quarta-feira, 18 de junho de 2008

Entrevista com Bioy Casares no Roda Viva

Adolfo Bioy Casares

28/8/1995

Fragmentos da vida e obra de um dos ícones da literatura argentina, morto em 1999, registrados em respostas objetivas, com críticas aos escritores vaidosos e enaltecimento da boa literatura

Matinas Suzuki Jr.: Boa noite. Ele é o mais importante escritor argentino em atividade e foi companheiro de geração de Jorge Luis Borges. Sobre ele, que está com 80 anos, outro grande escritor argentino, Júlio Cortázar escreveu: “Queria ser ele, sempre o admirei como escritor e o estimei como pessoa”. No centro do Roda Viva está Adolfo Bioy Casares, autor, entre outros, do importante livro A invenção de Morel. Para entrevistar o escritor Adolfo Bioy Casares convidamos Jorge Schwartz, que é professor de literatura na Universidade de São Paulo; José Geraldo Couto, que é repórter da Folha de S. Paulo; Augusto Massi, que é professor de literatura na Universidade de São Paulo; Luciana Villas-Boas, diretora editorial da editora Record; Maria Cristina Poli, do programa Vitrine, da Rede Cultura; Rinaldo Gama, sub-editor da revista Veja e Janer Cristaldo, jornalista, escritor e tradutor de Bioy Casares. O Roda Viva é transmitido em outras 30 emissoras para 13 estados. Como este programa foi gravado não estamos recebendo as perguntas por telefone ou por fax. Nós lembramos que o escritor Bioy Casares está no Brasil a convite do Instituto Cultural Brasil-Argentina de São Paulo. Boa noite, Bioy Casares.

Bioy Casares: Boa noite.

Matinas Suzuki Jr.: Desde 1960 o senhor não vinha para o Brasil. O que mudou no Brasil, o que o senhor viu de diferente, está gostando de estar aqui em São Paulo?

Bioy Casares: Tenho a impressão de que o progresso do Brasil é irrefreável e que, antes, São Paulo já me parecia uma cidade imensa e, agora, é infinitamente maior que antes. Mas o que sempre me importou no Brasil, mais que cidades ou territórios, são as pessoas, que são muito amigas. Tanto é que hoje estava conversando que nos invernos gostaria de passar 2 meses em São Paulo.

Matinas Suzuki Jr.: Um inverno quente como esse?

Bioy Casares: Tão agradável quanto esse. Não diria quente, mas muito agradável. Uma temperatura perfeita. Porém eu não viria pela temperatura, e sim pelas pessoas que encontro aqui.

Matinas Suzuki Jr.: Senhor Bioy Casares, Brasil e Argentina sempre foram próximos-distantes. Ultimamente, tem havido uma aproximação, uma tentativa de aproximação política e econômica através do Mercosul [Mercado Comum do Sul, acordo internacional de livre comércio entre Brasil, Argentina, Venezuela, Paraguai e Uruguai]. Nesses anos todos o senhor tem sentido a imagem do Brasil mudar na Argentina? Como o senhor tem visto a imagem do Brasil na Argentina em todos esses anos?

Bioy Casares: Creio que a rivalidade ocorria de modo inevitável, porque Brasil e Argentina são os maiores países da América do Sul. De qualquer modo, parece que as pessoas na Argentina admiram agora o Brasil. Por minha experiência pessoal, todas as pessoas me diziam que invejavam a minha sorte de vir para cá, pois eu viria para um grande país e que me receberiam bem. E assim foi.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor escreveu um livro bastante interessante, chamado O dicionário do argentino esquisito. Esse livro, se não me engano, é dos anos 70, e nele há um verbete que diz o seguinte: “Brasileño – o argentino que sempre havia dito brasileiro e que de um dia para o outro disse brasileño. Esse dia não faz muito tempo. Na minha juventude, costumávamos dizer brasileiro sem deixar nos convencer do café à brasileña, que abundavam em nossa cidade. Digo aparentemente, porque em definitivo a cafeteria purista saiu e o argentino passou a adotar o brasileño?" Que diferença o senhor vê entre o brasileiro do seu tempo e o brasileño de agora?

Bioy Casares: É muito mais simpática a palavra brasileiro, como sempre foi, e me impressionou como, de um dia para outro, todos – como se fossem uma só pessoa–, passaram a dizer brasileños. Me impressionou que todos os argentinos, unanimemente, não só uma pessoa, já não diziam brasileiros, mas sim brasileños. Isso me pareceu uma coisa um pouco ridícula e absurda.

Jorge Schwartz: Parece que o Brasil aparece um pouco na narrativa do romance O sueño de los hérois [1954], que tem o café “Os meninos”.

Bioy Casares: Ah, sim. Não me recordava disso.

Jorge Schwartz: Está escrito em português, não é Los meninos. Você escreveu um diário sobre o Brasil, que foi um texto meio clandestino, parece, não teve uma edição comercial?

Bioy Casares: Era uma edição particular de 300 exemplares. Fui dando aos meus amigos e não tenho mais. Farei uma nova edição quando voltar a Buenos Aires e darei a um editor.

Matinas Suzuki Jr.: Nesse livro em que o senhor relata sua viagem ao Brasil, o senhor fala de uma Ofélia, que teria desaparecido. Como que foi o encontro com essa Ofélia?

Bioy Casares: Sim. Eu estava num navio que parou no Rio e, pela escada, vi uma moça muito linda. Depois eu soube que se chamava Ofélia. Vi também umas índias que foram amigas minhas e pelas quais também me enamorei. No navio, um dia, Ofélia passou ao meu lado e caiu desmaiada. Foi socorrida e, depois, me disseram que ela desmaiara de amor por mim [risos]. Em Paris, saímos com ela um pouco e nos sentíamos bem juntos. Depois, vim ao Rio, eu a procurei, porém, não encontrei. Parecia que era mas, quando via o rosto, não era a Ofélia. Quando cheguei a Buenos Aires, recebi uma carta dela que dizia: “Velho atrevido, você nunca me verá de novo.” Bem, ela me castigou.

Maria Cristina Poli: O senhor ainda pensa nela?

Bioy Casares: Sim, claro, mas faz muitos anos e esqueci como ela era. Mas era encantadora.

Maria Cristina Poli: Nesse livro que o senhor escreveu, pelo que consta, o senhor fez algumas anotações e mais tarde decidiu escrever o livro. Como que é o seu processo de armazenar idéias para depois desenvolvê-las?

Bioy Casares: Eu acho que é o processo de todos os escritores. Agora, por prudência, escrevo dia-a-dia o que vivo aqui. Mas daquela vez não. Quando cheguei a Buenos Aires, a minha experiência no Rio, em Brasília, estava começando a existir. Então, em São Paulo, onde se vive como em carreira de cavalos, como nunca vi em Buenos Aires, nem em parte alguma, pareceu-me divertido escrever sobre essa viagem e fiz um livro a respeito.

Janer Cristaldo: Senhor Bioy Casares, eu tive a honra de traduzir o Crônicas de Bustos Domecq [escrito em parceria com Borges, em 1967]. Inclusive, tive que viajar para a Argentina para descobrir o significado de uma palavra: blicanceperos.

Bioy Casares: É o nome que se dava a um móvel que servia de sofá de dia e de cama à noite. Quando você disse, por um momento, não me lembrava, não sabia do que se tratava, se era um animal ou o quê.

Janer Cristaldo: Certo. Tinha o nome dos vários fabricantes das primeiras sílabas: bli-can-ce-pe-ros. Eu viajei à Argentina por uma palavra.

Bioy Casares: Me parece que fez muito bem.

Janer Cristaldo: Eu gostaria de fazer duas perguntas sobre a sua visão da literatura argentina. Eu vi, na entrevista com o José Geraldo Couto, uma opinião sua sobre a obra do Roberto Arlt [ (1900-1942), novelista, contista, dramaturgo e jornalista argentino], que teve traduzido no Brasil Os sete loucos [Los siete locos]. Eu tenho um especial apreço por esse livro, porque eu acho ele muito premonitório. Nós tivemos o personagem, o astrólogo, que depois talvez tenha se realizado na história argentina como El brujo, [José] López Rega, me parece, e tem uma história… Esse livro foi escrito em 1929, sobre um terrorista que pretende conquistar o poder através de um gás, o gás hidrogênio, e tivemos isso agora no Japão. E o senhor, no entanto, disse que gosta de Aguas fuertes porteñas [seção de contos publicadas por Arlt no periódico argentino El Mundo, em 1928], gosta de El juguete rabioso [novela publicada em 1925], mas não gosta do Os sete loucos. Gostaria de ver como o senhor situa Os sete loucos.

Bioy Casares: Não posso falar muito de Os sete loucos, pois o li faz tempo. Os últimos livros dele, que são uma literatura fantástica, me interessam menos. Você dirá: “Que raro, ele não gosta de literatura fantástica.” Sim, não gosto muito. A minha imaginação funciona assim. Meu ideal seria escrever um romance sem nada fantástico, mas, até agora, não consegui.

Maria Cristina Poli: Como é que o senhor define literatura fantástica, narrativa fantástica?

Bioy Casares: Uma narrativa em que o fato se produz magicamente.

Rinaldo Gama: Eu quero aproveitar a história da Ofélia, pessoa brasileira que o senhor conheceu e teve esse envolvimento. Vou fazer uma pergunta em relação ao amor na sua obra. O senhor disse que aprendeu com o Borges a evitar ou a procurar evitar uma literatura subjetiva, sentimental, ou seja, não racional ou não rigorosa, não vigorosa. Borges tinha uma certa indisposição para com o subjetivismo de qualquer natureza. Fazia algo mais racional e isso, de certa maneira, ele transmitiu ao senhor. O senhor continuou produzindo uma obra pautada pelo vigor e pela racionalidade, porém, o amor, como a gente sabe, tem muito de racional, tem muito de instintivo e assim por diante. Eu queria perguntar como fica essa sua predisposição para uma obra mais cerebral, ao mesmo tempo que há uma importância sobre o amor na sua literatura? O senhor disse que chega a ser até mais importante do que a própria dimensão fantástica. O senhor passou a vida, a carreira literária, se esforçando para cerebralizar o sentimento que seria o amor? É isso? A gente poderia entender a sua literatura um pouco sob esse viés, como uma tentativa de segurar, vamos dizer, o que seria incontrolável, que seria irracional, não cerebral? No caso, o amor, que é tão importante na sua literatura, como é que o senhor conseguiu controlar isso, o sentimento amor e a preocupação em ser cerebral?

Bioy Casares: Bem, acho que não se pode confundir a vida com a literatura. Parece-me que, ao se falar demais de amor na literatura, se chega ao sentimentalismo, o que seria um defeito em literatura. Então, fatalmente, minhas histórias são história de homens e, mesmo que fantásticas, têm um lado amoroso. Mas acho que isso deve ser medido para não cair em sentimentalismo, pois, segundo [James] Joyce: “Sentimental é quem faz o que não sente”.

Luciana Villas-Boas: O senhor é de 1914, ano em que, para muitos, começou o século 20. Agora, perto do final desse século, como é que o senhor analisa o percurso da literatura? Em particular, eu queria saber como é que o senhor vê e vivencia a crise literária diante do advento e da força das novas tecnologias visuais?

Bioy Casares: São perguntas para ser feitas a um sociólogo, não a um simples escritor de romances e contos [risos].

Luciana Villas-Boas: O senhor escreve à mão em uma época em que quase todas as pessoas escrevem no computador.

Bioy Casares: Não faço por rebeldia [risos], mas porque é mais cômodo escrever à mão. Continuo escrevendo à mão e vivo tendo lumbagos [dores reumáticas na região lombar]. Hoje, por sorte, não tenho. E escrever à maquina me dava dor na cintura. A minha máquina é uma Pelican de tinta e assim vou escrever sempre, em cadernos de folhas presas, para obrigar-me a escrever o melhor possível desde o começo, pois, arrancando-as, pode-se escrever de qualquer modo. Assim escrevo de um modo e depois corrijo tudo. Escrevo muitíssimas vezes.

Luciana Villas-Boas: O senhor não sente a literatura ameaçada?

Bioy Casares: Creio que sempre esteve ameaçada. O livro sempre esteve ameaçado, mas o livro sobreviveu até agora e continuará vivendo. Veja que o livro é algo que nos obriga a algo incômodo: temos que deixar de falar com os amigos e nos afastamos para ler. No entanto, se faz isso com toda a naturalidade e espero que se continue fazendo.

Matinas Suzuki Jr.: Vamos dar um minuto para o Bioy poder beber a sua aguinha, tranqüilamente, está bom?

Bioy Casares: Não. Não estou cansado. Quero que me façam perguntas.

Jorge Schwartz: Bioy, retomando a última pergunta, parece que você é avesso à tecnologia, em Memórias [1994], você se declara contra o fax e contra o computador. Agora, surpreendentemente, seu romance magistral A invenção de Morel [1940] é um precursor da holografia, de técnicas revolucionárias que apareceriam muito mais tarde do que a realidade virtual, quando ninguém falava nisso, no fim dos anos 30. Então, como o senhor explica que uma imaginação tão extraordinária, tecnológica, que vai pela ficção científica, seja tão avessa à tecnologia?

Bioy Casares: Eu não tenho tanto medo da tecnologia. Meu agente literário me presenteou com um fax e eu o uso com freqüência. Mas creio que, se pusesse tecnologia em minha literatura, ela seria muito desagradável. Uma senhora americana me escreveu uma carta, falando muito de realidade virtual. Não entendo nada disso. Espero, com o tempo, entender, mas, até agora, escrevi meus livros sem entender nada disso.

Augusto Massi: O senhor sempre se refere a uma cena iniciática, emblemática, da sua descoberta, vamos dizer assim, do mundo imaginário. É a cena que o senhor entra no quarto da sua mãe e encontra o espelho de 3 faces. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre essa cena, como ela ocorreu e o impacto que ela teve para a sua literatura.

Bioy Casares: Bem, é um espelho de 3 faces e, nesse espelho, se via a realidade do quarto e eu mesmo em uma perspectiva infinita, repetida milhares de vezes. Foi o primeiro fato fantástico que aconteceu em minha vida e que, seguramente, me incitou a escrever sobre as coisas que se parecessem com esse reflexo tão maravilhoso. Borges disse que tenho horror a espelhos. Nada mais falso que isso. Sempre me senti atraído por eles, gosto até daquele verde em volta deles. Parecem-me lindíssimos.

Matinas Suzuki Jr.: José Geraldo, por favor.

José Geraldo Couto: Voltando um pouco ao tema do fantástico, me parece que o senhor tem uma relação ao mesmo tempo de fascínio e de horror com relação à tecnologia. Nos seus contos, nos seus relatos, geralmente os experimentos científicos acabam tendo resultados desastrosos e até monstruosos. Na própria Invenção de Morel, em Plan de evasión [1945] e em vários contos do livro Historias desaforadas [1986]. O que eu queria perguntar para o senhor é o seguinte: hoje, a tecnologia nos apresenta novos prodígios e novas promessas de felicidade, como são as que aparecem nos seus contos. Eu gostaria de saber como o senhor se sente diante dessas novas promessas, desses novos prodígios tecnológicos e se o senhor se sente esperançoso, cético, assombrado ou indiferente? É isso.

Bioy Casares: Creio bastante no progresso e espero que essas promessas se cumpram. Ao menos, essas promessas nos animam. Depois, me desculpem, não há que confundir a vida com a literatura. Parece-me que, quando encontro um final triste em um romance para o qual eu não encontrava final, fico contentíssimo e, nesse dia, como com mais fome que nunca. Ainda que o final seja triste, porque é o final que convém ao meu livro.

Maria Cristina Poli: Apesar da tecnologia, o senhor gostaria de viver 100 anos mais?

Bioy Casares: Claro. Gostaria de viver. Parece-me pouco 100 anos a mais.

Maria Cristina Poli: O senhor faria o quê? Gostaria de fazer o quê?

Bioy Casares: Não creio que, para os outros, seria muito útil que eu vivesse 100 anos mais. Mas, para mim, sim, continuaria vivendo, vendo a luz do novo dia todos os dias. A tristeza da morte é que, no dia seguinte, não se verá a luz do dia. Aconteceria tudo de novo: vocês me fazendo perguntas e…

Janer Cristaldo: Bom, Bioy Casares, o senhor deve estar lembrado, no livro Crônicas de Bustos Domecq, do encontro chamado "Ser e perceber", em que o senhor manifesta um grande ceticismo em relação a duas realidades muito próximas à nossa: televisão e futebol. Não sei se o senhor sabe, mas quem está coordenando aqui é um homem que acredita no futebol, é analista de futebol, o Matinas Suzuki. Bom, então, nesse conto aqui os personagens dizem que o futebol é uma realidade que não existe mais. Existe puramente a realidade televisiva do futebol. Então, diz um personagem: “Não há escore e nem times e nem partidas. Os estádios são ruínas caídas em pedaços. A última partida de futebol, nesta capital, Buenos Aires, foi jogada no dia 24 de junho de 37. Desde aquele exato momento, o futebol, do mesmo modo que a vasta gama de esportes, é um gênero dramático, a cargo de um só homem, em uma cabine ou de atores com camisetas junto ao câmera.” Depois o senhor manifesta um certo ceticismo que o homem tenha chegado à Lua, como pergunta um dos personagens: " e a conquista do espaço?" "É um programa estrangeiro, uma coprodução soviética. Louvável progresso, não neguemos, um espetáculo cientificista." Como é que o senhor vê essa distância que o senhor tinha na época em que escreveu o Crónicas de Bustos Domecq e essa realidade contemporânea? Afinal, o futebol existe ou não existe? É uma realidade televisiva?

Bioy Casares: Se eu escrevesse um conto dizendo que não era uma realidade televisiva, o conto seria tonto, não teríamos um tema. Inventamos isso por ser absurdo. O que havia de graça nisso é que estavam fazendo algo que ainda não se havia imaginado.

Matinas Suzuki Jr.: Mas o senhor foi um esportista na juventude?

Bioy Casares: Eu jogava rugbi e joguei tênis até, relativamente, há poucos anos, todos os dias, afora as segundas, porque o clube fechava. Não joguei pólo, como tantos argentinos. Lutei boxe também. Tenho uma boa esquerda.

Matinas Suzuki Jr: E o senhor não acompanha mais, nem o futebol, nem o boxe, não assiste mais aos espetáculos esportivos?

Bioy Casares: O esporte como espetáculo nunca me interessou muito. Vi partidas de tênis porque me importava muito o tênis, mas o futebol, que me incendiava quando criança, não me interessa muito. Porém, não me parece uma calamidade que deva ser suprimida.

Augusto Massi: O senhor, recentemente, deu uma declaração de que estaria escrevendo uma obra sobre a sua amizade com o Jorge Luis Borges. O senhor realmente está escrevendo?

Bioy Casares: Quisera escrever isso. Quem me dera. Escrevi num livro meu que se chama La otra aventura [1968], um texto que se chama “Livros e amizades”, em que falo de minha amizade com Borges. É tudo que escrevi até agora. Não sei se um dia poderei escrever o que sinto. É uma dívida que tenho com ele. Gostaria de fazê-lo.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor já deve ter falado isso algumas centenas ou milhares de vezes, mas eu gostaria que o senhor repetisse para o telespectador brasileiro. Como foi o encontro do senhor com o Jorge Luis Borges e como foi a amizade?

Bioy Casares: Bem, Victoria Ocampo [(1890-1979), escritora argentina], minha cunhada, costumava receber personalidades estrangeiras, escritores estrangeiros. Como estou de visita aqui, franceses, ingleses, italianos sempre estavam de visita lá. Os estrangeiros eram convidados. Ele era uma pessoa muito autoritária e exigia que seus amigos, que eram um pouco seus súditos, fossem às reuniões que promovia. Fui convidado. Eu não tinha vontade, mas sabia que, se não fosse, passaria por uma situação desagradável. Estava ali um escritor estrangeiro, estava o Borges, e Borges ficou falando comigo. Victoria ficou brava. Desculpem-me por dizer isso pela televisão brasileira, mas ela disse: “Não sejam uns merdas, falem com os estrangeiros." Borges ficou muito bravo. E daí, ao se sentar, derrubou um vaso e foi uma situação incômoda de levantar coisas do chão. Depois, voltamos a Buenos Aires juntos e continuamos a conversa. E, desde então, até que ele morreu, fomos grande amigos.

Matinas Suzuki Jr.: Qual era o aspecto da personalidade do Borges que mais cativava o senhor?

Bioy Casares: A inteligência de Borges era irreprimível. Ele estava sempre inventando coisas e sempre estava me propondo histórias. Ele gostava de falar de literatura como eu gosto. E nos sentíamos muito amigos.

Luciana Villas-Boas: Eu queria fazer uma pergunta sobre um aspecto particular dessa amizade, dessa colaboração. Eu acho muito difícil escrever com alguém. E eu queria saber como é que dois imensos talentos da literatura faziam quando se dispunham a escrever juntos? O senhor tem uma obra importante com ele.

Bioy Casares: Acho que esse "temos de escrever com outra pessoa" ocorre porque não se tentou escrever com outra pessoa. Quando duas pessoas escrevem juntas e não são vaidosas, escrevem muito mais fácil do que separadas. Todos sabemos, ao escrever, que, às vezes, paramos porque não sabemos como resolver uma frase, como começar a frase seguinte. E quando há duas pessoas, uma delas sempre sabe. Borges dizia que o lamentável de escrever textos juntos é que quando se escreve sozinho é mais difícil. Justo o que acontecia comigo.

Jorge Schwartz: Bioy, a relação Bioy e Borges foi cristalizada pelo crítico Rodriguez Manegal com aquilo que ele denominou "Biorges”. Evidentemente, Borges tinha 15 anos a mais do que você, foi uma espécie de companheiro amadurecido. Eu gostaria de saber, não como ele influenciou você, mas como você o influenciou? No Ensaio autobiográfico [1970], Borges fala em num dado momento: “Bioy levou-me gradualmente ao classicismo”. O que é que Borges quis dizer com isso e qual você acha que foi a sua influência?

Bioy Casares: Sempre há que pensar que, quando se escreve sobre outro, você o enaltece. Borges exagerou, talvez, sobre os meus méritos. Mas, quando ele diz que eu o aproximei do classicismo, pode querer dizer também que o afastei do romantismo. Classicismo, nessa frase, pelo menos, significa as normas, escrever de um modo cuidadoso, simples, em que cada frase soe como necessária e cômoda, como uma conversa. Essa facilidade é realmente muito difícil de alcançar. E lhe recomendei que a buscasse, provavelmente, sem deliberação, mas por minha preferência por certas coisas. Contudo, também é certo que, da primeira vez em que fomos ao campo, Borges e eu, eu tentei defender o ultrismo, todos os ismos. Para Borges, eles eram todos ridículos. E, nessa noite, tive a impressão de ter vencido a polêmica. Mas, no dia seguinte, eu havia passado para o bando de Borges e dos classicistas.

Matinas Suzuki Jr.: A colaboração do senhor com Borges começou com um texto publicitário sobre as virtudes do iogurte. Como foi isso?

Bioy Casares: Bem. Aconteceu nessa mesma ocasião. Fomos à fazenda do meu pai, no sul da província de Buenos Aires. A casa é muito velha, de 1830, e estava quase destruída. Fazia muito frio. Estávamos na sala de jantar escrevendo sempre perto do fogo e tínhamos que escrever a história ou as virtudes do iogurte, um texto pseudocientífico de valor comercial. Estávamos muito aborrecidos com esse texto e sonhávamos escrever um dia contos, romances, sonetos e poesia. Pelo menos, escrevemos os contos que desejávamos tanto escrever.

Rinaldo Gama: Bioy, essa colaboração com o Borges ficou marcada por um personagem escritor, que é Bustos Domecq, já citado aqui. Eu queria saber se o senhor considera o Bustos Domecq [Honório Bustos Domecq, pseudônimo que Casares e Borges usavam para assinar suas obras conjuntas] na mesma estatura de um heterônimo, como os do Fernando Pessoa [(1888-1935), poeta e escritor português, utilizou heterônimos como Alberto Caeiros, Álvaro de Campos e Ricardo Reis] e se o senhor e Borges falavam sobre isso, liam Fernando Pessoa, esse tipo de coisa? Bustos Domecq é um heterônimo na mesma estatura em que Fernando Pessoa utilizava Alberto Caieiro, Ricardo Reis e assim por diante?

Bioy Casares: Não. Nossa admiração por Pessoa nunca nos deixaria dizer isso. Acho que Domecq foi muito bom em Seis problemas [Seis problemas para don Isidro Parodi, publicado em 1943] e nas crônicas. Os outros livros dele, como Dos fantasías memorables [Duas fantasias memoráveis, de 1946] e outros, é melhor esquecer. Pusemo-nos a escrever, mas cada frase era uma brincadeira e, assim, quase destruímos os textos.

Augusto Massi: O senhor escolheu alguns gêneros que, dentro da literatura argentina, não eram gêneros muito comuns, como a ficção científica e certas regras do romance policial. De onde veio essa influência, essa opção?

Bioy Casares: Com certeza de leituras. Não sabemos como chegamos a isso, mas foi a opção que fiz e que voltaria a fazer.

Augusto Massi: Mas o Borges, por exemplo, dentro dessa eleição, ele enumerava alguns autores como Júlio Verne [nome aportuguesado de Jules Verne (1828-1905), escritor francês de ficção científica que antecipou, entre outros feitos, a viagem do homem à Lua e o submarino)], Wells [Herber George Wells (1866-1946), escritor britânico de ficção científica cuja obra inclui A máquina do tempo, A guerra dos mundos e O homem invisível] e chegava mesmo a Francis Bacon [(1561-1626), filósofo, político e ensaísta britânico. Entre seus livros figura a obra inconclusa A nova Atlântida, que narra a vida dos habitantes da ilha utópica de Bensalem, governada por sábios-cientistas da Casa de Salomão], como quem, vamos dizer, teria dado a origem ao gênero da ficção científica. O senhor, quando adolescente, menino, que livros o senhor leu que o marcaram e o levaram a essa opção? Ou foi uma opção madura, já da idade adulta?

Bioy Casares: Os livros que li, sobretudo a história de Pinocchio [As aventuras de Pinóquio, clássico infantil de Carli Collodi, pseudônimo do escritor italiano Carlo Lorenzine (1826-1890)], o boneco que falava e se comportava como um homem. Possivelmente, isso me encaminhou em direção às invenções fantásticas.

José Geraldo Couto: O escritor argentino Ricardo Piglia tem uma tese sobre o conto. Ele diz: “Todo bom conto narra duas histórias, na verdade: uma história explícita, que transparece pela leitura, e uma história secreta, que está por trás da história explícita, que se revela aos poucos ao leitor.” Me parece que os seus contos são exemplares desse tipo de idéia. Eu gostaria de saber o que o senhor acha dessa tese e se, quando o senhor escreve, pensa em ocultar uma história por trás daquela que está sendo narrada?

Bioy Casares: Meu querido amigo, não. Como falamos de literatura fantástica, essa me parece uma tese um pouco fantástica. E, se meus contos são assim, nunca foi proposital, saíram assim.

Maria Cristina Poli: O senhor e o Borges, como amigos e cúmplices, deixaram para trás alguns projetos comuns que não foram realizados, que não deu tempo de serem escritos, enfim?

Bioy Casares: Não, porque o que queríamos escrever eram contos e ter projetos de contos futuros. Quando se tem projetos de contos se escreve. Se Borges estivesse vivo, provavelmente, teríamos escrito outro livro, mas, isso é imprevisível agora.

Matinas Suzuki Jr.: Bem, nós faremos agora uma breve pausa e voltamos daqui a pouco com o Roda Vida, que esta noite entrevista o escritor argentino Bioy Casares. Até daqui a pouco.

[intervalo]

Matinas Suzuki Jr.: Bem, nós voltamos com o Roda Viva que esta noite entrevista o escritor argentino Adolfo Bioy Casares. Nós lembramos que, como este programa foi gravado, não é possível a participação do telespectador através das perguntas por fax ou telefone. Senhor Bioy Casares, voltando ao seu Dicionário do argentino esquisito [1971], o senhor recolheu a palavra "dolarizado", que é uma palavra que está na moda no mundo da economia. É uma palavra bastante utilizada nos planos econômicos do Brasil e da Argentina. Me parece que ela é tirada de uma canção ou de um poema. São os seguintes versos: “Mendigo mísero, dolarizado, deixaste a mais de um mal amparado”. De onde o senhor recolheu esses versos?

Bioy Casares: De minha colheita pessoal.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor que inventou [risos]? Quer dizer que não existe esse "louvalvo com dispêndio em Buenos Aires"?

Bioy Casares: Não, não existe.

Matinas Suzuki Jr.: Isso é uma invenção?

Bioy Casares: Uma brincadeira, exatamente.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor também faz referências nas suas entrevistas e nas suas memórias ao universo do tango. O senhor disse que tanto se interessou pela literatura como pelo tango, que foi uma das manifestações da cultura argentina que mais lhe interessaram. Que tango que o senhor gosta mais, qual é o cantor de tango preferido pelo senhor, qual é o autor de tango preferido?

Bioy Casares: Minha cantora de tangos preferida se chamava Sofia Bozán [(1904-1958)]. Ela cantava muito bem. E os tangos que prefiro são os antigos, como "Entrada prohibida" [de Enrique Domingo Cadícamo (1900-1999), escritor, poeta e letrista argentino], "Hotel Victoria" ["Gran hotel Victória", de Carlos Pesce], "La cumparsita" [clássico do uruguaio Gerardo Matos Rodríguez (1897-1948)], eu gostava muito, se bem que um pouco menos. "La morocha argentina", "El apache argentino" [de Carlos Waiss] são tangos todos anteriores ou de cerca de 1900. Havia letras de que eu gostava muito. E eu, quando era criança, lia em uma revista que se chamava El ama que canta, que era só de letras de tango. Eu gostava muito dessas letras, mas, quando eu cantava tango, as pessoas se queixavam, porque parece que não sou nada afinado. Que fazer?

Jorge Schwartz: Ainda com relação ao tango, o senhor já disse que gosta dos tangos mais antigos, mas eu gostaria de saber o que o senhor pensa do tango moderno, como do Ástor Piazzolla [(1921-1992), compositor e bandoneonista argentino. Estudante de harmonia e música erudita, amante do jazz, Piazzolla introduziu diversas inovações no tango, que concebia como "música contemporânea de Buenos Aires"]?

Bioy Casares: De Ástor Piazzola, às vezes, parece que gosto, mas, em geral, não gosto muito.

Matinas Suzuki Jr.: A diferença da música brasileira com o tango é que o tango, para nós brasileiros, parece muito dramático, tem uma concepção mais trágica das relações humanas. O tango é o espírito dos argentinos? O senhor reconhece no tango uma manifestação da alma do argentino, característica da alma argentina?

Bioy Casares: Pode ser, mas me atrevo a dizer que, se ouvisse os tangos velhos, você veria que são animados. Não são como os tangos sentimentais dos anos 30, 40 e 50. Esse tangos são, na realidade, "tangos-milongas". Então, quando você os ouve tem vontade quase de brigar. O que não se sente com os tangos tristonhos, que vieram depois.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor tem conhecimento que o vocabulário do fado [estilo musical tradicional português] influenciou a música brasileira e que expressões como malandro, otário e bacana são correntes na música brasileira através da influência da música argentina?

Bioy Casares: Não sabia disso. Mas sabia que há palavras comuns. Tango, por exemplo, é uma palavra brasileira. E existem muitas outras por lá.

Luciana Villas-Boas: Voltando à literatura, o senhor concorda com a idéia de que a prosa argentina é muito superior à brasileira, mas que a poesia brasileira é muito mais rica do que a argentina?

Bioy Casares: Não posso opinar sobre nenhuma das duas coisas. Conheço prosa brasileira de que gosto muito, mas não conheço muitos livros. Em Buenos Aires, nas livrarias, não se encontram freqüentemente livros brasileiros. E de poesia brasileira não conheço nada. Gostaria muito de conhecer, porém não sei se estou preparado para entender. Mas gostaria de ler.

Matinas Suzuki Jr.: Quais são os autores brasileiros que o senhor gosta?

Bioy Casares: Bem, sempre volto a Jorge Amado [(1919-2001)], de quem gosto muito. É que, quando gosto muito de um escritor, e ele está vivo, em geral, sou amigo dele.

Matinas Suzuki Jr.: Da língua portuguesa nas suas Memórias, que é este livro, o senhor menciona o Eça de Queiroz [(1845-1900), romancista, contista, cronista, crítico literário e epistológrafo. É considerado o principal expoente português do realismo. Dentre seus romances mais importantes estão Os Maias, O crime do padre Amaro e O primo Basílio]. Algum outro autor, em língua portuguesa, lhe interessou?

Bioy Casares: Não sei. Me interessou muito Eça de Queiroz. Li e reli em Buenos Aires As cidades e as serras [romance publicado em 1901, após a morte do autor], e aquele outro... Como se chama? A ilustre casa de Ramires [1900]. Puseram com “z” [Ramirez], na minha tradução, mas é com “s”. Que mais posso dizer?

Matinas Suzuki Jr.: Bom, esses são os escritores…

Bioy Casares: São minhas preferências e meus conhecimentos também.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor se interessou bastante pela cultura italiana, principalmente pela cultura italiana contemporânea.

Bioy Casares: Sim, conheço muito. Como não?

Matinas Suzuki Jr.: Quem são os autores da literatura italiana que o senhor gosta?

Bioy Casares: Diria que Sciascia [Leonardo Sciascia (1921-1989), escritor, ensaísta e político italiano] é um dos meus autores favoritos. Calvino [Italo Calvino (1923-1985), um dos mais importantes escritores em língua italiana do século XX. Nasceu em Cuba, onde seus pais estavam de passagem. Ficou internacionalmente conhecido a partir da trilogia Os nossos antepassados, formada pelos livros O visconde partido ao meio, O barão nas árvores e O cavaleiro inexistente. Mesmo quando escrevia fábulas, Calvino não deixava de tratar da realidade de seu país e do mundo, bem como das questões políticas de seu tempo] também. Eu o aprecio muitíssimo. Não sei se há muito mais.

Rinaldo Gama: Alguma influência desses escritores em sua obra? Calvino, por exemplo?

Bioy Casares: Me disseram que certas coisas de Sciascia e de Calvino se parecem com as minhas, mas não sei, não opino sobre isso.

Jorge Schwartz: Bioy, você passou a vida inteira casado com uma grande, extraordinária escritora argentina, acho que pouco conhecida no Brasil, Silvina Ocampo [1903-1994]. Eu gostaria de perguntar o que significa para um grande escritor conviver com uma grande escritora. E também pela obra dela, não só literária, como pintora. Vocês escreveram juntos textos?

Bioy Casares: Silvina era uma pintora extraordinária. Talvez, não sei, porque nos enamoramos, eu a converti em escritora. Ela continuou pintando, mas escrevia muito bem. Agora, Carmen Barcels [agente literária] está preocupada em vender suas obras completas, porque está muito esquecida. Mas, posso dizer que a vida com ela foi muito boa.

Jorge Schwartz: E a irmã dela, Victoria Ocampo, que você já falou brevemente dela, mas a Victoria Ocampo e o grupo Sur [grupo de artistas e escritores que colaboravam para a revista Sur, editada por Victoria Ocampo. A publicação se identificava com uma cultura conservadora e elitista, dando espaço para autores estrangeiros] de alguma forma modificaram o gosto literário argentino, introduziram uma tendência. Você poderia falar sobre esse famoso grupo e sobre essa época?

Bioy Casares: Você acha que o grupo Sur mudou as coisas?

Jorge Schwartz: Bom, introduziu uma série de autores.

Bioy Casares: Porém não eram os que eu gostava.

Jorge Schwartz: Você não quer falar das suas intenções?

Bioy Casares: Por exemplo, quando se fez o livro sobre literatura inglesa, eu propus que incluíssem George Moore [(1852-1933)], Kipling [Joseph Rudyard, (1865-1936)], Wells [Herbert George Wells (1866-1946)], e Conrad [Joseph Conrad (1857-1924), escritor britânico de origem polonesa que teve como tema principal de sua obra o mar e os marinheiros. É autor de Linha de sombra, em que um inexperiente capitão se vê duplamente desafiado, por uma epidemia e por uma calmaria que o impede de atingir seu destino, e de O coração das trevas, provavelmente derivado da experiência de Conrad na Cracóvia (Polônia) sob a ocupação russa, livro em que Francis Ford Coppola se inspirou para fazer Apocalypse now], é claro. E esses não eram os autores do grupo Sur.

Janer Cristaldo: Bioy Casares, a sua geração viveu uma grande discussão em Buenos Aires, entre los de Florida e los de Boedo. [Após a primeira guerra, o cenário literário argentino teve duas representações. Havia os escritores do grupo Flórida, formado por vanguardistas e conservadores, que tinha as revistas Proa e Martín Fierro como principais publicações. E o grupo Boedo, formado pelos realistas, jornalistas e socialistas, que publicavam a revista Claridad]

Bioy Casares: Isso é invenção literária.

Janer Cristaldo: Não houve nada?

Bioy Casares: Éramos todos amigos. Creio que era para dar um pouco… para que a literatura fosse um pouco mais dramática.

Janer Cristaldo: Sim, mas, grosso modo, o que seriam los de Boedo e los de Florida?

Bioy Casares: Sem que seja verdade, eu diria que os meninos bons estavam em Florida e os maus estavam em…

Maria Cristina Poli: Eu gostaria que o senhor falasse mais sobre a parceria do senhor com a Silvina Ocampo. E que o senhor começasse por contar um pouco sobre o título desse livro, que vocês escreveram juntos, que é Os que amam odeiam [Los que aman, odian, de 1946] .

Bioy Casares: Sobre o título, não estávamos nada de acordo. Me parece um ótimo título, porém, não corresponde a minhas crenças. Não creio que os que amem odeiem. Parece que, se odeiam, não amam muito bem. Mas Silvina dizia que o título era bom e, então, o pusemos.

Maria Cristina Poli: Vocês ficaram 50 anos casados, é isso? O senhor era um homem fiel no seu casamento?

Bioy Casares: Não creio que fui fiel e isso me dói muito, porque a amava muito. Mas é tão difícil dirigir a própria vida, e a gente vive como pode.

Maria Cristina Poli: O senhor acha que o casamento é uma boa fórmula para duas pessoas viverem juntas?

Bioy Casares: Não. Creio que é espantoso. Mas, apesar do casamento, eu e ela sempre nos quisemos. Creio que tudo o que o obriga a algo, você, espontaneamente, rejeita. E o casamento é uma promessa de amar-se. Acho que nos amamos, apesar do casamento.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor está escrevendo ou terminou de escrever um conto chamado "Ir-se", que seria baseado na sua experiência com as mulheres ou dedicado às mulheres. É verdade isso?

Bioy Casares: É a primeira vez que ouço isso. Não sabia que o havia dedicado a mulheres. Não. É um conto como qualquer outro. O livro iria se chamar Ir-se. Me parecia bem, até que alguém disse que se eu pusesse Ir-se, era porque sentia que iria morrer. Então, já não gostei tanto do título.

Matinas Suzuki Jr.: E qual é o nome?

Bioy Casares: O nome do livro? Ainda não sei.

Luciana Villas-Boas: As relações entre autores e editores muitas vezes são conflituosas.

Bioy Casares: São péssimas na verdade [risos].

Luciana Villas-Boas: O senhor foi editor também. Dirigiu uma coleção para a MC, uma editora importante da Argentina. Eu queria saber como é que foi esta experiência de editor?

Bioy Casares: Fui diretor de edições da MC durante muito tempo.

Luciana Villas-Boas: Como foi essa experiência e como que são as suas relações hoje com as suas editoras?

Bioy Casares: Em geral, minhas relações são boas com os editores, porque não exijo nada deles. Se exigisse algo, seriam péssimas. Durante 50 anos, meus livros foram publicados pela MC com muitas erratas. Nenhum livro tem tantas erratas como o meu e, no entanto, tolerei. Se eu tivesse um pouco mais de caráter, teria procurado outro editor. Não o fiz, talvez, por achar que seria tão ruim quanto esse.

Luciana Villas-Boas: E como era o senhor como editor?

Bioy Casares: Não sei se fui editor. Fui diretor de coleções. Nós propusemos à MC uma coleção de livros que se chamaria “Sumas” e que teria as melhores obras dos melhores autores. Como essa coleção era postergada e eu, um dia, estava gripado, pensei que os conhecimentos meus e de Borges de novelas policiais poderiam permitir que fizéssemos uma coleção. Propus isso a Borges, que achou ótima a idéia. Propus, depois, à MC e ela disse que os publicaria com o nosso nome e não com o nome da MC, porque parecia indigno da MC uma coleção de romances policiais. Depois, foi essa coleção que evitou a ruína da MC, porque vendia muito. Afora isso, fizemos outras coleções, já esquecidas, mas creio que tinham bons romances.

Matinas Suzuki Jr.: Por que o senhor começou pela literatura policial? É o fascínio pelo mistério?

Bioy Casares: Eu sempre apreciei a construção dos romances policiais. Um romance policial não é bom se não tem um início promissor, um meio que provoque ansiedade e um final que corresponda à frase latina Finis coronat opus – o fim que coroa a obra. Acho que a literatura policial ensina a escrever livros e seria bom que os que não escrevem literatura policial levassem um pouco em conta a construção de histórias policiais ou fantásticas para escrever seus livros.

Maria Cristina Poli: Houve alguma influência do cinema sobre a sua literatura?

Bioy Casares: Não sei. Sei que gosto muito de cinema e que, durante muitos anos, eu ia todas as tardes nas primeiras sessões de cinema, às 3 da tarde, quando os cinemas estavam vazios. Já disse uma vez que gostaria que o fim do mundo me colhesse numa sala de cinema. De modo que gosto muito de cinema, mas não sei se existe essa influência.

Maria Cristina Poli: O senhor tentou escrever para o cinema. Por que é que não deu certo?

Bioy Casares: Bom, em parte porque, quando pediram a Borges e a mim que escrevêssemos roteiros, não sabíamos fazê-lo. Realmente não eram bons e não os aceitaram.

Jorge Schwartz: Bioy, no livro Memórias você diz, justamente, que “a sala do cinema é um lugar que eu escolheria para esperar o fim do mundo”. Mas qual é o filme que você gostaria de estar assistindo enquanto acontece o fim do mundo?

Bioy Casares: Que linda pergunta! Não sei. Gostei de tantos.

Jorge Schwartz: Mas seria um filme novo ou você gostaria de rever algum filme?

Bioy Casares: Bem, que seja um filme novo, para que seja uma surpresa.

Matinas Suzuki Jr.: O que o senhor está lendo atualmente? O que interessa ao senhor literariamente atualmente?

Bioy Casares: Já lhes contei. Estou lendo El alcalde de Furnes, de Simenon [Georges Joseph Christian Simenon (1903-1989), escritor belga de língua francesa que figura na lista dos mais traduzidos no mundo. Sua obra se conta em centenas de romances, dezenas de novelas, contos, artigos e reportagens, muitos publicados sob pseudônimos]; O homem que via passar os comboios, de Simenon; A neve suja, de Simenon; O contexto, de [Leonardo] Sciascia, outros livros de Sciascia que no momento não me lembro.

Matinas Suzuki Jr.: E há algum escritor argentino jovem que o senhor tenha… Há alguma revelação que o senhor tenha para nos contar e que seria interessante o público brasileiro descobrir?

Bioy Casares: Acho que Daniel Martino vai ser um ensaísta muito bom. Não conheço muitos.

Luciana Villas-Boas: E latino-americano, em geral, o senhor acompanhou a produção pós-mundo do realismo mágico?

Bioy Casares: Não, realmente, não. Mas gosto muito de [Gabriel] García Marquez, de Vargas Llosa eu gosto muito, de Guillermo Cabrera Infante [(1929-2005), escritor cubano, autor de Três tigres tristes, livro que trata da cultura, da música e da vida noturna de Havana antes da revolução. Tido como um dos principais expoentes da literatura cubana, foi adido cultural de seu país em Bruxelas, mas em 1965 assumiu-se como crítico do regime e se exilou na Inglaterra. Em 1997, recebeu o Prêmio Cervantes] gosto muito.

Janer Cristaldo: Bioy Casares, onde o senhor situaria a literatura de Ernesto Sábato [(1911-), controverso escritor, ensaísta e artista plástico argentino. Doutor em física, fez pesquisas no Laboratório Curie, em Paris, e no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), depois se tornou professor da Universidade de Buenos Aires até 1943, quando uma crise existencial o levou a abandonar a ciência para se dedicar à arte]? E eu gostaria de saber se o senhor considera um romance representativo na história da constituição da Argentina, Sobre heróis e tumbas [1961]?

Bioy Casares: É um livro que não me parece mau, nem bom.

Janer Cristaldo: Uma outra pergunta. Há um poema conhecido no mundo inteiro que é totalmente desconhecido aqui e me parece ser o substrato da literatura argentina: Martín Fierro [poema épico de José Hernandez (1834-1886), foi publicado em duas partes: a primeira, com o título El gaúcho Martín Fierro, em 1872, a segunda, intitulada La vuelta de Martín Fierro, em 1879. Louva o caráter heróico e independente dos habitantes dos pampas, que seriam os legítimos representantes do caráter nacional. É considerado um símbolo da argentinidade]. Onde o senhor coloca o Martín Fierro na arquitetura literária argentina?

Bioy Casares: Com temor de ser supersticioso e de ser patriota sem querer, Martín Fierro me parece muito bom. Fiz uma lista dos melhores livros que havia e nela estava Eça de Queiroz e está também Martín Fierro.

Janer Cristaldo: E o Facundo [obra do argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) publicada em 1845] aonde o senhor colocaria?

Bioy Casares: Muito bom. Um livro extraordinário.

Rinaldo Gama: Eu gostaria de saber a influência que o seu pai [Adolfo Bioy] teve na sua formação, já que ele também era um literato e chegou a ser o seu primeiro editor, corrigir o seu primeiro livro.

Bioy Casares: Sim. Meu pai quis escrever e não escreveu. Era amigo de escritores, era amigo de Alfonso Reyes [(1889-1959), escritor, filósofo e diplomata mexicano. Considerado por Jorge Luis Borges o maior escritor de língua espanhola de todos os tempos, influenciou a geração seguinte não somente no México, como também na América Latina], era amigo de muitos escritores importantes que tivemos na Argentina. E, quando escrevi o primeiro livro, meu pai o corrigiu. Alguém descobriu essas correções e me disse que um escritor não devia permitir que ninguém o corrigisse. Eu discordo totalmente. O escritor deve pôr, acima do interesse pessoal, o interesse pelo texto. Se uma correção alheia é boa, deve aceitá-la imediatamente. Meu pai me fez crer que Torrendel, um editor argentino, havia comprado um livro meu e que estava disposto a publicá-lo. Sem dúvida, meu pai o havia pago, mas eu levei toda a vida para descobrir isso.

Luciana Villas-Boas: O senhor repudiou toda a sua obra antes dos 26 anos, apesar de ter começado a escrever muito menino e ter publicado adolescente. Eu queria saber se os motivos pelos quais o senhor escrevia também se modificaram muito. Se o impulso do ato de escrever, do menino, do jovem, é diferente do homem maduro, já mais velho. É o mesmo ou radicalmente diferente?

Rinaldo Gama: E se a precocidade, aproveitando isso, é um mal?

Bioy Casares: Não acho que seja um mal. Acho que estas tentativas frustradas de escrever me ensinaram a escrever todos os fracassos. Me parece também que tenho uma dívida com o público, por haver lhe oferecido esses livros que eram péssimos, como se eles merecessem ser lidos. Não é por superstição que o digo, ou por originalidade, mas, realmente, qualquer um de vocês vai concordar comigo que esses livros eram muito ruins.

Jorge Schwartz: Você reescreveu muito A invenção de Morel ou foi de uma tacada só?

Bioy Casares: Eu o reescrevi muitas vezes. Levei 3 anos escrevendo-o. Eu, geralmente levo 3 anos para publicar um livro.

Jorge Schwartz: E os manuscritos ainda estão com você ou você se desfaz?

Bioy Casares: Eu perdi muitos manuscritos. Tenho alguns. Alguns amigos meus me criticam por tê-los perdido, mas, realmente, nunca lhes dei importância. E seria uma vaidade absurda pensar que mereciam ser guardados. Se o público, depois, diz isso, tudo bem. Porém, não devemos ficar preocupados com tão pouco.

Maria Cristina Poli: No momento, o senhor está escrevendo alguma obra, tem alguma obra em andamento?

Bioy Casares: Estou concluindo um livro de contos. Vou publicar um livro sobre uma viagem por Le Touquet, uma região da França. Mas tenho de corrigir antes de publicá-lo. São os 2 livros que vão sair. Não. Antes sairá outro livro, que se chama Jardins ajenos [Jardins alheios], que existe graças a um costume que tive ao longo da vida. Quando lia um poema, ou uma prosa breve, de que gostava muito, eu punha num caderno. Esses cadernos já têm muitíssimas páginas e posso dizer que são de leitura muito agradável. Como não têm nenhuma linha minha, posso dizer, sem passar por ridículo, que são bons. Esse livro se lê, abrindo em qualquer página e encontrando algo divertido para ler.

Maria Cristina Poli: O senhor escreve onde? No seu quarto, na sala, onde o senhor prefere escrever?

Bioy Casares: Em qualquer lugar, mas, em geral, na escrivaninha que tenho em casa.

Maria Cristina Poli: O senhor passa mais tempo dando entrevista ou escrevendo?

Bioy Casares: Agora, muito mais tempo dando entrevistas que escrevendo. Penso que, realmente, a literatura que pratico agora é a reportagem.

José Geraldo Couto: O senhor condena a vaidade como um dos defeitos principais do artista, do escritor. No seu livro Memórias o senhor fala muito contra a vaidade. Agora, o senhor ganhou todos os prêmios mais importantes da língua espanhola até agora, prêmios importantes internacionais, eu acho que só falta o Prêmio Nobel mesmo. Eu gostaria de saber qual é a sua expectativa ou sua posição com relação a essa possibilidade de ganhar o Prêmio Nobel?

Bioy Casares: Isso eu perguntaria aos jurados do Prêmio Nobel. Espero que levem a sério este candidato e o premiem um dia.

Matinas Suzuki Jr.: É por ter essa aversão à vaidade, por exemplo, que o senhor escreveu um livro de memórias tão sucinto? Mesmo tendo uma vivência literária e de convivência com escritores tão grande como o que o senhor teve, ao longo de um século praticamente inteirinho? Quando, hoje, as memórias e as biografias têm 1000 páginas e o senhor escreveu um livro de memórias com apenas 200 páginas.

Bioy Casares: Pareceu-me que eu disse tudo o que tinha a dizer nessas duzentas páginas. Pode ser que escreva mais, mas escrevi esse com muito prazer.

Rinaldo Gama: O senhor abandonou a universidade, até aconselhado pelo Borges e por sua esposa, para se dedicar à literatura.

Bioy Casares: Não foi assim. Oxalá fosse assim!

Rinaldo Gama: Eu quero perguntar, é como o senhor vê hoje esse divórcio, essa renúncia? Essas coisas são tão excludentes assim? A dedicação à literatura e a dedicação a preparação literária, o estudo acadêmico, esse tipo de coisa.

Bioy Casares: Não sei muito bem o que é uma vida acadêmica. Mas creio que o escritor não deve ser outra coisa senão escritor. Eu deixei a faculdade de direito porque me custava um esforço muito grande estudar, e pensei que isso nunca me serviria na vida, pois o que eu queria era escrever. Para que meus pais não pensassem que o que eu queria o ócio, fui para faculdade de filosofia e letras, onde me senti mais distante da literatura do que quando fazia direito. Então, deixei as duas, e, por sorte, Borges e Silvina me disseram que fiz bem.

Matinas Suzuki Jr.: O senho lê a crítica literária?

Bioy Casares: Sim, como não? Há críticas de que gosto muito, mas, em princípio, a crítica foi muito dura comigo. Contudo, continuei escrevendo e hoje estou de acordo com os críticos que diziam que esses meus livros eram maus, porque acho que eram péssimos.

Matinas Suzuki Jr.: Agora, me perdoe se eu estou errado, parece que o senhor parece que tem uma aversão ao universo da política ou aparece muito pouco o tema explicitamente político nos seus livros, nas suas memórias ou nas entrevistas. Uma boa parte dos artistas latino-americanos não se dedicaram à militância política por achar que esse é um continente subdesenvolvido e precisaria de mudanças muito grandes. Como o senhor encara o problema da política?

Bioy Casares: Provavelmente, creio que todos devíamos nos dedicar à política, mas, em minha vida, quando fui partidário de alguém em política, me senti fraudado depois. Quando achava que alguém era mau em política não me enganava, mas me equivocava sempre que confiava neles e não me equivocava nunca quando não confiava. Essa minha incapacidade de saber que alguns eram maus quando achavam que eram bons me fez pensar que eu não servia para isso. Algo assim como “Sapateiro, a seus sapatos”. Então, me dediquei ao que sabia, ou acreditava saber, que é literatura.

Luciana Villas-Boas: Mas as suas concepções políticas mudaram com os acontecimentos desse fim de século? Ou não?

Bioy Casares: Não. Minhas concepções políticas são sempre as mesmas. Sou partidário de uma política liberal e de entendimento entre as pessoas. Entediam-me as ditaduras.

Matinas Suzuki Jr.: O senhor tem a expectativa de desenvolver algum trabalho no Brasil, de ser mais conhecido no Brasil, de participar mais ativamente da literatura, da vida literária ou da vida cultural do Brasil?

Bioy Casares: Não tenho planos sobre isso. Mas tenho planos de vir ao Brasil, vir a São Paulo, durante os invernos em Buenos Aires, porque descobri que me sinto muito bem aqui, as pessoas são boas. Mas, a transcendência literária disso será o que for, não penso em tal coisa.

Matinas Suzuki Jr.: Senhor Bioy Casares, da leitura das memórias do senhor e dos relatos que o senhor faz da amizade com o Borges, deu a impressão que vocês eram muito mais leitores do que escritores. Faz sentido uma afirmação desse tipo?

Bioy Casares: Creio que tem sentido e que o senhor tem razão. Nunca havia pensado que fosse mais leitor que escritor. Mas sou mais leitor que escritor por sorte, pois há uma literatura universal maravilhosa, da qual não me canso.

Augusto Massi: O senhor pensa em publicar outro livro de memórias, de ter alguma continuação do livro de memórias?

Bioy Casares: Pensava, quando escrevi esse. Alguns me fizeram pensar nisso, dizendo que esperam outro livro meu. Só posso dizer que estou escrevendo contos, que estou tratando mais ou menos de conceber um romance, e, se viver muito, escreverei outro livro de memórias.

Augusto Massi: Eu queria só complementar com uma pergunta. Eu queria que o senhor contasse o caso dos contos que o senhor e o Cortázar escreveram. São contos bastante similares e é uma história bastante fantástica para ter acontecido com 2 escritores como o senhor e o Cortázar. É surpreendente um acaso desses, brilhante. O senhor podia relatar? [referindo-se aos contos El mago inmortal, de Casares, e La puerta condenada, de Cortázar]

Bioy Casares: Como aconteceu só Deus pode saber. Mas o incrível é que escrevemos um conto que se passava em Montevidéu, no hotel Cervantes, com um monte de coisas idênticas. Tanto Cortázar quanto eu ficamos muito felizes com isso, pois nos pareceu que corroborava com o sentimento de amizade e afinidade que havia entre nós. Nenhum dos 2 se envergonhou ou lamentou o sentido de originalidade: "que pena que o outro fez”. Não, nós 2 gostamos muito. [os 2 contos relatam as experiências dos autores ao dormirem no hotel Cervantes, fazendo menção ao incômodo pelo barulho nos quartos vizinhos].

Jorge Schwartz: Só que no final da vida, o Cortázar, talvez.. Em um dos seus últimos contos, no livro Das horas, em que ele começa o texto sem saber como começar, ele diz: “Quando eu não sei começar um conto, eu justamente gostaria de ser o Adolfo Bioy Casares”. Gostaria que você comentasse.

Bioy Casares: Não quer dizer nada. Ouça-me: isso só quer dizer que Cortázar era generosíssimo e que nos estimávamos muito. Creio que, sem mim, Cortázar sabia muito bem escrever contos.

Jorge Schwartz: Bioy, mais uma pergunta. Eu acho que existe um Bioy Casares desconhecido para o público que é o Bioy Casares fotógrafo. Você poderia falar um pouco disso?

Bioy Casares: Sim, sempre gostei de fotografia. Quando comecei a fotografar a fotografia me absorveu. Durante 10 anos, fotografava o dia todo muitas vezes. De noite, já não pensava mais no conto e, sim, na fotografia que iria tirar amanhã.

Jorge Schwartz: Em que época foi isso?

Bioy Casares: Eu creio que foi entre os anos 50 e 60. Meu passado é bastante confuso, não poderia delimitá-lo de modo claro, mas acho que fotografei bastante bem. Lamento não continuar fotografando, mas, não se pode fazer duas ou três coisas ao mesmo tempo.

Luciana Villas-Boas: Eu queria voltar um pouquinho na literatura argentina. Parece-me que ela é muito mais influenciada pelo cinema do que a literatura brasileira. E outra coisa que eu queria perguntar a partir de uma entrevista muito bonita que você deu para o José Geraldo Couto, no caderno “Mais”. O senhor disse que no cinema prefere os grandes filmes americanos, que são narrativas muito mais convencionais comparativamente à literatura que o senhor faz, que é mais inventiva, de ruptura e fantástica. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre isso, sobre essa relação da literatura argentina com o cinema.

Bioy Casares: Não sei. Me espanta que haja muita relação entre a literatura argentina e o cinema. Em geral, não gosto muito do cinema argentino. Por outro lado, é verdade que gosto muito dos grandes filmes americanos. Mas, não diria que mais que dos grandes filmes italianos, dos grandes filmes ingleses e de muitos filmes, como Macumba [Sexual, de 1981], que são tão bons quanto os filmes americanos. Não gosto é do cinema de vanguarda, do cinema de cinemateca. Gostaria que de algum texto meu fizessem um filme, que as pessoas fossem ver nos sábados e domingos com a família e que se divertissem muito. Mas, os filmes que não divertem ninguém são construção de pessoas muito egoístas, que só pensam em si, como são os filmes de cinemateca, que não me interessam nada.

Jorge Schwartz: Bioy, você fala com certa resistência sobre vanguarda.

Bioy Casares: Sem nenhuma. Falo abertamente contra a vanguarda. Acho que foi uma catástrofe na história da cultura, da qual estamos nos recuperando um pouco. Essa modernidade é o que de mais antigo pode haver, mas antigo em um sentido péssimo. É algo que temos que superar.

Jorge Schwartz: Agora, veja, na sua extraordinária Antologia da literatura fantástica, que você fez com a Silvina e com o Borges, você coloca 2 textos do James Joyce, 2 fragmentos de Ulisses [de James Joyce, obra de 1922], 2 textos do Ramon Lacerna, um grande vanguardista, e do Macedónio Fernandez [(1874-1852)]. Quer dizer, a vanguarda está representada.

Bioy Casares: Creio que Joyce é um dos maiores escritores que existiram. Mas Ulisses é uma catástrofe na história da literatura [risos].

Rinaldo Gama: Em que sentido é uma catástrofe?

Bioy Casares: Porque acho que as pessoas começaram a escrever livros confusos e achavam que a obscuridade de Ulisses era um mérito, quando era um defeito. Eu diria que o gênio de Joyce se revela em frases, momentos, em cenas graciosas, maravilhosamente realizadas, e que ninguém mais poderia realizar. Mas, escrever um livro assim é dar um mau exemplo. E esse exemplo foi seguido por muita gente.

Luciana Villas-Boas: E O homem sem qualidades do Musil [Robert Musil]? O que o senhor acha?

Bioy Casares: Conheço pouco o nosso amigo Musil.

Maria Cristina Poli: Existe um escritor brasileiro, também muito experiente, o nome dele é Darcy Ribeiro, e ele tem pregado muito aos jovens que eles “deveriam ler menos e viver mais”.

Bioy Casares: Não me parece. Lamento muito, estou em desacordo com ele. Acho que seria uma felicidade poder ler todos os bons livros que existem. É doloroso saber que não leremos todos eles.

José Geraldo Couto: Me parece que o senhor é a prova que essas duas coisas não são incompatíveis, porque o senhor leu muito, lê muito e vive bastante.

Bioy Casares: Agradeço muito por isso. Não me atreveria a me mostrar como exemplo.

Maria Cristina Poli: O senhor viveu intensamente?

Bioy Casares: Acho que sim. Acho que sim.

Rinaldo Gama: Mas o senhor falou várias vezes aqui no programa que não se pode confundir literatura com vida. Eu queria que o senhor explicasse porque a literatura não tem nada a ver com a vida?

Bioy Casares: Não. Tem muitíssimo a ver. A literatura é uma parte da vida. Mas nem tudo que é bom para a vida é bom para a literatura.

Janer Cristaldo: E o que o senhor acha da afirmação de Borges de que a teologia é um gênero como a literatura fantástica?

Bioy Casares: Acho que estou de acordo.

José Geraldo Couto: E também a psicanálise? O senhor concorda que a psicanálise é um gênero da literatura?

Bioy Casares: Acho que é outra catástrofe.

Rinaldo Gama: O senhor é ateu. Não acredita em nenhuma forma de superioridade.

Bioy Casares: Sou ateu, graças a Deus.

Luciana Villas-Boas: Para um jornalista é muito bom uma pessoa que tem aversão à vaidade e se dispõe a dar entrevista de uma forma, assim, despretensiosa, como o senhor faz. O senhor gosta de dar entrevista? Porque é sempre um afago ao ego dar entrevista.

Bioy Casares: Fico aterrorizado antes de dar uma entrevista. Tenho muito medo. Medo de não lembrar nada, de ser um idiota. Mas, quando tenho a sorte de encontrar pessoas agradáveis, como encontrei hoje, sinto que é uma conversa entre amigos e que esse susto meu é um tanto exagerado.

Luciana Villas-Boas: O senhor lê as suas entrevistas, ou assiste, ou vai guardar o vídeo desta entrevista, por exemplo?

Bioy Casares: Confesso que não. Se lesse minhas entrevistas, talvez me entristecesse um pouco.

Matinas Suzuki Jr.: Qual a distinção para o senhor entre escrever um conto e escrever um romance?

Bioy Casares: Creio que não há explicação para isso. Quando se tem um relato, sabe-se que será um conto ou um romance. Por que se sabe? Ignoro. Talvez, quando se tem um relato sem muitos personagens e que se termina rápido, tem-se um conto. Quando se imaginam muitos episódios, teremos um romance.

Matinas Suzuki Jr.: Bem, senhor Bioy Casares, o nosso tempo está esgotado, eu gostaria muito de agradecer a sua presença aqui neste programa. E terminar o programa fazendo uma brincadeira, conforme sugestão do Augusto Massi, que está aqui do lado. O senhor, que a gente poderia imaginar em Bustos Domecq, é um escritor argentino, que está radicado no Brasil, está se dedicando a escrever a biografia de Borges e Bioy Casares e quer provar que ambos são apenas uma invenção de Morel. Obrigado pela sua presença e obrigado aos entrevistadores. E eu gostaria muito de agradecer a sua atenção, na sua casa. Nós tivemos hoje a honra de entrevistar o grande escritor argentino Adolfo Bioy Casares. O programa Roda Viva volta na próxima segunda feira, às 10 horas da noite. Até lá, uma boa semana para todos e uma boa noite.

Um comentário:

Susana disse...

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