudes ao abismo irremediável, sem negociação que dê trégua e alívio. E cavuca o saco sem fundo quem se atreve a lê-la, e lendo-a se atreva a escaneá-la, como as fotos em farelos sobre a mesa. Mais antigo é o mistério de Clarice, a que ficou em tomos pelas prateleiras a quem interessar possa e queira, mesmo conhecendo os riscos de se afogar no que deixou.
Mas nada de conseguir voltar atás – era a sangria, que assim sendo prosseguia. Abusada. Clarice ou ela? As duas, no abuso de libertar-se pela fala inestancável, o verbo mudo do livro. O pretérito imperfeito na imperfeição dos retratos: avó ensaboando, torcendo, criando a escoliose no tanque. Mãe ralando queijo, lavando louça, os muitos pequenos à volta. E ela escaneando agora os restos disso. Da vida nada se leva, do dissabor se leva tudo – a herança inteira, legada em cartório com firma reconhecida. O sem calor, cheiro ou valia.
O mundo vegeta, em moribunda indiferença a ela. Ao telefone não se dê ouvidos, à TV ligada não se dê atenção, ao inodoro e ao insípido dos dias, que nessa toada dão-se adeus uns aos outros, não se dê valor algum. Reze-se, pois. Novene-se, peça-se ao Supremo.
O scanner pára. Queimou a luz. Fiquem os mortos com os mortos, hora de Vanessa deitar-se. Não sem antes uma boa colherada do nunca contra-indicado lenitivo, que os cartazes insistentes apregoam: “para o peito cheio de aflições e conflitos, Lispectorante Clarice”. Ainda que não resolva, só alivie os sintomas.
Clarice Lispectorava tudo até ontem à tarde, era abrir uma página sua ao léu e pronto, paraisava-se paralisando-se. Mais um gole, talagado. Grande vinho. Essa escritora e sua escritura é o que coça, incomodando. É o que arremessa cálculos, conclusões e latitudes ao abismo irremediável, sem negociação que dê trégua e alívio. E cavuca o saco sem fundo quem se atreve a lê-la, e lendo-a se atreva a escaneá-la, como as fotos em farelos sobre a mesa. Mais antigo é o mistério de Clarice, a que ficou em tomos pelas prateleiras a quem interessar possa e queira, mesmo conhecendo os riscos de se afogar no que deixou.
Mas nada de conseguir voltar atás – era a sangria, que assim sendo prosseguia. Abusada. Clarice ou ela? As duas, no abuso de libertar-se pela fala inestancável, o verbo mudo do livro. O pretérito imperfeito na imperfeição dos retratos: avó ensaboando, torcendo, criando a escoliose no tanque. Mãe ralando queijo, lavando louça, os muitos pequenos à volta. E ela escaneando agora os restos disso. Da vida nada se leva, do dissabor se leva tudo – a herança inteira, legada em cartório com firma reconhecida. O sem calor, cheiro ou valia.
O mundo vegeta, em moribunda indiferença a ela. Ao telefone não se dê ouvidos, à TV ligada não se dê atenção, ao inodoro e ao insípido dos dias, que nessa toada dão-se adeus uns aos outros, não se dê valor algum. Reze-se, pois. Novene-se, peça-se ao Supremo.
O scanner pára. Queimou a luz. Fiquem os mortos com os mortos, hora de Vanessa deitar-se. Não sem antes uma boa colherada do nunca contra-indicado lenitivo, que os cartazes insistentes apregoam: “para o peito cheio de aflições e conflitos, Lispectorante Clarice”. Ainda que não resolva, só alivie os sintomas.
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Marcelo Sguassábia
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