quinta-feira, 24 de abril de 2008

Chasin, Luiz Bicalho e Álvaro Vieira Pinto


O marxismo em Minas é um tema difícil de abordar, nunca vi um artigo sobre o assunto. Acontece com freqüência que dentro de nossas universidades a bibliografia internacional seja bem mais valorizada que o conhecimento da realidade nacional e regional. Isso leva a distorções enormes. Acho que vale lembrar a frase de José Martí: “ao mundo pela aldeia!”, uma clara e sintética formulação, que sintetiza os conceitos de particular e universal.
Dentro do Brasil colonizado, coube a Minas uma posição desconfortável, principalmente porque a relação desigual entre os países ricos e pobres do mundo acaba se repetindo no interior do Brasil. O marxismo produzido em Minas Gerais não escapa de ser influenciado por esse contexto. O filósofo isebiano Álvaro Vieira Pinto dizia que uma consciência ingênua era uma consciência destituída do sentido do ser nacional, e que toda filosofia estrangeira tem de passar por uma radical depuração antes de ser aplicada a um país subdesenvolvido. Para Álvaro:

É lícito, pois, falar em graus de clareza das consciências, distingui-las por serem umas mais esclarecidas que outras, mais incultas...Desde que não saiba do seu condicionamento, ou o negue, estará excluída da condição crítica, e assim poderá enriquecer-se do mais vasto conteúdo de erudição e sapiência, cogitar as mais profundas teorias científicas ou filosóficas, que nem por isso deixará de ser ingênua. (Álvaro Vieira Pinto. Apud: GUIMARÃES, Aquiles Cortes, 1997, p.122)

Apesar dessa posição ponderada, Vieira Pinto foi duramente atacado por um dos mais importantes tradutores de Hegel no Brasil, o mineiro Padre Henrique Claúdio de Lima Vaz, no final dos anos 70, num artigo na Revista Civilização Brasileira, por querer elevar a uma alta categoria da consciência o conceito de nação e defender o “estado totalitário fascista”, ou seja, o estado novo getulista. De outra feita, numa entrevista para um jornal local, Lima Vaz proclamou que o marxismo é apenas uma província turbulenta do hegelianismo. O jesuíta ficaria, portanto, sendo uma consciência das menos esclarecidas, um hegeliano puro em pleno século XX, um liberal que utiliza o conceito de totalitarismo para rotular seus oponentes, sejam eles o marxismo-leninismo ou o nacionalismo desenvolvimentista. O simples fato de que Vieira Pinto escreveu numa revista onde intelectuais simpáticos ao regime varguista escreviam bastou para comprometê-lo, no artigo supracitado de Aquiles Cortes. Por uma avaliação sumária como essa, Lima Vaz podemos dizer que Lima Vaz se alinha numa vertente católica reacionária, udenista, anti-getulista ao mesmo tempo que anticomunista.
Num outro pólo, também interessado na herança hegeliana, esteve o professor Luiz Bicalho. Esse professor narra, em seu discurso de professor emérito, que buscou o marxismo devido a uma crise religiosa: “Procurei esta casa, seu curso de Filosofia, tentando sair de uma crise, a que os conhecimentos especiais vigentes não atendiam. Acresce que, de formação familiar católica, Deus afinal, se revelava uma ausência.” (BICALHO, 1993, p.24) No mesmo texto ele comenta que a maioria dos professores da Filosofia da Universidade de Minas Gerais “em sua quase totalidade (era) de formação escolástica em seminários católicos, deixava muito a desejar. (...) Aquele humanismo em que o latim era a pedra de toque, de uma vaga espiritualidade, me parecia longe da realidade da vida, quase um ornato.” (BICALHO, 1993, p.24) Luiz Bicalho foi perseguido pela ditadura de 64 por ter militado no partido comunista, mas definiu sua entrada no partido assim: “Foi uma opção política, não filosófica. Com isso, renunciava a tudo que antes tentara ser. Era uma postura niilista, quase uma religião laica, conseqüência da decepção filosófica.” (BICALHO, 1993, p.25) Em seu discurso em 1994, Bicalho explica que rompeu com o stalinismo, mas que nada publicou a respeito posteriormente, pois temia assim auxiliar a ditadura militar de 64. Aí tocamos num ponto importante: a interdição que o regime militar produziu às críticas à esquerda. Esse travo foi agudamente combatido por Glauber Rocha nos últimos anos de sua vida, e o desgaste psíquico que lhe adveio é tido como um dos motivos de sua morte precoce. No outro lado, na URSS, a última polêmica dentro do marxismo foi a de Trotsky e Stálin, vencida por esse último, que foi denunciado como criminoso após sua morte, no famoso relatório lido por Kruschev. Como o professor Bicalho bem observa, não ocorreu polêmica nem confronto de posições, a condenação de Stálin por “culto à personalidade” era um psicologismo vulgar que nada explicava. O que contava, e que não se modificou, foi o esterilizante monopólio do PC sobre o marxismo, reiterado em 1963 com a subida do líder Brejnev. A partir de Brejnev se acentuou o conflito com a China, mas o PC chinês nunca aceitou a exclusão de Stálin, pois as avaliações que esse líder bolchevique fez sobre a questão colonial chinesa tinham sido essenciais para a realizar a revolução nesse país. O acerto de contas com Stálin nunca foi realmente realizado na URSS, redundando na repetição de erros, como a invasão da Tchecoslováquia, flagrante violação do direito de autodeterminação nacional, e ainda reafirmação brutal de um marxismo burocratizado, caminhando a largos passos para o abismo. Outra seqüela foi o abandono dos países subdesenvolvidos à sua própria sorte, como foi o caso do Chile em 1973. Brejnev decidiu se acomodar com o capitalismo norte-americano, contentando-se com uma posição de inferioridade diante da revolução tecnológica americana. Essa acomodação posteriormente se mostraria fatal para a União Soviética: uma vez levada ao extremo por Gorbachev, resultou na destruição da federação em 1991, com o renascimento dos nacionalismos conservadores nas várias repúblicas.
Pelo que posso subentender de sua trajetória, Luiz Bicalho continuou com o PCB ao tempo em que este se aliava a Vargas, mas sem se atar a essa herança trabalhista; logo, quando o PC acertou e se aproximou do movimento real da sociedade brasileira, Bicalho pouco deu pela coisa. Quando foi perseguido, no pós-64, essa linha reformista do PCB caíra em grande descrédito. Bicalho foi mais feliz em buscar a explicação sartriana, que apontava um dos principais problemas, a transformação do marxismo numa espécie de idealismo: se o subsolo de Budapeste não comportar um metrô, é porque esse subsolo é contra-revolucionário. Ocorre, no entanto, que Bicalho chega a desconsiderar de maneira generalizada o comunismo: “O que marca então a sociedade comunista mundial e particularmente a sociedade soviética é a visão coisificadora do homem”. (BICALHO, 1993, p.28) Seria melhor dizer que se tratava de um estado operário burocratizado, que tornou-se dogmático, e seu reflexo nos países subdesenvolvidos foi que a estrutura leninista e hierarquizante do partido fez com que a crítica filosófica ao marxismo-leninismo- stalinismo não fosse possível. Por outro lado, uma autocrítica profunda foi interditada pelo regime militar, que punia violentamente a esquerda. Esse o dilema que tornou Luiz Bicalho um “homem dividido”, como depõe ele em seu último discurso.
Caso à parte no marxismo mineiro, porque de formação na analítica paulista, é José Chasin. Tendo se formado na USP nos anos 60, Chasin se criou próximo de Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes, ambos desde muito rompidos com Stálin, sendo porém intelectuais dotados de traços de antipatia pelo getulismo e pelos isebianos cariocas. Sua pouca simpatia por Jango se exprime na afirmação de que, após 64, existia a possibilidade da criação de uma nova esquerda. Ora, 1964 foi a mais terrível derrota da esquerda, iniciando um período de perseguições e tortura para os militantes e de sofrimento e exclusão para o povo brasileiro. Não abriu portas para uma renovação; inovador mesmo foi um professor uspiano como Oliveiros S. Ferreira, hoje editor do Estado de São Paulo, que à época defendeu os golpistas com argumentos marxistas. Creio que, longe de ser um ato isolado de um louco perverso, Oliveiros iniciou uma senda pela qual seguiu boa parte da esquerda paulista: a justificação da ordem estabelecida através da distorção sistemática do marxismo. O próprio Chasin chegou a esse ponto nos anos 90, mas antes passou por todo um trajeto, que irei discutir rapidamente aqui.
Nos anos 60, Chasin finalizou seu curso de filosofia em 1962 com uma monografia sobre a idelogia em Karl Mannheim, autor trabalhado também pelos isebianos. Posteriormente, Chasin afirmou que data do pré-64 seu interesse pelo integralismo –suspeito que a presença de ex-integralistas no ISEB, convertidos à esquerda, motivou bastante essa pesquisa. Mas somente no fim dos anos 70 Chasin produziu o seu trabalho de fôlego sobre o Integralismo de Plínio Salgado, Forma de Regressividade no Capitalismo Hiper-Tardio. O trabalho atacou o conceito de totalitarismo usado por liberais como supracitado Lima Vaz (que ele não cita) e consegue mostrar a especificidade do discurso do integralismo, diverso do nazifascismo. Mas o trabalho é também um ataque ao nacionalismo, que é repudiado como um todo, e aliás um ponto final na polêmica em torno do nacionalismo travada pela intelectualidade brasileira nos anos 60, polêmica esta que terminou, para o meio intelectual e artístico brasileiro, com o descarte do nacionalismo e do trabalhismo derrotados em 1964.
No final dos anos 80, Chasin passa por outro momento decisivo em sua trajetória, e escreve em seu artigo A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda, uma previsão de que, se Brizola não fosse para o segundo turno na disputa com Collor, a esquerda seria derrotada. O argumento é que Brizola é mais carismático e que o PT está vidrado no “mito do partido”. Essa é quase a mesma posição do professor Gilberto Vasconcellos, pedetista convicto, lançou em 1989 no livro Collor, A Cocaína dos Pobres, tentando justamente acabar com a cisão esquizofrênica na esquerda trabalhista, que de fato colaborou para sua derrota neste ano. Mas Gilberto Vasconcellos, dando continuidade ao pensamento de Glauber Rocha, consegue denunciar os responsáveis pela derrota trabalhista: o poderio onipresente da telenovela na sociedade civil, o desprezo pela alternativa audiovisual representada pelo Cinema Novo, o monopólio das comunicações de massa, configurando um capitalismo “videofinanceiro”. Já Chasin mantêm de pé, em linhas gerais, a teorização da USP e do CEBRAP, enquanto Vasconcellos a desconstrói e demonstra suas deficiências. Chasin continua seguindo numa trilha inexistente, sem denunciar a televisão dominante, excluindo conceitos como colonização e o imperialismo. Suponho que, ignorando esses dados, permaneceu uma consciência ingênua pois alheia à realidade nacional.
Ocorreu, porém, que Chasin mudou de lado a partir dessa derrota em 89. Mas a virada mais drástica ocorreu a partir de 94, quando da subida de FHC ao Planalto. Chasin chegou a dizer em sala de aula que hoje em dia (1996) o mundo era “governado por mequetrefes, sendo FHC uma das figuras de maior densidade”. Prefiro, não aplicar a essa afirmação os conceitos de particular e universal e aceitá-la como uma “solidariedade de geração”.
Será que, como FHC, Chasin foi um esquerdista que escondia o seu direitismo, conforme escreveu em seu último texto, citando Nelson Rodrigues? Acredito que o que determinou sua pane intelectual nos últimos tempos foi uma formação uspiana, anti-nacionalista e anti-varguista. Daí sua esquizofrênica defesa das privatizações, seu combate à greve dos professores na UFMG, protagonizando atitudes extremadas, como o momento em que disse aos colegas que o comando da greve era o “comitê central sem os sovietes” e o seu último texto, chamado Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, em que ele avança espinafrando Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Tarso Genro, o PT em geral, poupando FHC e Gianotti. Produz para a universidade um bizarro slogan: ensino, pesquisa e revolução. Em meio a essa delirante esperança de uma revolução a partir das universidades, Chasin afirmou que o politicismo sem alianças (PT) é pior que o politicismo com alianças (PSDB-PFL). Porém, digo eu, como FHC é continuador civil de 64, assim como Collor, eis que surge a sombra de Oliveiros S. Ferreira. Chasin terminou como Paulo Francis, defendendo os continuadores do regime militar que o perseguiu, distorcendo argumentos marxistas, assumindo a perspectiva dos vencedores de 1989, negando com veemência o nacionalismo progressista:

Ao fim da Segunda Guerra, na Ásia e na África, (o nacionalismo) foi esteio na luta anti-colonialista e, assim, base do vasto processo de constituição de nações politicamente independentes, mas economicamente subordinadas por inteiro às antigas metrópoles, ou seja, objetivamente, aqui o nacionalismo político redundou em via do neocolonialismo. (CHASIN, 1999, p.51)

Nada existe de objetivo nessa conclusão, onde o nacionalismo fica sendo responsável pela dominação externa que ele combateu. É uma perversão de conceitos, fenômeno mais visível, inclusive, em Paulo Francis, intelectual colonizado que morava em Nova York. Para o derrotado e ressentido Chasin pós-marxista:

Hoje, pensar a partir do nacionalismo é pensar não apenas a partir das forças extenuadas de uma perspectiva vencida, mas de um cadáver, em especial e especificamente para a esquerda, pois é pensar contra a lógica do irreversível movimento histórico atual, é ser esquerda às avessas, não se guiar pelas possibilidades reais de futuro, mas a partir de uma lógica esgotada do passado, que no próprio passado se mostrou inviável e impossível. (CHASIN, 1999, p.52)

Embora, em tese, Chasin acreditasse mais na profecia socialista da revolução social, creio que ele acreditou nela às avessas, concordando (sem citar) com a teleologia criada por Fukuyama para justificar o triunfo da democracia liberal. Esse posicionamento do pensador marxista também revela a profundidade da cisão que desde sempre existiu entre a esquerda paulista com o nacionalismo do ISEB, de Jango, Brizola e dos cepecês. Trata-se, aqui, do apodrecimento social de uma esquerda imatura, tendo o malogro do socialismo de estado no Leste Europeu como principal álibi.
A nova direita, anunciada por Oliveiros Ferreira em 64, tornou-se hegemônica nos anos 90, agregando Gianotti, José Serrra, José Chasin e muitos outros. Justiça seja feita, até Roberto Schwarz, que chamou Oliveiros de fascista, dele se aproximou ao afirmar, em 1994, que FHC era coerente com seu passado de esquerda, apesar da flagrante contradição que representou a aliança do PSDB com o PFL, partido dos signatários do AI-5.
Concluindo, parece-me que, com a conversão desses intelectuais paulistas ao neoliberalismo, precisamos retomar a associação marxismo-nacionalismo, retomando pensadores como Darcy Ribeiro e Glauber Rocha. Será o primeiro passo para reparar um engano que permanece desde 1964 trazendo conseqüências para a vida intelectual e artística brasileira.

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