sexta-feira, 20 de junho de 2008

Entrevista de Zizek

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Excertos da entrevista feita a Slavoj Žižek, por Enric González, publicada no “El Pais” de 25/3/2006.

Slavoj Žižek (Liubliana, 1949) grita, ri, aplaude. Os movimentos dos seus braços tornam-se convulsivos, mas do personagem emana uma grande cordialidade. É um filósofo pluridisciplinar que se deu a conhecer nos círculos psicanalíticos e, em pouco tempo, se converteu numa estrela do pensamento contemporâneo. Colabora no The New York Times, é professor convidado nas universidades de Paris (onde estudou), Columbia, Princeton e Georgetown e preside à Sociedade para a Psicnálise Teórica da Eslovénia. A partir de Karl Marx, Lenine e de Jacques Lacan efectua uma crítica sistemática da pós-modernidade e exige a reinvenção de uma ética de esquerda capaz de enfrentar a revolução tecnológica e a biomedicina. Vive num pequeno apartamento de Liubliana, na capital eslovena. O mobiliário é barato e a roupa está guardada nos móveis da cozinha.

- Como decidiu ser filósofo?

- Penso que para se bom em qualquer coisa faz falta uma vocação alternativa. Como é o caso de Levi Strauss que queria ser músico e se tornou antropólogo. Eu, desde a adolescência, sonhava em ser realizador de cinema, mas aos 18 anos comecei a estudar filosofia. Foi como a descoberta de São Paulo a caminho de Damasco. Nunca tive dúvidas. Comecei a estudar a escola de Frankfurt e de outros marxismos dissidentes, e ao chegar à universidade fiz-me heideggeriano, que na Eslovénia era o máximo da dissidência.

- Por que Heidegger era considerado dissidente?
- Cada uma das repúblicas da Jugoslávia tinha adoptado uma filosofia diferente, mais próxima de cada um dos grupos no poder. Na Eslovénia imperava a Escola de Frankfurt. Na Croácia preferiam os marxistas da Praxis e Heidegger: para ascender no partido comunista croata convinha dominar a femenologia. O da Sérvia era muito diferente, filosofia analítica. Então, quando surgiu o estruturalismo, Lacan, Foucault, Althusser e demais, aconteceu que as escolas rivais da Eslovénia, a de Frankfurt e a de Heidegger, esqueceram as suas diferenças para enfrentar-se de uma forma feroz, paranóica, contra os estruturalistas. Isso intrigou-me. Eu tinha 21 anos. Passei os seis ou sete anos seguintes a ler, de uma forma confusa, a teoria francesa, um pouco de Foucault, um pouco de Derrida, até que descobri a minha própria seita: sou um estalinista ortodoxo lacaniano, dogmático e nada dialogante.

- Como pode recusar o diálogo?
- O meu lema é: nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade. Não, seriamente, a filosofia é necessariamente dogmática. Conhece algum diálogo filosófico que tenha funcionado? Os de Platão? Nada sai dai, sobretudo nos diálogos dos sofistas da última época em que há um tipo que fala todo o tempo, enquanto o interlocutor se limita a dizer “ó sim, por Zeus, quanta razão tens”. Heidegger tinha razão quando dizia que cada filósofo tem uma percepção fundamental e limita-se a repeti-la ao longo da sua obra.

- Qual é a sua percepção fundamental?
- O meu problema é o seguinte: nós, da esquerda, ainda não dispomos de uma boa teoria sobre o que foi o estalinismo. A Escola de Frankfurt, Jurgen Habermas, todos estavam obcecados com o marxismo e o anti-semitismo, mas não disseram nada sobre o estalinismo. Existe um livro de Herbert Marcuse, mas não é mais do que um interpretação dos textos dos congressos do PCUS. Quando se lê Habermas nunca se poderá adivinhar que, enquanto o filósofo escrevia, existiam duas Alemanhas.
Um amigo da Escola de Frankfurt explicou-me que não analisaram os estalinismo para não parecerem anti-comunistas. Como? Mas se eram abertamente anti-comunistas! Alguns apoiaram a intervenção dos Estados Unidos no Vietname!
Qual é a percepção fundamental da Escola de Frankfurt? O que chamam a dialéctica do iluminismo, significa que existe um potencial opressivo e totalitário no iluminismo moderno europeu. Há melhor exemplo que o Estalinismo? Enquanto o fascismo estava abertamente contra o iluminismo, o estalinismo constituía-se como um iluminismo radical. Não digo que o estalinismo tenha sido melhor que o nazismo, afirmo que há nele algo de enigmático e de desconhecido.
Um detalhe revelador: os presos do Gulag tinham a obrigação de enviar a Estaline telegramas de felicitações pelo seu aniversário. Alguém imagina os judeus de Auschwitz a felicitar Hitler? Pela mesma razão, o nazis não organizaram processos para que os judeus confessassem que participavam numa conspiração mundial contra a Alemanha.
Os estalinistas, pelo contrário, necessitavam de confissões de arrependimento, porque consideravam que um traidor, inclusive, integrava a razão universal e podia ver a sua própria mentira.

-O nazismo e o estalinismo desembocam igualmente num anti-semitismo brutal.
- É a modernidade. Até à Revolução Francesa, o objectivo consistia em baptizar e cristianizar os judeus. Acreditava-se na emancipação. Depois dizia-se que o problema radicava na sua natureza e portanto só restava matá-los. É curioso, os modernos crêem ser mais “liberais” que os pré-modernos e isso não é assim.

-Auschwitz é a grande tragédia da nossa época.
- Sim. Mas aquilo não pode ser representado como uma tragédia. Já reparou que os melhores filmes sobre o Holocausto são comédias. Filmes como “A Vida é Bela” ou outros italianos, “Sete Belezas”…
Quando as coisas são demasiado horríveis há que explicá-las no campo da comédia, porque a tragédia requer dignidade. E não houve dignidade em Auschwitz, nem nos juízos do estalinismo.
Na Eslovénia, depois da guerra, tivemos um processo atroz, o chamado caso Dachau. Os sobreviventes do campo de Dachau foram detidos e acusados de cooperar com os nazis, porque se tivessem sido bons comunistas teriam sido mortos. Foram culpados de sobreviver.

-Há dignidade na guerra do Iraque?
- Escrevi sobre isso, utilizando uma velha parábola iraquiana: um tipo queixa-se a um outro, dizendo que lhe devolveu um cantil furado que lhe emprestou. O outro responde que nunca lhe pediu emprestado um cantil. Logo, conclui que o devolveu intacto. E acrescenta que já estava furado quando o levou emprestado.
As justificações de Washington para a guerra do Iraque são igualmente incongruentes. George Bush garantiu que o Iraque possuía armas de destruição maciça. Mais tarde, que ainda que não tivesse essas armas, cooperava com a Al Qaeda e constituía uma ameaça para o mundo. No final, argumentou que Saddam Hussein era um ditador terrível e que isso era razão suficiente para derrubá-lo. Na realidade, as razões eram a extensão da democracia, a demonstração da hegemonia mundial dos Estados Unidos e o controlo do petróleo, argumentos incongruentes entre si que condenavam ao fracasso da invasão.

-Os Estados Unidos utilizam a tortura na sua “guerra contra o terror”.

- Estou contra a tortura, mas posso compreender certas situações. Imaginemos um velho exemplo, tenho ante de mim um tipo que sabe onde está sequestrado o meu filho: não posso prometer que não o torturaria pessoalmente até me dar essa informação. O importante é manter a distinção entre um caso desesperado e a legalização da tortura. Todos sabemos que a CIA é especialista em interrogatórios violentos e brutais, mas não devemos aceitar que se fale da tortura como algo normal.
Alguma coisa está a mudar na moralidade pública nos Estados Unidos. No outro dia, na televisão, um congressista conservador fez o seguinte raciocínio: os nossos prisioneiros eram desde o início “objectivos legítimos” de guerra mas como sobreviveram aos bombardeamentos podemos fazer com eles o que queiramos, já que desde o princípio tínhamos o direito de os matar.
Pôs-se em marcha uma “revolução silenciosa”, as regras fundamentais da ética estão a mudar e nós não queremos sequer estar a par disso. Sobre isso estou de acordo com Habermas.

-Habermas está bastante de acordo com o Papa Benedicto XVI. Escreveram um livro a meias.

- Estou de acordo com o diagnóstico de Habermas, mas não com as soluções que propõe. A sua atitude é puramente defensiva: não façamos isto, não façamos aquilo.
Não podemos dizer, como Habermas, que há um limite na eugenésia e não devemos ultrapassá-lo. Temos que reinventar a ética. Hoje é possível implantar um chip num rato e teledirigi-lo. Obviamente, será possível fazer o mesmo com o ser humano.

-Isso é criar um Golem
-Coloca-se uma questão filosófica: como sentirá o ser humano esse controlo remoto? Terá consciência que o controla uma força exterior? Acreditará que é ele mesmo o emissor das ordens? Inclino-me para a segunda hipótese: o ser humano teledirigido não se aperceberá de nada, sentir-se-á livre.

-Jurgen Habermas propões uma drástica auto-limitação da investigação científica para não destruir a essência do ser humano.

- E isso como se faz? É impossível. Se podem-se manipular os genes, vão ser manipulados. Os chineses já estão a experimentar o controlo remoto do cérebro. Isso espanta muito as pessoas religiosas. No outro dia participei, em Viena, numa mesa redonda em que se encontravam dois Bispos. Perguntei-lhes porque estavam contra experiências com o cérebro. “Porque o homem é uma criatura divina, com uma alma divina, etc”, responderam-me. Mas, se não somos simples mecanismos biológicos, se temos uma alma imortal, podem-nos fazer o que seja ao cérebro. Sobra-nos a alma, não é?
Não, os Bispos são secretamente materialistas e temem que, na realidade, só sejamos o nosso cérebro. Um Bispo bastante esperto observou que o cérebro era um televisor e a alma um descodificador, necessários um ao outro.
Esse foi um argumento inteligente, mas falso. Se um remédio pode fazer-me mais valente, mais lúcido, mais generoso, onde é que fica a ética? Significa que somos só química. Somos então livres? Eu acredito que sim. Mas se bloquearmos a experimentação científica só estaremos a manter uma ficção de liberdade.

- Cita com frequência Lenine e escreveu um livro sobre ele.

- Muita gente discute sobre a escassa participação das mulheres na política e sobre se convém estabelecer quotas. Zapatero não se entreteve com debates e impôs as quotas. Isso é leninismo: deixemos de esperar pelas condições objectivas, façamos e vejamos se funciona.
Sobre a minha posição política existe uma certa confusão. Escrevi um livro sobre a actualidade do pensamento leninista, mas o que proponho é “repetir” o leninismo no sentido que Walter Benjamin dava à palavra “repetir”. Isso pressupõe reconhecer que Lenine está morto. Não tenho soluções, declaro-me mais pessimista que os partidários das “terceiras vias”. Para mim, Tony Blair é um grande traidor. A esquerda deve ser reinventada.

-Pode-se pensar numa esquerda à margem do capitalismo?
- Há quem considere o meu leninismo como uma provocação. Também há que se ria do “fim da história” anunciado por Francis Fukuyama, mas todos actuamos como se Fukuyama tivesse razão, como se o capitalismo liberal fosse a culminação do progresso. Não estou louco nem preconizo a fundação de um novo partido revolucionário. Só proponho que mantenhamos a mente aberta e não acreditemos que a tolerância, o Estado do bem-estar e as “terceiras vias” constituam valores supremos.


-A respeito do capitalismo ele tem demonstrado uma capacidade enorme de vencer que o pretende contradizer

- Verdade. Vivemos várias vezes a “crise final” do capitalismo. Para Marx foi o imperialismo, para Estaline foi o fascismo…o capitalismo está sempre em crise e está cada vez mais forte. Agora há bastante gente que acredita secretamente que uma grande catástrofe ecológica acabe com o capitalismo. Pelo contrário, imaginem-se as oportunidades de negócio que se abririam com uma grande catástrofe?

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