Com o lançamento recente do romance inédito Carne Viva, de Paulo Francis, fica mais importante analisar sua ficção imediatamente anterior, o livro Cabeça de Negro, publicado originalmente em 1979. Nele se poderão assinalar as bases onde se assenta esse Carne Viva que já nasceu póstumo.
Tendo como pano de fundo o Brasil da ditadura militar e o mundo da Guerra Fria como seu eixo de discussão, Cabeça de Negro envelheceu tão mal que até mesmo Lucas Mendes, amigo de Francis, declarou recentemente que Francis não será lembrado enquanto romancista, a propósito da péssima recepção de Carne Viva na Folha de São Paulo.
No entanto, encontro pelo menos uma virtude em meio ao desleixo estético e ambivalência ideológica do romance: a introdução do personagem do neoconservador em nossa literatura. Em Cabeça, o neoconservador é Hugo Mann, nada tendo a ver com Thomas Mann. No início do livro, o leitor poderia se iludir que está diante de um intelectual que vai fazer a denúncia de sua classe, a burguesia da zona sul carioca. No entanto, pouco a pouco fica claro que seu enfoque é outro. Ele pretende se acomodar e obter o maior número de benesses possíveis dessa burguesia nascida do regime militar: a estratégia nascente é criticar a esquerda que se reorganiza e renasce com a abertura.
Para esse intento ele focaliza seu alvo e objeto de desejo, “Maria”, uma adepta da luta armada perdida em meio a um contexto de 1979 onde o narrador deveria, pelo menos, chamá-la de ex-guerrilheira. O episódio, eivado de racismo, onde Maria mata um negro anônimo que tentou assaltar seu apartamento, torna-se o mote dos comentários de Hugo Mann, chamado para ajudar a moça a resolver a situação. “Maria” então reage como se fosse a esposa do Capitão Nascimento em Tropa de Elite, propondo, apavorada, que ambos simplesmente jogassem o corpo anônimo na favela do Vidigal. A atitude é alvo de sarcasmo e mote dos comentários entediados de Hugo Mann sobre o Brasil. Em seus diálogos onde não deixa falar os argumentos contrários, Hugo Mann histericamente dá o recado da nova direita: é preciso preparar-se para matar, para o estado de exceção, pois a horda de bárbaros está chegando. As citações eruditas disfarçam sua real intenção (que posteriormente será a intenção realizada do autor empírico, Paulo Francis) de criar um novo conservadorismo para uso na democracia liberal então nascente.
A fala prolixa de Mann, então, contamina os demais personagens, numa prosa que não possui claras relações com a fina prosa de Thomas Mann. A repercussão de Francis, hoje, parece ser, em boa parte, devida a esse pioneirismo em inventar uma forma de ser conservador que a imprensa brasileira pudesse seguir, sem repetir nem o nacionalismo ufanista dos militares nem os lemas de tradição, pátria e família dos integralistas. O moralismo golpista contra a esquerda, sim, enraíza-se cada vez mais e toma forma de uma traição do meio de onde Hugo Mann, afinal protagonista, saiu. Paulo Hesse é outro intelectual sempre lembrado na narrativa, mas, assim como a crença de Hugo Mann no marxismo, assim como a pose de trotsquista e vítima do regime militar, morreu.
O atrito e a atitude esnobe de Mann para com seus pares, que insistem em dar aulas, criar filhos e manter as posições nacionalistas ou marxistas, ainda por cima mantendo hábitos chiques tais como ler revistas da nova esquerda norte-americana, aumenta sua depressão arrivista e feroz, gera cada vez mais perplexidade e mal-estar entre os que estão em torno de seu círculo, e que, apesar disso, continuam a tolerá-lo heroicamente.
Chapado pelo uísque liberal norte-americano, o neocon Hugo Mann vai se preparando para no futuro ser o guru da Veja, do Estadão, da Globo. Ele toma ainda alguns cuidados: ataca o pseudonacionalismo das estatais em nome dos pobres, disfarça em discursos sobre a Tchecoslováquia de Dubcek e a russificação de qualquer debate o seu racismo, assim como em ataques a Álvaro Vieira Pinto a sua homofobia. Vinte anos depois, o próprio autor e boa parte da imprensa brasileira serão variantes de Hugo Mann e Paulo Francis terá se tornado esse seu personagem.
O romance, portanto, foi um traque que explodiu, tornou-se profecia realizada. Existem aqui e ali alguns rompantes muito curiosos para serem lido hoje em dia: entusiasmado pelo marxismo de primeiro mundo, que Hugo Mann debate e importa como um índio deslumbrado com espelhinhos e miçangas, ele sente muita repulsa pelo mundo árabe que, com a revolução iraniana, rejeita tanto o marxismo pervertido pela invasão do Afeganistão quanto a cocaína do liberalismo americano e fica com Maomé, que é “deles”. O neocon Hugo sente um interesse dúbio por Lula, então emergindo em meio às oligarquias de direita e de esquerda, forças dominantes no Brasil de então, no seu entender, mas Mann aconselha prontamente distância dele, utilizando o “brilhante” argumento de que ele não é elitizado culturalmente. Diga-se de passagem que, tendo em mente o que aconteceu depois, não deixa de ser um elogio. Hugo Mann, assim como Paulo Francis, para uns é um frasista, para outros é um fascista. A definição vai depender apenas do lado em que o leitor se situar. No entanto, do romance Cabeça de Negro em diante, foram diminuindo a qualidade das frases...
Um comentário:
Olá, Lúcio, acho que me atrapalhei ontem com a postagem do comentário, então vou refazê-lo:
O valor literário dos romances do Paulo Francis é escasso, mas isso não nega inteiramente o seu valor como documentos de uma época: a expressão de uma situação do intelectual pequeno-burguês que gostaria de rejeitar uma ordem burguesa na qual o seu papel é de bobo da corte, mas recua repugnado diante das massas populares que se acotovelam forçando a porta do processo de acumulação capitalista periférico. É claro que tudo que o Francis diz pode ser encontrado, mais bem colocado, no _Terra em Transe_ de Glauber Rocha, mas acho que não podemos analisar uma obra literária apenas pelos sentimentos, bons ou maus (no caso, maus) que expressa: todas as proporções consideradas, Balzac também assumiu posturas reacionárias na sua época, foi acusado de usar clichês, de não conhecer a aristocracia que supostamente descrevia (cf. Proust)...e não é apenas por isto que o julgamos, não é?
Ass.Carlos Rebello (crebello@antares.com.br)
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